“CREPÚSCULO CIVIL” DE LÊDO IVO: MONOTONIA E BELEZA
1. Noite, Deus e Morte
Em um saldo na Feira do Livro de Pelotas fiz minha colheita: Crepúsculo Civil do poeta Lêdo Ivo.
Cinco reais a menos depois, eis-me aqui.
Desde o título, promete-se falar sobre a Noite. Outros temas enfrentados insistentemente são Deus e a Morte.
Esse trio está presente em vários dos seus 101 poemas.
A síntese das intenções do poeta é NOTURNO, no qual se pinta um quadro do anoitecer no centro do Rio diante de um Deus que, indiferente, fecha-se em si:
“Na igreja fechada
Deus está sozinho
Como um vagabundo
Num banco de praça”
Em outros poemas, exsurge o mesmo Deus mudo:
“E após as tempestades assassinas
Vem a bonança, a cerca que separa
De todos nós um Deus emudecido”
(A INUNDAÇÃO)
“Sou o centro de tudo
E guardo um Deus mudo
No meu coração”
(O REFÉM)
Há, também, um Deus que se oculta:
“Na água putrefata
Onde Deus se oculta
Eu também me escondo”
(O CARANGUEJO)
Fala, por esses versos, uma voz que, ainda que vacilantemente, busca o divino e, por isso mesmo, frustra-se diante do mutismo do Criador.
O Eu-poético preferiria que Deus não só falasse, mas fosse a própria linguagem:
“Perguntei a Deus
sua identidade
E ele respondeu:
‘Eu sou a Linguagem’”
(A INTERPELAÇÃO)
A mesma postura se aplica à natureza. É o que se verifica no seguinte verso no qual, na figura de um singelo caracol, também ela é interpelada:
“Falai! Confiai-nos agora o grande segredo”
(OS CARACÓIS)
O silêncio da criatura seria uma consequência do silêncio do próprio Criador.
O embate entre o Deus-Palavra (que se deseja) e o Deus-Ato (que se mostra) cria um efeito cômico em O RATO DA SACRISTIA. Também aqui, Deus é silente: até sua censura ao roedor é muda. Mas quando esse ganha voz (e até certa eloquência) cria-se no leitor a expectativa de, enfim, ouvir-se algo da boca de Deus, que, no entanto, prefere agir a falar.
Usou-se do divino, por fim, na composição do mais belo poema de amor do volume:
“O FUTURO DOS CORPOS
Quando não tivermos
mais nenhum desejo
ficaremos juntos
onde estiver Deus
no desfiladeiro
que saqueia as almas
e devolve aos corpos
a nudez final.
Quando apenas formos
o sopro do vento
e a pureza da água
a nossa união
resplandecerá
no céu libertado.”
Também a morte se faz presente em NOTURNO:
“Noite dos suicidas
e dos derrotados,
noite de quem perde
no jogo da vida”
Em outras poesias, tratou-se da morte sob uma perspectiva mais otimista. Essa não seria símbolo de derrota, mas uma ocasião para o recebimento de uma nova dádiva, uma nova vida. Por essa trilha seguem os versos:
“Livres de nós
ao céu subimos
e ao breve alento
de nossas almas
a aurora raia
no firmamento”
(A ASCENSÃO)
E ainda:
“Eu estava além da morte
onde a própria morte é vida”
(UMA CHUVA DE ALEGRIA)
A infinita sucessão de dias e noites chegou a ser utilizada como uma alegoria para o perpétuo ciclo de vida-morte-vida. Exploram-na OS DIAS DIVIDIDOS:
“Após o meio-dia, vem a noite
e, brandindo uma foice, vem a morte”
E RECOMEÇO:
“Além da noite escura encontramos o dia,
reinício da vida leve como palha
que estremece perene entre as estrelas”
A pena de Lêdo Ivo reservou até mesmo indolência à morte:
“Que a morte não me insulte
neste dia de sol”
(AMBIÇÃO DESCABIDA)
E sarcasmo à pompa dos ritos funerários:
“Os mortos também acabam, após tantas lágrimas
e missas cantadas e anúncios nos jornais”
(O SILÊNCIO INCOMPLETO)
“Após tanta reverência
e tantos salamaleques
lá se foi Sua Excelência
desta para melhor”
(CANDELÁRIA).
