O rei de mármore.
Filipe o Belo, e seu ministro Nogaret, já andavam tramando um ataque á Ordem do Templo há algum tempo. Certamente não fora por acaso que ele mandara vir de Bézier um estranho personagem, chamado Sequín de Florian, notório salteador de estradas, com uma enorme folha corrida de roubos e assassinatos a pesar-lhe na alma.
Dificilmente se poderia imaginar um encontro entre figuras tão diferentes, no gabinete de um rei.
– Soubemos que divides vossa cela com um cavaleiro Templário acusado de apostasia. É verdadeira essa informação? – perguntou Guilherme de Nogaret.
– Sim, meu Senhor, é verdade – respondeu Florian.
– E é verdade que ouvistes dele várias confissões acerca das práticas realizadas nas reuniões da Irmandade?
– Sim, Excelência.
– Podeis relatar o que ouvistes?
Filipe, com a cabeça apoiada pela mão sobre o queixo, postura que lhe era tradicional, fixou no rosto do bandido os seus grandes olhos azuis. Costumava fazer isso com todas as pessoas a quem interrogava. Um olhar distante, que vinha de um rosto que parecia uma estátua de mármore. Passava uma sensação de implacabilidade e frieza que costumava gelar o sangue da pessoa a quem ele era dirigido. Era como se fosse uma pinça que buscava lá dentro, na própria alma do interrogado, a verdade.
Mas o larápio parecia ser imune a essa forma de pressão. Filipe logo viu que aquele indivíduo não tinha razão nenhuma para ter medo dele. Afinal, era um homem condenado á morte. Talvez tenha percebido a importância do assunto que se desenrolava ali. Porque o próprio rei o teria mandado buscar numa prisão do interior, para ser interrogado sobre um assunto que nem de longe o interessava? Mas ao rei devia interessar, e muito. Sua cabeça criminosa logo percebeu que poderia tirar proveito disso. Bastaria saber jogar.
– Estou na prisão ha mais de dez anos, Majestade, e minha memória já não é tão boa. Além disso, pelo que sei, o juiz provincial já decretou que devo ser enforcado em breve. Assim, é-me dificil recordar o que aquele cavaleiro me contou – disse o meliante, olhando diretamente para o rei, ao invés de responder á Nogaret.
Filipe entendeu. Esboçou mentalmente um sorriso, que no entanto, não refletiu na sua face marmórea.” Eis um pilantra esperto”, pensou.
– Vossa vida será poupada se lembrardes com detalhes das coisas que ele vos disse – respondeu o rei.
O bandido olhou para Nogaret, como se esperasse uma confirmação. O ministro assentiu com um menear de cabeça.
– Bom, vejo que isso interessa muito á Vossas Excelências. Sendo assim, vou fazer um esforço para me lembrar – disse o bandido.
Nogaret manda chamar um escriba, para que tome por escrito o depoimento. Ordena também que o funcionário escreva a ordem de perdão para o depoente, a qual será despachada imediatamente para o juíz da província de Béziér. A vista disso, o homem chamado Sequin de Florian, depois de alguns minutos de estudada postura, na qual fazia conta de estar fazendo um enorme esforço para puxar pela memória, afirmou, com toda a convicção, que o tal cavaleiro havia dito que os Templários, há muito tempo, já não tinham mais fé nos preceitos e na doutrina da Santa Madre Igreja. Em consequência, tinham, eles mesmos desenvolvidos uma religião muito diferente daquela que os bons cristãos professavam. Por isso eles cuspiam na cruz, renegavam Cristo, diziam ser mentira que Jesus nascera de uma virgem, e que ressuscitara ao terceiro dia. Além disso, os votos de castidade e pobreza á que os membros da Ordem estavam sujeitos, há muito que também já não eram obedecidos.
– Os membros da Ordem, disse ele – quando sucumbiam aos desejos carnais, se satisfaziam entre si, praticando o coito com seus próprios companheiros.
Por isso esse Templário deixara a Ordem e fora parar na prisão, acusado pelos próprios companheiros, de praticar os exatos crimes que eles mesmos praticavam, completou ele.
– Infelizmente – disse o depoente, com um simulacro de sorriso – esse cavaleiro não poderá confirmar o meu depoimento, pois foi executado no ano passado.
