A INQUISIÇÃO
Guilherme, nascido Marigny, era irmão de Enguerrand Le Portier, o obsequioso ministro das finanças e das construções de Filipe, o Belo. Como seu irmão, era um homem ambicioso. Ordenado padre aos vinte e dois anos, começara uma carreira vitoriosa na administração pública exercendo o cargo de secretário do rei. Nesse posto burocrático ficara durante dois anos, mas não era isso que desejava para sua vida. Sabia que como secretário de Filipe o Belo, a sua carreira não iria além de mero despachos sem importância, pois os assuntos mais explosivos do reino jamais eram discutidos com ele. Filipe era um rei centralizador e jamais abdicava da sua autoridade, tratando, ele mesmo,dos problemas mais delicados do reino.
Assim, aproveitando a ascensão do seu irmão mais velho, Enguerrand, manobrou para que lhe fosse arrumado um posto no tribunal da Santa Inquisição. Com a ascensão de Bertrand du Goth para Papa, e a sua nomeação como Clemente V, Guilherme de Marigny aproveitou a ascendência que a coroa francesa assumira sobre o Papado para se tornar o Grande Inquisidor de França. Foi assim que ele se tornou o temido de Guilherme de Paris.
Sua nomeação para esse alto posto na hierarquia da Igreja lhe dava um incomensurável poder. Era, por assim dizer, a maior autoridade judiciária da Igreja em solo francês. E como a Igreja detinha um imenso poder legal sobre a aplicação do direito em todos os territórios sujeitos á influência papal, podia-se dizer que sob sua autoridade estavam, praticamente, todos os cidadãos da França.
Mas agora,, com a denúncia assinada por Guilherme de Nogaret em mãos, o Inquisidor Guilherme de Paris não tem muita certeza do que deve fazer. Consulta seu fiel acessor Nicolau d’Ennezat.
– Como devemos tratar essa denúncia? – pergunta ele a d’Ennezat. – Oficialmente somente o Papa pode abrir um processo contra a Ordem do Templo. Somente ele tem autoridade para isso – concluiu.
– Já consultaste Sua Santidade? – perguntou d’Ennezat.
– Já o fiz– disse o Inquisidor.– Mas até agora ele não respondeu.
– E creio que jamais o responderá – sentenciou d’Ennezat. – Ele vai deixar que as coisas se resolvam por si mesmas. O Papa Clemente não tem coragem para enfrentar o Templo, nem para afrontar o rei.
– Então teremos que conduzir esse assunto segundo nosso próprio julgamento – suspirou, resignado, o Inquisidor.
– Podeis fazer isso sem qualquer problema jurídico – disse d”Ennezat.– Oficialmente tendes autoridade para abrir processos em qualquer acusação de heresia, feita por qualquer cidadão do país. Não precisas, para isso, da autorização do Papa.
D’ Ennezat era advogado formado pela Universidade de Paris e especialista em direito canônico.
– Sim,– respondeu Guilherme. – Mas neste caso, pesa-me a responsabilidade de abrir um processo contra uma instituição tão respeitada e veneranda como o Templo. Sabemos o motivo pelos quais essas acusações estão sendo feitas.
– É verdade que os motivos são francamente políticos, mas nada impede que sejam verdadeiras as acusações – lembra d’Ennezat.
– Credes que sejam verdadeiras? – arguiu Guilherme.
– Não é de hoje que se fala de certas coisas escabrosas, praticadas pelos Templários – responde d’ Ennezat.
– Eles fizeram muitos inimigos – disse Guilherme.
– O poder e o sucesso sempre incomoda quem não o tem e geralmente acaba perdendo quem o tem e não partilha – responde, filosoficamente, d”Ennezat.
Guilherme de Paris sabe que, oficialmente, uma denúncia sobre heresia está afeita ao Tribunal da Inquisição. Foge tanto da autoridade do Papa quanto do rei. É competência do Inquisidor abrir um processo de investigação ou arquivá-lo.
