BARBOSA, Jurandir. Atrito: poemas descompromissados. São Paulo: Catrumano, 2011.
Os Atritos de Jurandir Barbosa
Dia a dia, o desejo do poeta é que seus sonhos sejam remendados. Cada dia não é um sonho, o sonho é o mesmo fragmentado sempre. Mesmo numa cidade grande, numa avenida paulista, os velórios em cada rosto. As garotas que prendem o poeta não são suficientes para tirá-lo de seu estado vagabundo. A poesia é a única capaz de remendar, de costurar o corpo. Com essas imagens poéticas e urbanas inicia-se a lavra poética de Jurandir Barbosa.
Um poeta procurando a si mesmo, um encontro consigo e com seus amores. Mas tal encontro só se consubstancia na poesia. Por isso, a recorrência da metalinguagem e da metapoesia em vários poemas. Um poeta verdadeiro, sem pretensões de honrarias, que não é 01 herói nem 01 mocinho.
Há um atrito, um som ruidoso que perpassa o peito do poeta. Como um Drummond numa cidade grande, mas com o coração no interior: São Paulo atritando Minas. Em sua lírica, o poeta montes-clarense vê uma são paulo necrófila matando humanos, que come devora e cospe em sua cara. Uma são paulo que não vai ao sertão. Desejo de voltar a este lugar que João Guimarães Rosa classificou como o mundo. Dizer até + a são paulo e voltar ao sertão. Lembrança saudosa de sua terra dos montes claros, da praça da matriz e do fruto sertanejo, o pequi.
Os nomes próprios em minúsculas não são usados apenas para cidades, mas para todos os substantivos. Tudo comum em Jurandir, tudo no mesmo nível, São Paulo não é maior que Minas, Rimbaud não é maior que Bandeira. As pouquíssimas palavras em maiúsculas que aparecem em sua lavra parecem terem sido equívocos tipográficos como “Deus” no poema “acordos”, já que “deus” no poema “uma carta para o meu amor” está minúsculo. Linguagem icônica, recorrência de símbolos matemáticos como o “+” que não soma, mas subtrai. Os números também, que perderam sua escrita extensa, reduzindo-se aos algarismos arábicos. Herança da poesia-processo de Wladimir Dias Pino. Também a estética concreta perpassa esse atrito como em “felicidade”, composto por uma única frase nominal “segunda-feira linda” em caixa alta. Os jogos linguísticos e trocadilhos como “lixo-luxo”, “a rodos, a rotos, arrotos” confirmam as suas leituras de poetas que sofreram influências de Décio Pignatari, Aroldo e Augusto de Campos.
Na sua lavoura, a primavera ao som de Tim Maia na vitrola, sentimento de melancolia, beijos dados e negados. No seu joguinho de rimas, a sensualidade típica de poeta marginal, de ter no seu corpo outro corpo. Porém, o final de uma poesia marcada por versos brancos é a ausência de rima, o gozo solitário. Somente a alma nua de um bailarino morto pela ira burguesa vem acalentar as buzinas, os passos, o atrito citadino; proporcionando cores ao poeta.
Amigos e artistas de Montes Claros se atritam com São Paulo e também com Goiás. Na tela, nenhum cinema comentado. Pessoas se atritando o tempo todo. E num descarregamento imagético, o poeta reconstrói uma matinê, hibisco e parangolivro. Diálogos, releituras, intertextos, antropofagia formam a sua poesia. Parangolé, meu irmão! Darcy, Wander, Tim, Beto Guedes, Sholmes, Aroldo Pereira, Tizumba, Rimbaud, Bandeira; música, cinema, dança e poesia; uma confluência de sons, de versos, de cidades, de revoltas e voltas. Poesia em puro êxtase ou seria um rivotril? Confluência de artes como intentou Hélio Oiticica.
Apaixonante e sensual é a lírica amorosa do poeta, marcada por desencontros, despedidas e partidas. Os gostos deixados nos lábios e os nunca sentidos. Razão de existência, verbo amar. Bailando em ritmos inconstantes, mãos sobre a moça de olhos azuis premeditando 01 gozo solitário. Amor e poesia andando lado a lado como bons namorados. Ousar o flerte, chamar a moça e com os olhos acompanhar, devorar, comer, desejar cheirá-la todinha. Não apenas louco, mas um poeta que sobrevive apenas com sua caneta e o caderno em branco para desenhar a história de amor. apenas um poeta a pirar. pirar é verbo. e verbo é amor.
