Em Busca de Sentido, de Viktor Frankl

"O homem é um animal criador por excelência, condenado a tender conscientemente para um objetivo e a ocupar-se da arte da engenharia, isto é, abrir para si mesmo um caminho, eterna e incessantemente, para onde quer que seja."

Fiódor Dostoiévski

O psiquiatra austríaco Viktor Emil Frankl (1905 – 1997) teve a infelicidade de ser um dos milhões de seres humanos que foram levados aos campos de concentração nazista durante a Segunda Guerra Mundial. A partir da sua dolorosa experiência em campos de concentração, ele encontrou vasto material para escrever o livro Em Busca de Sentido: Um Psicólogo no Campo de Concentração, uma narrativa autobiográfica sobre o que ele viveu e aprendeu durante aqueles terríveis anos de reclusão. Mas Em Busca de Sentido não é apenas uma narrativa autobiográfica sobre um dos mais lamentáveis episódios da história da humanidade: é também um profundo “ensaio psicológico” que almeja responder, a nível existencial, “de que modo se refletia na mente do prisioneiro médio a vida cotidiana do campo de concentração” (Frankl, 2013, p.15).

O livro Em Busca de Sentido foi publicado originalmente em 1945 e desde então o livro vendeu milhões de exemplares em diversas línguas, tornando-se um best-seller internacional. Curiosamente, seu autor publicou dezenas de livros de psicologia e psiquiatria, que foram traduzidos para dezenas de idiomas, mas foi essa pequena narrativa autobiográfica que lhe garantiu fama e prestígio internacional. Quanto ao conteúdo do livro, Viktor Frankl divide o seu “ensaio psicológico” em três partes, que representam as “três fases” de reações psicológicas do prisioneiro ante a vida no campo de concentração, sendo que a primeira fase está relacionada à sua chegada no campo de concentração, a segunda fase ao cotidiano (extra)ordinário dos prisioneiros e a terceira fase à experiência vivenciada pelos prisioneiros recém-libertos do campo de concentração.

Na primeira fase descrita por Viktor Frankl, há um grande “choque de recepção” na chegada dos prisioneiros aos campos de concentração: eles são discriminados entre os que irão trabalhar provavelmente até à morte em condições praticamente insuportáveis e os que morrerão imediatamente cremados, sem saberem disso previamente – cerca de 90% do grupo que viajou com Frankl foi selecionado para morrer cremado logo após a sua chegada. Após sobreviver a essa primeira seleção, os prisioneiros vão sendo destituídos de todos os seus bens materiais e formas de identificação pessoal, não importando mais seu nome e origem, ou seja, vão sendo desumanizados gradativamente até se tornarem coisas vivas de “existência nua e crua”. Neste momento, a esperança de sobreviver e ser feliz novamente começa a enfraquecer, e o desejo de cometer suicídio, de “ir para o fio”, vai se tornando irresistível. Mas quem sobreviver a esse grande “choque de recepção” vai se habituando aos poucos às precárias condições do presídio – à fome, ao frio, à impossibilidade de dormir adequadamente -, pois como bem ressaltou Frankl ao citar o escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881) sobre o que este escreveu sobre a sua própria reclusão forçada na Sibéria, “o homem é uma criatura que se habitua a tudo e, acho eu, essa é a melhor de suas definições” (Dostoiévski, 2003, p. 17).

A partir da segunda fase, quando o prisioneiro já passou a se habituar às precárias condições de sua existência no presídio, Frankl notou que tanto ele quanto os seus companheiros passaram a ficar a cada dia mais apáticos, insensíveis emocionalmente e até indiferentes aos castigos físicos, como se fosse criada uma “couraça” na “alma” do prisioneiro. O sofrimento psicológico cotidiano, a revolta diante das injustiças e o escárnio da guarda nazista, dos capatazes e dos prisioneiros promovidos a trabalhos destacados, tornam-se mais insuportáveis do que os castigos e as privações físicas na vida do prisioneiro no campo de concentração. Para tentar aplacar esse enorme sofrimento, os prisioneiros utilizam uma espécie de humor negro constante, que, terapeuticamente, ajuda-os a “criar distância” da situação presente para “permitir que a pessoa se coloque acima da situação, mesmo que somente por alguns segundos”. (Frankl, 2013, p. 62).

Outro aspecto muito curioso notado por Frankl é a ausência de qualquer manifestação do “instinto sexual” dos prisioneiros, tanto em seu comportamento cotidiano quanto nos sonhos que foram narrados entre eles. Frankl diz que é muito comum o prisioneiro sonhar com “pão, torta, cigarros e com uma banheira cheia de água quente” (Frankl, 2013, p. 44), mas que talvez por seu estado de subnutrição, algumas das suas necessidades mais primitivas prevalecem sobre qualquer forma de manifestação do “instinto sexual”. Frankl diz também que durante a reclusão nos campos de concentração há uma espécie de “hibernação cultural” do prisioneiro que só é rompida no tratamento de assuntos políticos, e exclusivamente quando esses assuntos podem resultar na libertação futura dos prisioneiros. Em contrapartida, os prisioneiros demonstram um “interesse ardente” pela religião e pelos assuntos de fé, tornando a “fuga para dentro de si” numa das principais fontes de esperança e conforto existencial. Entrementes, os planos de fuga vão surgindo cada vez mais frequentemente e vão se tornando cada vez mais ousados, pois juntamente com a indispensável “fuga para dentro de si” surge uma urgente “ânsia por solidão” que, ao mesmo tempo em que clama por mais privacidade pessoal, possibilita e exige cada vez mais liberdade existencial.