Como Inquisidor, Guilherme sabe que poderá desgostar o Papa se o fizer, mas tem certeza que fará um inimigo poderoso se não o fizer. Pondera. Não ignora que o proprio Clemente V é submisso á Filipe o Belo. Foi ele que patrocinou a sua eleição, garantiu a sua posse e praticamente o obrigou a mudar a sede do Papado de Roma para Avinhão.
O Papa não tem força, nem personalidade para enfrentar o rei. Quem pode o mais pode o menos, pensa o arguto Inquisidor. Se o rei pode manipular o Papa, quem é ele para resistir ao rei?
Depois, não é ele próprio, Gulilherme de Paris, simpatizante de Filipe o Belo? Não foi seu secretário durante dois anos? Não foi o próprio rei que o colocou nesse cargo? Ele conhece bem o rei. Sabe que costuma premiar os que lhe são fieis, mas não tem contemplação com aqueles que o afrontam. Certamente não o perdoará se ele o trair. Depois, quem são, para ele, os Templários? Ele os via como uma casta de ignorantes, que haviam enriquecido á sombra do poder que lhe dera a Igreja, e que agora se portavam como se fossem o próprio poder. Eram arrogantes, autoritários, ciosos da sua independência pessoal, afrontavam a autoridade secular e estavam cagando para a autoridade diocesana. Pois não haviam recusado a proposta do Sumo Pontífice, de que eles se fundissem com os Cavaleiros do Hospital de São João?
Sim. Esse era o desejo do Papa. Clemente tentara, por todos os meios, convencer Jacques de Molay que a sobrevivência dos Templários estava condicionada a uma fusão do Templo com o Hospital. Colocara o velho Grão-Mestre a par das acusações que eram feitas contra os Templários, e das diatribes que o rei Filipe tinha pronunciado contra a Ordem. Mas a resposta debochada que o Grão-Mestre dera era que seria: “...perigoso para as almas, porque segundo creio, são raros aqueles que queiram mudar sua vida e seus costumes”.
Malditos arrogantes. Então eles se julgavam donos da verdade? Donos do mundo? Não queriam mudar suas formas de viver? Não queriam largar o osso? Queriam manter a sua independência a todo custo? Talvez fosse verdade as suspeitas de seu irmão e do ministro Nogaret, de que os Templários estariam tramando para formar um república independente, se- melhante á que o venezianos haviam fundado e pela qual os habitantes de Flandes estavam lutando.
E aquele Jacques de Molay, com sua longa barba de profeta, seu vistoso manto branco, ornado por aquela emblemática cruz vermelha? Era um ignorante, analfabeto, bruto, mas ostentava, com aquela indumentária toda e seu porte altivo de guerreiro, uma arrogância sem limites.
De repente, Guilherme de Paris descobriu que odiava os Templários. Sempre os odiara, mas jamais tinha tido uma percepção tão fina desse sentimento, como naquele instante. E uma sensação de infinito poder percorreu todo seu corpo. Sentiu um arrepio de prazer na espinha ao pensar que tinha nas mãos o poder de vida e morte sobre os homens, que um dia antes, desfilavam, garbosos, pelas ruas das cidades francesas, ostentando aquela cruz vermelha, como se ela fosse um escudo que o próprio Deus lhes houvesse dado. Eles agora estavam em suas mãos. Podia esmagá-los, triturá-los, quebrar seus ossos, arrancar suas peles, submetê-los ao suplício dos borzeguins, esticar seus nervos e ossos até o rompimento... Uma onda de prazer o invadiu oo pensar no vulto orgulhoso de Jacques de Molay se contorcendo ao ranger das roldanas, sentindo suas canelas romperem, seus braços serem arrancados do corpo, seu peito explodir á força do esticamento do seu corpo em todas as direções... Gozando aquele sentimento de prazer sádico, nem percebeu que sua mão fechava com força, como se estivesse esmagando um ovo.
