Viagem ao sem centro: Linguística Textual uma introdução panorâmica

Paula Regina Scoz Domingos Damázio

UFSC

O livro Linguística Textual: Introdução (1983) de Leonor Lopes Fávero e Ingedore G. Villaça Koch tem por objetivo disponibilizar aos leitores brasileiros uma “visão panorâmica” do recente ramo da Linguística: a Linguística Textual. A obra destina-se principalmente aos estudantes universitários que tenham interesse em colocar-se a par das teorias surgidas nas últimas décadas do polêmico conceito de texto.

As autoras possuem uma vasta produção bibliográfica dentro da área da Linguística sendo umas das precursoras da Linguística Textual no país, abrindo esse campo de estudo com suas traduções para o português de teóricos em sua maioria europeus, em meados dos anos 80.

Ingedore G. Villaça Koch atua como professora titular da Universidade Estadual de Campinas, onde implantou a área de estudo da linguística textual. Dentre os seus livros, contam-se: Ler e compreender, A coesão textual, A coerência textual, A inter-ação pela linguagem, O texto e a construção dos sentidos, Referenciação e discurso, entre outros.

Leonor Lopes Fávero atua como professora titular de Linguística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) e como professora titular de Língua Portuguesa da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Entre seus livros publicados, contam-se: Coesão e coerência textuais, Oralidade e escrita, Texto e Leitura, A Frase no Texto/Contexto, entre outros.

Linguística Textual: Introdução é, portanto, um livro que introduz no Brasil o novo ramo da linguística desenvolvida na Europa na década de 60. A hipótese motivadora desses estudos foi a de “rebaixamento” do império estrutural da palavra ou da frase para a promoção do até então praticamente intocado texto como forma específica da linguagem. As autoras promovem com o livro um roteiro de viagem dentro do labirinto do conceito de texto, e com isso abrem as portas para que haja uma assimilação crítica a respeito desse conceito multifacetado já nos primeiros anos da década de 80.

Por tratar-se de um livro destinado principalmente aos estudantes acadêmicos e por servir como um primeiro passo nos estudos sobre texto torna-se imprescindível a leitura desse novo “clássico” em disciplinas de graduação como a de Linguística Textual. O primeiro contato com o campo, portanto, pode ser realizado de maneira satisfatória através da inserção dessa bibliografia nos planos de aula dos professores universitários.

O livro é composto por uma nota introdutória e mais três capítulos que perfazem um caminho que vai da “regressão” histórica das origens do novo ramo, indo terminar no exame dos trabalhos que vêm sendo realizados por linguistas, em sua maioria alemães, além da bibliografia geral. Os capítulos se dividem em três, sendo eles: Capítulo 1 – A Linguística Textual; Capítulo 2 – Precursores da Linguística Textual e Capítulo 3 – A Linguística Textual na Europa.

O primeiro capítulo abre com a “regressão” histórica daquilo que veio a ser alcunhado por Linguística Textual. Os passos na criação desse quadro histórico partem por explicitar a motivação que deu origem ao ramo. Conforme as autoras, a partir da década de 60 sentiu-se a necessidade de extrapolar o limite da palavra e da frase para investigar o que seria o texto, que passou a ser considerado então como a forma de manifestação da linguagem por excelência. Surgem a seguir no âmbito acadêmico várias obras que tomam o conceito texto de modos diversos, o que gerou várias concepções e denominações também diversas de disciplinas que se propunham a tratar do texto. Assim, além de termos como análise transfrástica e gramática do texto houve outros como Textologia (Harweg), Teoria do Texto (Schmidt), Análise do Discurso (Harris, Pêcheux), etc.

Distingue-se três momentos fundamentais no desenvolvimento da Linguística Textual conforme a mudança no foco de estudo. A primeira fase da análise transfrástica ainda está muito relacionada ao estudo estrutural do texto. Sendo assim o texto é tomado por uma sequência coerente de enunciados e o seu principal objetivo é estabelecer relações entre os diversos enunciados.