A terceira fase passa a analisar as reações psicológicas dos prisioneiros após a sua libertação dos campos de concentração. Inicialmente, mesmo estando libertos, chegando inclusive a receber cumprimentos e cigarros de soldados e ex-soldados que já se encontram à paisana, a desconfiança da intenção das pessoas e o estranhamento da situação recente deixam o prisioneiro confuso e atordoado. Frankl diz que mesmo sendo libertados do campo de concentração, o sentimento de liberdade ainda não é vivenciado imediatamente pelos prisioneiros. Quando estão sozinhos entre eles, há o compartilhamento de um sentimento de vergonha por terem desaprendido “o sentimento de alegria” após tudo o que passaram no campo de concentração. Gradativamente, o sentimento de liberdade vai se manifestando no ex-prisioneiro, junto com o sentimento de alegria por iniciar uma nova vida como uma pessoa novamente livre para fazer escolhas. Infelizmente, o final feliz não é para todos os sobreviventes: alguns dos prisioneiros que Frankl reencontrou demonstraram estar revoltados diante da injustiça humana que os fez sofrer demasiadamente ou então decepcionados por voltar à vida antiga sem reencontrar as pessoas amadas ou ainda amargurados por reencontrarem pessoas queridas que demonstraram indiferença pelo que eles sofreram enquanto estiveram presos.

Após passar pelo sofrimento decorrente da sua prisão em campos de concentração, Viktor Frankl voltou a exercer a sua profissão – porque a vocação, de fato, ele não chegou a abandonar – de psiquiatra, se especializando em adoecimentos existenciais e fundando uma nova teoria e técnica psicoterapêutica denominada Logoterapia.

A Logoterapia lida basicamente com o sentido da existência humana e a busca da pessoa por esse sentido. Para Frankl, a busca do indivíduo por um sentido para a sua existência é uma motivação primária em sua vida e não uma mera “racionalização secundária de impulsos instintivos” (Frankl, 2013, p. 124). A tese central da logoterapia é, portanto, a necessidade da "busca de sentido" do ser humano como uma necessidade primária para a manutenção da sua vida. E uma vez que essa tese fundamental foi gestado no absurdo da falta de sentido para o sofrimento humano, em um contexto totalmente desumanizador - como foram os anos de reclusão em campos de concentração -, a busca de sentido para esse sofrimento absurdo, empreendida por Viktor Frankl, torna-se uma evidência concreta da sua própria tese sobre a possibilidade do exercício da “liberdade última” da existência humana, que consiste na escolha pessoal de atitudes frente a um destino inalterável, podendo converter deste modo os sofrimentos psíquicos em triunfos existenciais e as tragédias pessoais em conquistas humanas.

Infelizmente, ao terminar a prazerosa leitura proporcionada por Em Busca de Sentido, o leitor poderá ficar sem respostas sobre algumas perguntas fundamentais para se entender melhor a epistemologia da Logoterapia. Por exemplo, será que há algum tipo de sentido latente na gênese do ser humano que permaneça em potencial ao longo de toda a sua vida? Há alguma concepção de sentido individual que seja comum a todos os seres humanos? Como a teoria da Logoterapia compreende e se insere diante de temas filosóficos como metafísica, ontologia e ética?

Pode ser que algumas dessas perguntas sejam respondidas em outros livros de Viktor Frankl e de seus seguidores, ou quem sabe não o sejam simplesmente porque o autor não considerou importante respondê-las. De qualquer modo, a edição nacional de Em Busca de Sentido traz dois capítulos complementares intitulados “Conceitos fundamentais de Logoterapia” e “A tese do otimismo trágico” que trazem o esclarecimento parcial do conceito de Logoterapia, os seus principais postulados e alguns exemplos da sua aplicação prática no contexto de psicoterapia. Esse conteúdo enriquece ainda mais as principais ideias da narrativa autobiográfica de Viktor Frankl e é possível que ele produza no leitor curioso tantas perguntas quanto maior for o seu interesse pelo assunto abordado. Entretanto, não deve se perder de vista que aquilo que realmente precisa ser lido pelos leitores de modo geral já pode ser encontrado no “ensaio psicológico” de Viktor Frankl sobre a sua terrível experiência em campos de concentração e em sua profunda análise existencial sobre o “animal criador por excelência”, aquele que, “condenado a tender conscientemente para um objetivo”, precisa “ocupar-se da arte da engenharia”, abrindo “para si mesmo um caminho, eterna e incessantemente, para onde quer que seja”.

Referências

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Cadernos da Casa Morta. Trad. Nina Guerra e Felipe Guerra. Lisboa: Editorial Presença, 2003.

FRANKL, Viktor. Em Busca de Sentido: Um psicólogo no campo de concentração. Trad. Walter Schlupp e Carlos Aveline. São Leopoldo: Sinodal; Petrópolis: Vozes, 2013.