Um tango no quarto escuro modelando o corpo, o amor abraçando, conduzindo a dança dos mansos até um jardim. Aí o tato da pele, a libertação dos corpos nus, consumindo o tesão que não para mesmo depois do gozo. Basta um tato da pele para o recomeço. Um jardim de infindas cores, universo de pétalas, de flores. Relações sinceras, verdadeiras. Os termos do casamento: ser uma moça leve que não precisa ser poeta, mas que saiba entender um. Mas se entendem poetas? Pede-se apenas que o casamento seja em regime total de comunhão de sonhos.
Sem cair no vulgar, traça imagens que sugerem o erotismo como no poema “guarde bem guardadinho”, um ei neguinha me guarde no seu cofrinho. Palavras mais fortes aparecem como cu, sacro escrotal, puto e puta (que também traz a semântica de insatisfeito) como lemos em seus “acordos”, em que as putas negociam as bocetas. os putos negociam a nação. Deus, dê vida longas as putas e, transforme brasília em sal. Aqui, não dá para não lembrar da esposa de Ló que virou o rosto para Sodoma e Gomorra quando de sua destruição, tornando-se uma estátua de sal. Pecado e punição.
Amor amplo capaz de atingir outros ares e outros patamares. O eu lírico em Montes Claros e um amor em Recife. Brasilidade nos vocativos, nada de baby, mas beibi. Telegrama de uma moça de 79 anos, paradoxo? A moça é a mãe D. Tereza, a que pariu a poesia.
Veia ferina, um poeta anarquista, um poeta ciente, consciente, de pena na mão se armando contra as instituições. Não fogem da sua lavra as sátiras a burguesia e a igreja, que incomodam tanto quanto Ginsberg (literatura, drogas e sexo). Assustar, indignar-se, o poeta que se cala é a puta que se vende. O inverso e o verso é um universo de amor... e também um campo minado. Buuuuuuuuuuummmmmmmmm. Explosão de letras e de sentimentos, um poeta-cristo cansado de tantos pregos e chagas. Como artista não deixa de criticar a arte ou, pelo menos, apontar o dedo indicador e balançá-lo para negar ritmos que, sobretudo, a massa julga bons. Assim para salvar o mundo é necessário destruir 01 cd de funk e 01 cd de pagode. Os que destruírem mais de 01 é herói. Uma poesia sincera que externa suas concepções de mundo, uma poesia não para ficar em cima de muros ou fazer média. Um poeta que mete o dedo na ferida, chuta o pau da barraca e que senta o bico na canela.
Convite para viver, para ser você. Eis a sua ponte. A poesia perpassando reflexões existenciais, não de forma metafísica como os simbolistas, mas de forma real-íssima. Brindar a vida, sem medo da morte, chorando e sonhando, crianças cujos sonhos não envelhecem. Acreditar que nestas pedras nascerão flores.
A timidez do poeta, sua ânsia de amar, de amar-se e ser amado convida para sua poesia a família, sobretudo, sua mãe D. Tereza e amigos, também amores que se foram que estão e que virão. E corajosamente enfrenta o velório de si, pois para a tristeza de muitos, alegrias de uns, seu coração bate. Batida de blues, estilo musical predominante em seus desatinos poéticos.
A lírica encomiástica homenageia personalidades singulares da cultura montes-clarense como Elthomar Santoro, o roqueiro, o poeta, o cantor louco que rompe portais e quebra tabus. Mirna Mendes, poeta da performance, de um grupo transa poética, aparece num trocadilho da essência humana bicho-gente, gente-bicho. Ao bailarino Igor Xavier suas letras de sonhos, mesmo que os galhos estejam secos. À Ana Flor seu adeus para um encontro com o cerrado, com o pequi e viola, com o retrato dela nos olhos. A Warlley Lopez, amigo, descarrega suas tensões e suas saudades. O último poema é uma carta ao seu amor, à sua mãe, Tereza. A poesia continua, mas em forma de prosa. As imagens da infância, as saudades. O amor maternal nunca foi substituído. Um verdadeiro filho grato aos cuidados e dedicação da mãe. Arrependimentos externados implícito e explicitamente. Uma vontade louca de não cessar esse amor pela mãe, sua melhor escola e sua melhor mulher. Quiçá sua melhor poesia.
“o amor é par/ mas só vale quando/ 01 + 01/ o amor nunca é ímpar/ nunca 01 e nem 03/ divino só quando 02”. DIVINO!