Num segundo momento, nas gramáticas textuais, passou-se a refletir rudimentarmente o que faz com que um texto seja um texto, o que delimita um texto e de que forma é possível diferenciar os diversos textos. Essa mudança de perspectiva, portanto, foi essencial para que se pusesse como questão central o texto não como sequência, mas como fenômeno linguístico passível de ser investigado. No terceiro momento da trajetória da Linguística Textual o que finalmente adquire relevância é o texto no seu contexto pragmático. As teorias de texto privilegiam, portanto, as condições externas de produção e recepção dos textos.

O conceito de texto, ou, os conceitos de textos, das diferentes correntes teóricas são trazidos pelas autoras de forma a evidenciar uma gama de concepções existentes dentro a Linguística Textual. Essa é uma informação importante para que haja o conhecimento da relativização do conceito de texto que é abordado com diversos enfoques dependendo dos métodos utilizados. De maneira geral pode-se dizer que a Linguística Textual trabalha com textos delimitados explicitamente, como por exemplo um livro, um diálogo, etc e que esses textos, no plural, podem ser tomados como dados primários da linguística, ou seja, são o ponto de partida para a análise cientifica da linguagem.

Outro ponto importante que as autoras tentam esclarecer é a confusão estabelecida entre os termos texto e discurso. Devido à grande diversidade de concepções dos dois termos, tomou-se em alguns casos ambos como sinônimos para designar uma entidade. Essa troca se deve em alguma medida ao fato de que existem línguas como o alemão que apresentam somente o termo texto. Por causa dessa ambiguidade criou-se dois termos técnicos diferentes, na qual o discurso, conforme Dijk, é a unidade passível de observação, enquanto que texto é a unidade teoricamente reconstruída, subjacente ao discurso. Porém, há correntes que não fazem uma delimitação marcada entre discurso e texto, como por exemplo a Análise do Discurso, na qual o termo discurso possui um significado mais amplo que texto pois engloba os tipos de enunciados e as condições de produção. Dentro dessa concepção o texto seria uma forma de manifestação verbal resultante.

As autoras trazem ainda para a discussão “texto/discurso” o raciocínio de Harweg que postula para o texto a diferenciação êmico-ético. O texto é êmico e pertence a estrutura subjacente textual, e esta está por trás da superficialização de outros infinitos textos (éticos) possíveis. A união desses textos corresponderia portanto a um discurso. Então, conclui-se que texto pode ser tomado em duas acepções, primeiro em sentido lato designa toda e qualquer manifestação da capacidade textual humana através de sistemas de signos, segundo em sentido estrito os textos manifestam linguisticamente o discurso que forma um todo significativo contextual caracterizado pela coesão e pela coerência.

O segundo capítulo da obra versa sobre os precursores da Linguística Textual lato sensu e stricto sensu. Entre as linhas de pensamento citadas como precursoras lato sensu estão a retórica, a estilística e o formalismo russo. A retórica, segundo as autoras, encontra permanências dentro da Linguística Textual em dois aspectos: por definir precisamente as operações linguísticas subjacentes à produção do texto e por localizar o texto no processo global de comunicação. Quanto à estilística sabe-se que a ela delegou-se historicamente todas as relações acima do nível da frase, portanto, pelo menos teoricamente coube e caberia a estilística o plano do texto. Os formalistas, por sua vez, foram os primeiros a tratar o texto na sua imanência, o que foi um passo decisivo para os estudos não só linguísticos, como literários. As autoras citam além desses precursores os trabalhos do estruturalista Lévi-Strauss e do filósofo e linguista Bakhtin.

Entre os linguistas precursores stricto sensu as autoras citam: Hjelmslev, Harris, Pike, Jakobson, Benveniste, Pêcheux e outros. Hjelmslve é apontado como talvez o primeiro a esboçar uma definição do que seja texto, que para ele seria toda e qualquer manifestação da língua, seja escrita ou falada. Disso tem-se que se todo e qualquer ato de linguagem é um texto, a própria  língua é também um texto. Jakobson por seu lado contribuiu para a condução da Linguística ao estudo do discurso, ampliando o estudo das funções da linguagem. Benveniste é considerado como um dos pioneiros nos estudos sobre discurso pondo em realce a intersubjetividade, característica importante quando se faz uso da linguagem. Pêcheux é hoje consagrado como precursor direto dos atuais estudos sobre discurso que interrelacionam discurso, formação social e ideologia. Harris por sua vez é considerado o primeiro linguista moderno a reconhecer o discurso como objeto da linguística, tendo além disso realizado uma análise sistemática de textos. Pike foi fundador da tagmênica, que serviu de fundamento para inúmeros trabalhos no campo da análise do discurso.