São cento e quarenta acusados que estão presos no Castelo de Chinnon e nas próprias masmorras do Templo, em Paris. Entre eles, quatro dos seus mais importantes dignatários. Em Chinnon estão, em celas separadas, Jacques de Molay, Grão-Mestre da Ordem, Hugo de Pairaud, Grande Visitador da França, Geoffrey de Charnay, Preceptor da Normandia e Geoffrey de Gonneville, preceptor de Aquitânia. Presos desde o dia 13 de outubro, durante cinco dias, a única alma viva que viram foi o carcereiro que lhe trazia a ração diária de comida.
Instalado na sala do Templo, onde montou o seu gabinete, Gulherme de Paris, acompanhado pelo seu fiel secretário Nicolau d’Ezennat, que se está sentado do seu lado esquerdo, ele está preparado para começar o interrogatório dos acusados. Sentado em uma mesa de carvalho, sustentada por quatro cavaletes, colocados sob um estrado, iluminada apenas por algumas velas postas em candelabros de bronze, ele veste o seu burel branco, próprio para a ocasião. Ao seu lado direito, um monge serve como escrivão, para registrar as respostas. Num canto da sala, meio oculto pelas sombras que dançam na grande sala mal iluminada, um indivíduo armado, vestido com uma cota de malha vermelha, se posta, silenciosamente, com um semblante impassível: é o carrasco. Era a manhã do dia 21 de outubro de 1307.
– Vosso nome e posição na Ordem do Templo– ordena Guilherme de Paris.
– Geoffrey de Charney, preceptor da Normandia – responde o acusado, sentado em um banquinho de madeira, sem encosto nem espaldar.
– Tendes conhecimento das acusações que estão sendo feitas contra vós?
– .Não, Excelência.
Guilherme de Paris pede a d’Ezennat que leia as acusações.
– Sois acusado de negar a divindade de Cristo, renegar Deus, a virgindade de Maria, e a virtude dos santos reconhecidos pela Santa Madre Igreja;
– Sois acusado de cometer atos de sacrilégio,cuspindo na cruz, na imagem do Nosso Senhor Jesus Cristo, e de proferir palavras e fazer gestos obscenos e ofensivos a estes símbolos sagrados;
– Sois acusado de praticar atos de sodomia, como o coito com seus próprios irmãos e dar beijos obscenos em suas partes íntimas;
– Sois acusado de alterar a liturgia da Santa Missa e criar um ritual de missa próprio, que ofende e transgride os ritos da Santa Madre Igreja;
– Sois acusado de zombar e duvidar dos sacramentos instituidos pela Santa Madre Igreja, e incitar os vossos irmãos a fazer o mesmo;
– Sois acusado da prática de idolatria, adorando ídolos estranhos e praticando liturgias condenadas pela Santa Madre Igreja;
– Sois acusado, como alto dignatário da Ordem, de usurpar as funções eclesiásticas, absolvendo os irmãos da vossa Ordem de seus pecados....
E por ai afora, foi o secretário de Guilherme de Paris, o Inquisidor, desfilando um imenso rol de acusações, a maioria delas repetidas, que levou pelo menos duas horas para serem lidas. A todas o preceptor da Normandia ouviu, sem emitir uma única palavra. Pudera, eram tantas e tão absurdas as acusações que ele, perplexo, nem sabia como refutá-las. Limitava-se a abrir a boca e os olhos a cada uma das acusações, como se estivesse ouvindo um rol de disparates que ele mesmo, dificilmente acreditaria que alguém pudesse praticar. No entanto, era a ele e a seus irmãos que estavam sendo imputadas aquelas imensas barbaridades.
– Sois culpado ou inocente dessas acusações? – perguntou Gulherme de Paris.
Sua voz parecia sair do fundo de uma caverna. Geoffroy de Charney ainda não se recuperara da sua perplexidade e não se dera conta da periculosidade da situação em que estava sendo colocado.
