FABIANO, Antonio. Girassóis noturnos. Rio de Janeiro: Taba Cultural, 2012.
O frade e os girassóis noturnos
O frade sobe ao monte. Sua visão noturna o faz enxergar girassóis nos campos negros do céu, pintados com o expressionismo tenso de Van Gogh. Anjos descem em cascatas, nas tristes horas das águas pluviais, enquanto o monge, de um Carmelo, nas alturas, vê uma raça de assustados. Eis que brilha nos ascendentes o medo de morrer, numa cidade assaltada por Leviatã, pelo pavor das estátuas que se levantam para uma glória póstuma. Pessoas desaparecidas ressoam num país distante, onde pais nascem tortos, ao som das vuvuzelas dos anjos que nunca dormem, mas sonham em se verem livres do sonho. E o frade, nascido deste país ditado por livros não editados, permanece sem perguntas nem ousadias.
Penetra no labirinto de si para guerrear em prol da paz. Sobre sua cabeça, pairam asas translúcidas, num constante temor servil. Sua ambição está nas forças belicosas das potências dos sétimos céus. E então, Eclesiastes lembra: é vaidade, vaidade das vaidades, tudo é vaidade.
Agora é o réu de um tribunal, cujos juízes são cães. Seu delito: tentativa de assassinato. Mas sua vítima não pode ser morta. Ela, a noite, já traz em sua pele a cor mortiça. E o dia, em sua intensa claridade, convida a um enlace que se desfaz sempre com o crepúsculo.
Seguem-se os gritos. A dor do mundo crescida continuamente com a loucura do poeta que se cala, e fala e grita e morre e mata. Filho adotivo das máquinas dos homens, farto do falso maná do progresso, alimento custoso da ambição consumista. Arremessai, portanto, dos altos prédios os filhos ainda não nascidos, trucidai-os no próprio ventre com agulhas de tricô. Embriagai o mundo de esperança para perdê-lo; e, assim, salvá-lo. Voltar ao primitivismo, à perfeição, ao estado puro de existir. Estar de novo nu, como um recém-nascido.
O frade, em sua noturna observação e desatino, lança a âncora de sua língua de seu próprio navio nos mares misteriosos do coração das gentes. Corre seu sangue no chão regado, entre o começo e o fim, pavor de vida. Mas os mares estão revoltos. O choro em ondas a naufragar o marinheiro solitário que não sabe a razão de ter se plantado tão longe deste mar... Mar vermelho... sopro intenso que arremessa para as alturas, onde ciganas não leem a sorte, pois a sorte já está lida no ouro exposto à luz do dia.
Ao redor de uma fonte, o frade colide sua coreografia sedenta com as guirlandas das abelhas que chegam ao jardim. Dançam e beijam a água na manhã de abril. Flores, fecundo mistério das colisões. Mistério de parto, de avesso de coisa, escorregado tal sabão para sonhar no mundo, 1975. Início do martírio da alma profundamente espiritual.
Definitivamente, nas mãos fortes a vida destroçada. O profundo silêncio do piano e do violino quebra a vidraça neurastênica. Muriçocas desafinam com seus zunzuns os violinos que dormitam. Os sons que poderiam ser e que não se engendraram. Onde estão os astros: Picasso, Mozart, Shakespeare? Sonhos não nascidos e não amados daqueles que quase se tornaram boa coisa na vida. Bom seria mesmo viver sem aflição, e poder ver verdadeiramente o girassol ao pôr do sol, serenamente findo. Mas a configuração do palco não permite aplausos, finda a música, finda a luz, o calar é uma clave iludida na multidão.
De repente desponta o sol, como água a ilibar o coração do frade que se abre como os girassóis. “A obra é completa quando nos encerramos. Até lá, não.”
O frade desce o monte. Emanuel lhe aponta a serpente emplumada. Então se alongam seus versos pelo pórtico, como plumas de palavras que o guiam pelo mistério da poesia. A solidão é o porto, ofídia verdade. Pacífico, gira e gira e gira e gira na luminosidade do amor... “palavra até então adormecida no poema”. A pedra ingrata, grata dobra-se em rocha, explosão de A a Z, constelação de segredos. Do céu, degredo, do céu, a ilha. Noite e noite sempre, noite e noite alta, muito alta, ainda mais alta, noite estrelada, noite Van Gogh. E na terra, o Cristo Redentor de braços abertos indiferente à loucura dos hospitais e hospícios, às favelas, à miséria, aos pobres e mendigos, aos moradores de ruas e às crianças pedintes, às meninas e aos meninos abusados, à fome de uma nação tão rica e tão surda. É carnaval!
Dança a alma indômita, felina, com seu traje carnavalesco: a bandeira nacional; na praça dos Três Poderes em Brasília. É carnaval! É carnaval.
O frade, com coração de poeta, escuta o grito deste chão. Finca na sua terra a estaca de uma nova bandeira. E esplêndida, sob os pés, nasce a flor da lama. Tão bela, tão bela que faz o coração tremer. O poema aconteceu. Sonho. Qual um beija-flor, voou ondulante para pousar e encerrar no cume da montanha, onde o poeta paira numa nuvenzinha sobre o mar. E cai a chuva, caudalosa, no silêncio, lavando tudo, tudo. Tudo está consumado. E a vida. O frade e Deus. E Deus viu que tudo era bom.
O frade volta à sua cela. Histericamente, acorda ao som dos tique-taques, dos trrriiiinnnnn. O sino badala nas torres da igreja. É chegada a hora. O Frade sai de sua abstração e enfrenta o poema concreto. Os ponteiros quebrados lhe avisam a dimensão. Morrer é caro demais. E as horas passam em todos os relógios do mundo. O tempo não precisa de relógios, o mundo nasceu sem relógio. Mas o homem marca o mundo com seus ponteiros e exige momentos, hora marcada. O cuco sai de sua porta, sem que lhe batam: toc toc. O mundo não para. E por mais que se reguem os girassóis, à noite, eles dizem: não...