O terceiro e último capítulo do Linguística Textual: Introdução se volta para o exame dos trabalhos que vinham sendo realizados por vários linguistas no campo da Linguística Textual. As autoras salientam que os estudos desses linguistas são “filiados” à diversas linhas de pesquisa, como a estruturalista, empenhada na descrição de propriedades específicas do texto ou discurso e a gerativista, que busca construir modelos de gramáticas textuais levando em conta as macroestruturas.

Seguindo a exposição do livro as autoras arrolam alguns dos autores mais importantes para a Linguística Textual até aquele momento (1983), que ainda não haviam sido “divulgados” nos meios acadêmicos brasileiros, assim como suas obras mais relevantes, sendo eles: Halliday, Weinrich, Drucot, Isenberg, Lang, Dressler, Van Dijk e Petofi. Procede-se, portanto, a uma resenha informativa dos trabalhos desses autores empenhados na pesquisa das propriedades inerentes ao texto, como também na construção de modelos de gramáticas textuais.

O percurso sugerido pelas autoras partiu de uma apresentação histórica da atualmente denominada disciplina Linguística Textual, ou seja, das motivações e dos momentos importantes para o estabelecimento de um novo campo dentro da Linguística, indo chegar nas mais recentes pesquisas (até 1983) desenvolvidas por linguistas europeus. Ainda nesse caminho as autoras trataram de buscar elementos que precederiam ou que se relacionariam como precursoras da Linguística Textual, influenciando esta, portanto, de alguma maneira. Com isso, a obra parece ter sido disposta de modo a cumprir com a função que assume no título, quer seja, a de ser uma introdução ao tema proposto. Por ser uma introdução cabe ao leitor buscar aprofundar mais adiante os temas de maior pertinência para si.

Pode-se destacar alguns aspectos relevantes que foram postos em discussão pelas autoras, como por exemplo, os momentos que marcam, ao longo da Linguística Textual, as novas concepções a respeito de texto indo gradualmente se afastando da influência inicial do estruturalismo até chegar as mais recentes teorias de texto que enfatizam o texto enquanto interação. Outro aspecto relevante discutido no livro é a da tensão terminológica entre texto e discurso, que por si só parece evidenciar o caráter multifacetado desses conceitos escorregadios. A busca pelo texto extrapola os limites da linguística para perambular por vários outros campos do humano, demasiado humano.

Com base nessas considerações é relevante que seja acentuado a importância do primeiro capítulo da obra como fonte necessária para uma boa formação. Ao estudante é recomendado a leitura específica desse capítulo, pois considera-se indispensável o conhecimento histórico da criação do ramo da Linguística Textual. Dessa forma torna-se evidente que todo saber é construído, e mais ainda que todo saber é composto por diversos outros saberes que não um único e absoluto. As diversas teorias que tentam tratar desse emaranhado chamado texto é um exemplo claro dessa diversidade que a cada novo ângulo oferece uma nova concepção do próprio objeto de pesquisa.

Após percorrer os labirintos da Linguística Textual com o fio condutor proposto pelas autoras na sua Introdução, mostra-se válida a recomendação do livro como aporte tanto aos iniciados no assunto como aos já familiarizados. Por ser uma obra fundante a sua leitura se torna extremamente indicada e até mesmo imprescindível por parte de todos aqueles que queiram adentrar no universo da Linguística Textual. Nada melhor do que fazer essa caminhada acompanhado das ainda hoje grandes pesquisadoras brasileiras da área.

Bibliografia

FÁVERO, Leonor Lopes; KOCH, Ingedore G. Villaça. Linguística Textual: Introdução. São Paulo: Cortez, 1983. 112 p