– Lembrai-vos que temos meios para extrair de vós a verdade, e que os usaremos sem qualquer piedade e sem qualquer consideração para com a vosssa posição – vociferou d’ Ennezat, com uma frieza na voz, que fez perpassar, na espinha do preceptor da Normandia, um arrepio. Ele sabia do que aquele miserável estava falando: tortura. Imediatamente empalideceu e seu coração contraiu-se como se estivesse sendo esmagado por uma morsa de ferreiro.Ainda assim, teve presença de es-pírito suficiente para dar uma resposta temperada por um certo humor.
– Se algum homem praticou todos esses crimes que Vossa Excelência nomeou, ele já está no inferno – disse o preceptor, tentando um simulacro de sorriso, que logo se desfez ao ver a face rígida e severa dos inquisidores.
– Advirto-vos que não façais troça deste tribunal porque não teremos constrangimento em usar todos os meios á nossa disposição para arrancar-vos a verdade – falou, desta vez, o próprio Guilherme de Paris.
– Já temos as confisssões de diversos irmãos da vossa Ordem, e pouparies tempo para nós e sofrimento para vós se confessásseis os vossos crimes – ajuntou d’ Ennezat.
– Nada tenho a confessar– disse Geoffroy de Charney. – Reputo que tais acusações são falsas e absurdas. E quem a fez, ou confessou, comete perjúrio e levanta falso testemunho – disse o preceptor da Normandia, que finalmente parecia se dar conta do que estava realmente acontecendo.
– Veremos se vossos Irmãos dirão a mesma coisa – disse Guilherme de Paris.– Devolvei o prisioneiro á sua cela – ordenou ele aos dois arqueiros que guardava, impassíveis como estátuas, a porta da sala.
CONTINUA
DO LIVRO " A RECONSTRUÇÃO DO TEMPLO"- O ROMANCE DA MAÇONARIA- NO PRELO
Guilherme, nascido Marigny, era irmão de Enguerrand Le Portier, o obsequioso ministro das finanças e das construções de Filipe, o Belo. Como seu irmão, era um homem ambicioso. Ordenado padre aos vinte e dois anos, começara uma carreira vitoriosa na administração pública exercendo o cargo de secretário do rei. Nesse posto burocrático ficara durante dois anos, mas não era isso que desejava para sua vida. Sabia que como secretário de Filipe o Belo, a sua carreira não iria além de mero despachos sem importância, pois os assuntos mais explosivos do reino jamais eram discutidos com ele. Filipe era um rei centralizador e jamais abdicava da sua autoridade, tratando, ele mesmo,dos problemas mais delicados do reino.
Assim, aproveitando a ascensão do seu irmão mais velho, Enguerrand, manobrou para que lhe fosse arrumado um posto no tribunal da Santa Inquisição. Com a ascensão de Bertrand du Goth para Papa, e a sua nomeação como Clemente V, Guilherme de Marigny aproveitou a ascendência que a coroa francesa assumira sobre o Papado para se tornar o Grande Inquisidor de França. Foi assim que ele se tornou o temido de Guilherme de Paris.
Sua nomeação para esse alto posto na hierarquia da Igreja lhe dava um incomensurável poder. Era, por assim dizer, a maior autoridade judiciária da Igreja em solo francês. E como a Igreja detinha um imenso poder legal sobre a aplicação do direito em todos os territórios sujeitos á influência papal, podia-se dizer que sob sua autoridade estavam, praticamente, todos os cidadãos da França.
Mas agora,, com a denúncia assinada por Guilherme de Nogaret em mãos, o Inquisidor Guilherme de Paris não tem muita certeza do que deve fazer. Consulta seu fiel acessor Nicolau d’Ennezat.