Mas isso era o de menos para Filipe o Belo, e Guilherme Nogaret. Eles já tinham o necessário para começar a minar a Ordem do Templo. Aliás, essas informações já circulavam, á boca pequena, em círculos muito restritos. Na verdade, a Ordem do Templo se tornara uma sociedade secreta, semelhante a certas seitas que a Igreja condenava. Não importava a Filipe, e certamente menos ainda a Nogaret, que a tal testemunha tivesse vindo da região do Langedoc, sua terra natal. Ali, ha pouco mais de cinquenta anos, toda uma população fora chacinada, num dos mais crueis genocídios da História.
Langedoc era a terra dos cátaros, uma das grandes heresias que desafiara a autoridade da Igreja, e que só fora suprimida numa cruzada que ceifara a vida de mais de dez mil pessoas. A memória cátara ainda era muito forte na região, e o Templários tinham uma forte representatividade ali. Dizia-se até que eles eram os herdeiros naturais dos cátaros e tinham adotado, em suas práticas e na doutrina que professavam, uma boa parte da tradição albigense. Em outras palavras, a heresia albigense sobrevivia entre os Templários.
Não foi difícil para Nogaret achar outras testemunhas para corroborar o depoimento do bandido Florian. Logo encontra vários cavaleiros, expulsos da Ordem, dispostos a falar cobras e lagartos contra os seus antigos Irmãos.
Para sorte de Nogaret, o Inquisidor Geral da França, Guilherme de Marigny, também conhecido como Guilherme de Paris, é irmão de Enguerrand, o Conde Marigny, outro fiel ministro de Filipe. Este é o intendente da finanças reais, e também está muito interessado nos bens do Templo. Por isso, ao encontrar os cavaleiros dissidentes da Ordem, dispostos a testemunhar contra seus antigos Irmãos, Nogaret combina com Enguerant para que este os mantenha reclusos e incomunicáveis em Corbeil,sob a tutela de seu irmão, até que o processo contra a Ordem seja iniciado.
Num dia do mês de maio de 1306, Filipe havia se encontrado com o Papa Clemente V, em Poitiers, e apresentado a sua lista de acusações contra os Templários.
– Todas essas informações foram confirmadas por antigos membros da Ordem e Vossa Santidade poderá comprová-las pessoalmente – disse o rei.
– Mas se foram feitas por antigos cavaleiros, expulsos da Ordem, elas não poderiam estar contaminadas pelo desejo de vingança? – objetou o Papa.
– Essa possibilidade existe – repondeu Filipe, – mas não podemos descartá-las apenas por causa disso.
– Tendes razão quanto a isso – diz o Papa. – Gostaria de deixasseis comigo esses depoimentos para que eu possa estudá-los– sugeriu o Papa.
– Isso poderia durar muito tempo, e os Templários, enquanto isso, poderiam destruir todas as provas – protestou o rei.
– Permita-me Vossa Majestade que eu reflita um pouco sobre essa questão. Trata-se de um assunto extremamente delicado, que precisa ser tratado com muito critério – disse o Papa, como se estivesse constrangido perante a insistência do rei.
– Vossa Santidade é soberano nessa questão – respondeu Filipe. – Mas peço que leveis em consideração o perigo que a fé cristã está correndo, se essas acusações forem verdadeiras. Lembrais-vos da heresia Albigense. O quanto custou em recursos, para a Santa Igreja, eliminá-la.
– Hei de dar a esse assunto a importância que ele merece- respondeu o Papa – pensando, intimamente, o quanto podem ser hipócritas as pessoas, quando se trata de defender seus interesses.
Em Chipre, onde Jacques de Molay se encontrava, despachos vindo da França o havia alertado sobre os encontros havidos entre Filipe e o Papa. A Ordem tinha informantes dentro da corte do rei e também junto ao Papado. Há muito que ele já sabia que o Ministro Nogaret andava procurando antigos membros da Ordem para interrogá-los sobre as práticas da Irmandade. Estava seguro quanto a isso, mas assustou-se quando descobriu que tais cavaleiros haviam desaparecido e que provavelmente estavam reclusos em alguma fortaleza, sob a guarda de Nogaret, ou de Guilherme de Paris, o Grande Inquisidor. O caso começa a ficar complicado, e ele vai até Poitiers, onde o Papa se encontra, para uma entrevista com ele.
– Tendes conhecimento das acusações que estão sendo levantadas contra o Templo? – pergunta o Papa, solenemente.
