CARDUME (Carlos Moreira)
“minha função na colmeia
é tecer estes losangos
que chamam texto fábula poesia” (p. 18)
Poeta inventivo, com grande capacidade de tirar das palavras mais do que o senso comum dos dicionários, Carlos Moreira apresenta, em Cardume (Valer Editora, 2013, 1ª edição), mais do que maestria no domínio da língua ou inspiração exarcebada. Isso é o mínimo que se procura no trabalho de quem se diz poeta.
Carlos, todavia, vai mais longe, muito mais longe. Com uma escrita que se relaciona com mundos exteriores e interiores num diálogo sempre teso entre o verbo e a sublimação dos sentidos, o autor surpreende pela profunda elasticidade dessa tensão.
“era muito ódio
só podia ser amor” (p.157)
Cardume é, essencialmente, um livro cujo libelo preza pela autenticidade e potencialidade da palavra. Em todo o volume, de 196 páginas, o que o permeia e nos premia são o entendimento de versos de hedonismo singelo como
“essa verdade
a vida me deu
seu pecado original
é a cópia do meu” (p. 125)
ou então elaboradas costuras sintáticas de tirar o fôlego na leitura:
“tirar do nada
(do mais nada)
o nervo exposto
da palavra
eis a tarefa
(ingrata:
de pedra)
do poeta” (p. 140)
Essa tarefa, árdua, mas de belos resultados, faz com que percebamos o ourives que conhece o seu ofício. Mais ainda, sabe da arte que está por trás, e dentro, e acima, de seu labor primordial. Assim, o lago de onde este Cardume se oriunda, quase que nos tonteia com essa epifania e catarse:
“da pele para dentro estou deserto
da amargura vingança e outros cânceres
deserto da ilusão de que meu erro
foi não ser mais aquele eu de antes” (p. 124)
Com editoração e orelha de Tenório Telles, capa “orgânica” de Heitor Costa, apresentação sagaz de Marcos Aurélio Marques, epígrafes do filósofo francês Michel Onfray e da ganhadora do Nobel de Literatura de 1996, a poeta polonesa Wislawa Szymborska, Cardume resume bem a empreitada a que estamos impostos neste princípio de século 21. Com a socialização da tecnologia, o acesso irrestrito aos novos artefatos e a prática da big-brodagem através das redes sociais, todo joio torna-se trigo. Mas tem trigo que é jóia.
Nossa responsabilidade acaba sendo sempre essa tarefa de Sísifo, descobrir cardumes de peixes vitaminados. Eu estou indicando este.
* Cardume, de Carlos Moreira. Valer Editora (www.editoravaler.com.br), 1ª edição, 2013
X.X.X.X.X.X.X.X.X.X.X.X.X.X.X.X.X.X.X.X.
“o desejo quer
eu obedeço
que sou eu
para dizer não
ao desejo?
sou só
eu mesmo
e aquilo que vejo
pouco
parco
e humano
menos
do que percebo
o desejo quer
eu mando” (p. 21)
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“veloz
a morte
sobre o lince
nada
mais profundo
que a superfície” (p. 54)