– Como devemos tratar essa denúncia? – pergunta ele a d’Ennezat. – Oficialmente somente o Papa pode abrir um processo contra a Ordem do Templo. Somente ele tem autoridade para isso – concluiu.
– Já consultaste Sua Santidade? – perguntou d’Ennezat.
– Já o fiz– disse o Inquisidor.– Mas até agora ele não respondeu.
– E creio que jamais o responderá – sentenciou d’Ennezat. – Ele vai deixar que as coisas se resolvam por si mesmas. O Papa Clemente não tem coragem para enfrentar o Templo, nem para afrontar o rei.
– Então teremos que conduzir esse assunto segundo nosso próprio julgamento – suspirou, resignado, o Inquisidor.
– Podeis fazer isso sem qualquer problema jurídico – disse d”Ennezat.– Oficialmente tendes autoridade para abrir processos em qualquer acusação de heresia, feita por qualquer cidadão do país. Não precisas, para isso, da autorização do Papa.
D’ Ennezat era advogado formado pela Universidade de Paris e especialista em direito canônico.
– Sim,– respondeu Guilherme. – Mas neste caso, pesa-me a responsabilidade de abrir um processo contra uma instituição tão respeitada e veneranda como o Templo. Sabemos o motivo pelos quais essas acusações estão sendo feitas.
– É verdade que os motivos são francamente políticos, mas nada impede que sejam verdadeiras as acusações – lembra d’Ennezat.
– Credes que sejam verdadeiras? – arguiu Guilherme.
– Não é de hoje que se fala de certas coisas escabrosas, praticadas pelos Templários – responde d’ Ennezat.
– Eles fizeram muitos inimigos – disse Guilherme.
– O poder e o sucesso sempre incomoda quem não o tem e geralmente acaba perdendo quem o tem e não partilha – responde, filosoficamente, d”Ennezat.
Guilherme de Paris sabe que, oficialmente, uma denúncia sobre heresia está afeita ao Tribunal da Inquisição. Foge tanto da autoridade do Papa quanto do rei. É competência do Inquisidor abrir um processo de investigação ou arquivá-lo.
Como Inquisidor, Guilherme sabe que poderá desgostar o Papa se o fizer, mas tem certeza que fará um inimigo poderoso se não o fizer. Pondera. Não ignora que o proprio Clemente V é submisso á Filipe o Belo. Foi ele que patrocinou a sua eleição, garantiu a sua posse e praticamente o obrigou a mudar a sede do Papado de Roma para Avinhão.
O Papa não tem força, nem personalidade para enfrentar o rei. Quem pode o mais pode o menos, pensa o arguto Inquisidor. Se o rei pode manipular o Papa, quem é ele para resistir ao rei?
Depois, não é ele próprio, Gulilherme de Paris, simpatizante de Filipe o Belo? Não foi seu secretário durante dois anos? Não foi o próprio rei que o colocou nesse cargo? Ele conhece bem o rei. Sabe que costuma premiar os que lhe são fieis, mas não tem contemplação com aqueles que o afrontam. Certamente não o perdoará se ele o trair. Depois, quem são, para ele, os Templários? Ele os via como uma casta de ignorantes, que haviam enriquecido á sombra do poder que lhe dera a Igreja, e que agora se portavam como se fossem o próprio poder. Eram arrogantes, autoritários, ciosos da sua independência pessoal, afrontavam a autoridade secular e estavam cagando para a autoridade diocesana. Pois não haviam recusado a proposta do Sumo Pontífice, de que eles se fundissem com os Cavaleiros do Hospital de São João?
Sim. Esse era o desejo do Papa. Clemente tentara, por todos os meios, convencer Jacques de Molay que a sobrevivência dos Templários estava condicionada a uma fusão do Templo com o Hospital. Colocara o velho Grão-Mestre a par das acusações que eram feitas contra os Templários, e das diatribes que o rei Filipe tinha pronunciado contra a Ordem. Mas a resposta debochada que o Grão-Mestre dera era que seria: “...perigoso para as almas, porque segundo creio, são raros aqueles que queiram mudar sua vida e seus costumes”.