– Tenho ouvido algumas insinuações, Santidade – responde o Grão-Mestre.
– O que tendes a dizer sobre isso ?– pergunta o Papa.
– Que são calúnias e grosseiras difamações, Santidade. Sabeis muito bem que a nossa Irmandade é extremamente dedicada a Santa Madre Igreja e jamais praticaria qualquer ato que profanasse a nossa fé – responde o Grão-Mestre.
– Essas acusações – continua – pelo que me foi informado, foram feitas por antigos cavaleiros expulsos da Ordem por causa do comportamento incompatível com os cânones da Irmandade. São mentiras urdidas pelo ódio e pelo espírito de vingança desses fascínoras.
A face pálida do Grão-Mestre do Templo estava vermelha de uma indignação, que suas espessas barbas não conseguiam ocultar. Nesse instante, Clemente percebeu o quanto Jacques de Molay parecia velho e frágil.
Teve pena e comiseração pelo ancião, que embora ostentasse uma figura imponente, em seu vistoso manto branco, ornado com a respeitada cruz vermelha, parecia o retrato da degeneração que uma vida monástica e sujeita a tantas pressões, como deveria ser a vida de um Grão-Mestre do Templo, provocava nas pessoas a ela submetida.
– Creio piamente nas vossas palavras – disse o Papa. – Tenho certeza de que se tratam de calúnias urdidas com maldade, inveja e desejo de vingança – completou.
– Tenho confiança em vosso julgamento, Santidade – respondeu o Grão-Mestre. – Não obstante – continuou – penso que seria conveniente, para a Ordem e para Vós, que se abrisse um inquérito, para que não paire nenhuma dúvida sobre a isenção de Vossa Santidade nem sobre a virtude dos nossos cavaleiros.
– Essa medida, será, sem dúvida, uma necessidade e a solução ideal – concordou o Papa, que intimamente já se decidira por ela. Ficou aliviado ao ver que o próprio Grão-Mestre concordava com isso e ele mesmo a sugeria.
– Podeis ficar sossegado – disse o Papa, batendo amigavelmente no ombro do imponente ancião. – O Templo não corre nenhum perigo – completou.
Nem bem Jacques de Molay tinha deixado a presença do Papa, ele se põe a escrever uma carta a Filipe, dando conta da sua entrevista com o Grão-Mestre e informando-o do inquérito que seria conduzido pela Igreja. Propõe a Filipe que este envie todos os relatórios que possui sobre o caso e promete deixar o rei a par de tudo que for apurado.
Assim, Clemente achava que podia aplacar a sanha do rei contra a Ordem. Mas enganava-se redondamente. Filipe não queria, de modo algum, deixar o assunto nas mãos da Igreja. Sabia que o Papa jamais seria capaz de fazer alguma coisa contra o Templo. Ela era por demais dependente dos Templários, de várias maneiras, para que tivesse a coragem de tomar qualquer medida que prejudicasse a Irmandade. Filipe tinha certeza que o Papa não levava a sério as acusações levantadas contra eles, pois tudo isso, se fosse verdade, era praticado intramuros, e não afetava as relações políticas, administrativas e principalmente, econômicas, que a Igreja mantinha com a Ordem do Templo.
O Papa também não via o perigo de que o Templo viesse a se se tornar uma nova heresia Albigense, como temia Filipe e seu ministro Nogaret. Até porque o Templo jamais proclamara qualquer desejo de independência em relação á Igreja, como outrora tinham feito os cátaros. “ A Igreja”, pensava Clemente, “pode muito bem viver como um marido traído, mas não pode suportar um divórcio que cause uma diminuição nos seus bens.” Que os Templários praticassem o que quer fosse em suas liturgias, desde que continuassem a alimentar o tesouro da Igreja, quando fosse preciso.
Filipe, como se viu, tinha seus próprios planos a respeito. Já decidira suprimir a Ordem do Templo e apossar-se dos seus bens. Não deixaria que a Igreja o impedisse de fazê-lo. Evidentemente, sabia que esse não seria um plano de fácil execução. A Ordem tinha seus defensores, mesmo no seu próprio palácio. Seu irmão, Carlos de Valois, era um deles. Sua filha, Izabel, em vias de casar-se com Eduardo, herdeiro do trono da Inglaterra, era outra. Afinal, Jacques de Molay, o Grão Mestre do Templo, fora seu padrinho de batismo.Violento debate é travado entre os ministros e conselheiros do rei.