NOTURNO coloca a morte em pleno passeio público. Essa aproximação ente a Morte e a Cidade seria abordada também em outros poemas. Resultou daí, por sinal, a mais inusitada metáfora da obra, aquela que permitiu ao poeta ver nos caminhões de lixo carros funerários, a levar nossos dejetos a título de enterro antecipado:
“ANTECIPAÇÃO
Canto o lixo do Rio:
as latas amassadas,
as garrafas vazias
e os restos de comida.
Engordam a manhã,
em negros sacos plásticos,
os vômitos, os sonhos
e os brinquedos quebrados.
O caminhão de lixo
parado à nossa porta
tem um ar funerário.
Rumo a que cemitério
vamos, antecipados,
nesse enterro diário?”
Mas esse trio não exaure os temas abordados no livro.
Há ainda amor (O AMANTE APLICADO), humor (RESPOSTA NA PONTA DA LÍNGUA), terror (O DEMÔNIO e A BRUXA) e belas reflexões sobre a fugacidade da existência (O TRAPICHE, ENSEADA DE BOTAFOGO, PALHA DOURADA e A PASSAGEM).
2. Monotonia vocabular
Como aspecto negativo, é de se registrar a alta frequência de certas palavras: “noite”, “sol” e “dia” saltam insistentemente das páginas. Também há, em menor escala, abuso de “Deus”, “céu” e “estrela”.
Até mesmo os preciosismos se repetem. É o caso de “arrebol” (em CLARIDADE e ENSEADA DE BOTAFOGO), “miasma” (em O ANIMAL ENXOTADO, A PALAVRA FINAL, O CARANGUEJO e O TREMOR DA FOLHAGEM) e “coivara” (O TRAPICHE e INSÔNIA).
Se esse vocabulário ajuda a compor uma obra coerente do ponto de vista estético, também cansa o leitor.
3. Repetição e cansaço
O estilo repetitivo, por sinal, também se evidencia na composição dos versos. Alguns possuem irmãos gêmeos:
“O dia passa como um gavião”
(PALHA DOURADA)
“E os dias passam
Como baratas
Na escuridão”
(NO CAIS PHAROUX)
O lugar-comum do orvalho e seu caráter efêmero inspirou alguns desses versos-gêmeos:
“O orvalho, que é eterno, se evapora
chegada a sua hora”
(O TRAPICHE)
“E todo amor é o instante oblíquo
em que o orvalho se evapora”
(O DARDO)
Outro clichê, o uso de “concha” para designar o sexo feminino, repete-se em O AMANTE APLICADO:
“Por curiosidade
levantei tua saia
para ver-te inteira.
E em lugar da concha
fugida do mar
estava uma estrela”
E REFÚGIO:
“Nele me escondo
como todos os homens
refugiado em sua concha”
A monotonia e o cansaço deitam raízes por todo o livro. Veja, a propósito, os seguintes versos:
“O mundo se repete e se renova”
(SONETO DE INVERNO)
“Estou cansado de voltar
A nascer quando a aurora nasce”
(O GUERREIRO FATIGADO)
“O tempo dói
Em nossas vidas”
(NO CAIS PHAROUX)
Também as formas se repetem.
São trinta sonetos, dos quais vinte e seis possuem métrica alternativa.
O arranjo de HOSPITAL PINEL repete-se em AMBIÇÃO DESCABIDA: Seis dísticos e um monóstico.
Também NA PRAÇA MAUÁ, ESTAÇÃO CINELÂNDIA e O LAGARTO possuem a mesma arquitetura: Quatro tercetos.
A monotonia formal se mostra coerente com a insistência temática, a repetição de palavras e o cansaço do discurso.
Apesar da repetição (ou, quem sabe, graças a ela) Lêdo Ivo lapidou poemas de rara beleza, como os já citados NOTURNO, O FUTURO DOS CORPOS e ANTECIPAÇÃO.
Cabe, ainda, o registro de algo que não se encontra no livro: superabundância de referências literárias.
Algo que me incomoda nos poetas é sua tendência a dedicar versos e mais versos à própria poesia. E falam sobre o poeta e seu ofício e sobre a arte e sobre a palavra e etc.
O escritor alagoano deixou, é certo, sua quota de metapoesia: AS DUAS IRMÃS, O GUARDIÃO e PASSEIO NO JARDIM.
Na maioria das vezes, no entanto, não usou de rodeios e foi direto ao ponto: o drama humano.
Em um saldo na Feira do Livro de Pelotas não desenterrei um tesouro, mas descobri que o belo também se pode forjar na monotonia.