Malditos arrogantes. Então eles se julgavam donos da verdade? Donos do mundo? Não queriam mudar suas formas de viver? Não queriam largar o osso? Queriam manter a sua independência a todo custo? Talvez fosse verdade as suspeitas de seu irmão e do ministro Nogaret, de que os Templários estariam tramando para formar um república independente, se- melhante á que o venezianos haviam fundado e pela qual os habitantes de Flandes estavam lutando.
E aquele Jacques de Molay, com sua longa barba de profeta, seu vistoso manto branco, ornado por aquela emblemática cruz vermelha? Era um ignorante, analfabeto, bruto, mas ostentava, com aquela indumentária toda e seu porte altivo de guerreiro, uma arrogância sem limites.
De repente, Guilherme de Paris descobriu que odiava os Templários. Sempre os odiara, mas jamais tinha tido uma percepção tão fina desse sentimento, como naquele instante. E uma sensação de infinito poder percorreu todo seu corpo. Sentiu um arrepio de prazer na espinha ao pensar que tinha nas mãos o poder de vida e morte sobre os homens, que um dia antes, desfilavam, garbosos, pelas ruas das cidades francesas, ostentando aquela cruz vermelha, como se ela fosse um escudo que o próprio Deus lhes houvesse dado. Eles agora estavam em suas mãos. Podia esmagá-los, triturá-los, quebrar seus ossos, arrancar suas peles, submetê-los ao suplício dos borzeguins, esticar seus nervos e ossos até o rompimento... Uma onda de prazer o invadiu oo pensar no vulto orgulhoso de Jacques de Molay se contorcendo ao ranger das roldanas, sentindo suas canelas romperem, seus braços serem arrancados do corpo, seu peito explodir á força do esticamento do seu corpo em todas as direções... Gozando aquele sentimento de prazer sádico, nem percebeu que sua mão fechava com força, como se estivesse esmagando um ovo.
São cento e quarenta acusados que estão presos no Castelo de Chinnon e nas próprias masmorras do Templo, em Paris. Entre eles, quatro dos seus mais importantes dignatários. Em Chinnon estão, em celas separadas, Jacques de Molay, Grão-Mestre da Ordem, Hugo de Pairaud, Grande Visitador da França, Geoffrey de Charnay, Preceptor da Normandia e Geoffrey de Gonneville, preceptor de Aquitânia. Presos desde o dia 13 de outubro, durante cinco dias, a única alma viva que viram foi o carcereiro que lhe trazia a ração diária de comida.
Instalado na sala do Templo, onde montou o seu gabinete, Gulherme de Paris, acompanhado pelo seu fiel secretário Nicolau d’Ezennat, que se está sentado do seu lado esquerdo, ele está preparado para começar o interrogatório dos acusados. Sentado em uma mesa de carvalho, sustentada por quatro cavaletes, colocados sob um estrado, iluminada apenas por algumas velas postas em candelabros de bronze, ele veste o seu burel branco, próprio para a ocasião. Ao seu lado direito, um monge serve como escrivão, para registrar as respostas. Num canto da sala, meio oculto pelas sombras que dançam na grande sala mal iluminada, um indivíduo armado, vestido com uma cota de malha vermelha, se posta, silenciosamente, com um semblante impassível: é o carrasco. Era a manhã do dia 21 de outubro de 1307.
– Vosso nome e posição na Ordem do Templo– ordena Guilherme de Paris.
– Geoffrey de Charney, preceptor da Normandia – responde o acusado, sentado em um banquinho de madeira, sem encosto nem espaldar.
– Tendes conhecimento das acusações que estão sendo feitas contra vós?
– .Não, Excelência.
Guilherme de Paris pede a d’Ezennat que leia as acusações.
– Sois acusado de negar a divindade de Cristo, renegar Deus, a virgindade de Maria, e a virtude dos santos reconhecidos pela Santa Madre Igreja;
– Sois acusado de cometer atos de sacrilégio,cuspindo na cruz, na imagem do Nosso Senhor Jesus Cristo, e de proferir palavras e fazer gestos obscenos e ofensivos a estes símbolos sagrados;
– Sois acusado de praticar atos de sodomia, como o coito com seus próprios irmãos e dar beijos obscenos em suas partes íntimas;
– Sois acusado de alterar a liturgia da Santa Missa e criar um ritual de missa próprio, que ofende e transgride os ritos da Santa Madre Igreja;
– Sois acusado de zombar e duvidar dos sacramentos instituidos pela Santa Madre Igreja, e incitar os vossos irmãos a fazer o mesmo;
– Sois acusado da prática de idolatria, adorando ídolos estranhos e praticando liturgias condenadas pela Santa Madre Igreja;
– Sois acusado, como alto dignatário da Ordem, de usurpar as funções eclesiásticas, absolvendo os irmãos da vossa Ordem de seus pecados....
E por ai afora, foi o secretário de Guilherme de Paris, o Inquisidor, desfilando um imenso rol de acusações, a maioria delas repetidas, que levou pelo menos duas horas para serem lidas. A todas o preceptor da Normandia ouviu, sem emitir uma única palavra. Pudera, eram tantas e tão absurdas as acusações que ele, perplexo, nem sabia como refutá-las. Limitava-se a abrir a boca e os olhos a cada uma das acusações, como se estivesse ouvindo um rol de disparates que ele mesmo, dificilmente acreditaria que alguém pudesse praticar. No entanto, era a ele e a seus irmãos que estavam sendo imputadas aquelas imensas barbaridades.
– Sois culpado ou inocente dessas acusações? – perguntou Gulherme de Paris.
Sua voz parecia sair do fundo de uma caverna. Geoffroy de Charney ainda não se recuperara da sua perplexidade e não se dera conta da periculosidade da situação em que estava sendo colocado.
– Lembrai-vos que temos meios para extrair de vós a verdade, e que os usaremos sem qualquer piedade e sem qualquer consideração para com a vosssa posição – vociferou d’ Ennezat, com uma frieza na voz, que fez perpassar, na espinha do preceptor da Normandia, um arrepio. Ele sabia do que aquele miserável estava falando: tortura. Imediatamente empalideceu e seu coração contraiu-se como se estivesse sendo esmagado por uma morsa de ferreiro.Ainda assim, teve presença de es-pírito suficiente para dar uma resposta temperada por um certo humor.
– Se algum homem praticou todos esses crimes que Vossa Excelência nomeou, ele já está no inferno – disse o preceptor, tentando um simulacro de sorriso, que logo se desfez ao ver a face rígida e severa dos inquisidores.
– Advirto-vos que não façais troça deste tribunal porque não teremos constrangimento em usar todos os meios á nossa disposição para arrancar-vos a verdade – falou, desta vez, o próprio Guilherme de Paris.
– Já temos as confisssões de diversos irmãos da vossa Ordem, e pouparies tempo para nós e sofrimento para vós se confessásseis os vossos crimes – ajuntou d’ Ennezat.
– Nada tenho a confessar– disse Geoffroy de Charney. – Reputo que tais acusações são falsas e absurdas. E quem a fez, ou confessou, comete perjúrio e levanta falso testemunho – disse o preceptor da Normandia, que finalmente parecia se dar conta do que estava realmente acontecendo.
– Veremos se vossos Irmãos dirão a mesma coisa – disse Guilherme de Paris.– Devolvei o prisioneiro á sua cela – ordenou ele aos dois arqueiros que guardava, impassíveis como estátuas, a porta da sala.
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DO LIVRO " A RECONSTRUÇÃO DO TEMPLO"- O ROMANCE DA MAÇONARIA- NO PRELO