– Vossa Majestade não pode deixar esse assunto nas mãos do Papa – insiste Nogaret. – Ele não é isento e jamais tomará qualquer atitude contra os Templários.
Enguerrand de Marigny apoia Nogaret. – Vossa Majestade deve invocar para si essa competência – disse ele. – Está dentro de Vossa autoridade uma decisão sobre esse assunto, visto que o Templo, sendo proprietário de terras no território francês é, por direito, vosso vassalo.
Carlos de Valois discorda. – O Templo não está sujeito á autoridade real, mas apenas ao Papa – argumenta. – Se Vossa Majestade tomar qualquer medida contra a Ordem, ela, além de ilegal, provocará a reação da Igreja e seus aliados.
– A autoridade do rei sobre seus vassalos supera a do Papa – insiste Marigny. – Não é assim, Senhor de Presles?
– Assim penso, Senhor Marigny – responde servilmente Raul de Presles, secretário do rei e advogado formado pela Universidade de Paris, representando aquela instituição na corte.
– Ademais – insiste Nogaret,– o próprio Papa concorda com a investigação sobre os crimes da Ordem. Vossa Majestade tem bastante ascendência sobre ele. Não acredito que ele seja capaz de qualquer reação mais séria se Vós tomardes esse assunto em vossas mãos.
– Não esqueçais, – disse Carlos Valois – que o Templo é a mais veneranda e respeitável Ordem de cavalaria existente em toda a Europa. Ao atentardes contra ela estareis atentando contra toda uma instituição.
– A defesa da fé justifica essa medida – respondeu Nogaret.
– Podeis fazê-lo com ou sem a aprovação pessoal do Papa – intervém Enguerrand.
– Como? – perguntou Carlos de Valois.
– Denunciando a Ordem ao Tribunal da Inquisição – disse ele. – Se a denúncia for formalizada, nem o Papa poderá impedir que o processo seja iniciado
- É isso mesmo – disse Nogaret, com os olhos brilhando, como se tivesse chegado a uma conclusão irrefutável. – E como vosso irmão Guilherme de Paris,é o Grande Inquisidor, não vejo nenhuma dificuldade em iniciarmos esse processo.
Durante todo esse debate, Filipe, o Belo, tinha se mantido na sua postura favorita. Cotovelo apoiado no espaldar do trono, cabeça apoiada nas mãos, olhos perdidos no vasio, não dissera uma palavra. Dir-se-ia enfadado por ter que estar ali, perdendo tempo com tal assunto. Mas sua postura não verbal mostrava muito pouco do que se passava em sua mente. Intimamente ele já tinha a convicção de que os Templários eram todos culpados das acusações que lhes eram feitas. E se convencera também que cabia a ele, como defensor da verdadeira fé, suprimir esse cancro que ameaçava toda a cristandade. E se o Papa era impotente para fazê-lo,ele, Filipe o Belo, Rei de Ferro, ou de mármore, como o chamavam, tomaria sobre seus ombros esse pesado fardo. A História julgaria quem tinha razão. E se a História viesse a provar, mais tarde, que ele estava errado, ele não estaria mais ali para pagar pelo seu erro. No momento, a única coisa certa a fazer era, na verdade, salvar a França da bancarrota e segurar a sua própria coroa, que certamente escaparia das suas mãos,se o reino quebrasse de vez.
Foi então que o rei se levantou e disse as únicas palavras que pronunciou naquela fatídica reunião.
– Preparai a acusação e enviai-a ao Tribunal do Santo Ofício – disse a Nogaret. – Depois reuni todos os senescais das cidades onde há preceptorias templárias para uma reunião aqui no palácio.
E imediatamente, deixou a sala de reuniões, como se fosse uma estátua de mármore, que de repente tivesse adquirido vida.
(continua)
DO LIVRO 'A RECONSTRUÇÃO DO TEMPLO- ROMANCE DA MAÇONARIA, NO PRELO
Filipe o Belo, e seu ministro Nogaret, já andavam tramando um ataque á Ordem do Templo há algum tempo. Certamente não fora por acaso que ele mandara vir de Bézier um estranho personagem, chamado Sequín de Florian, notório salteador de estradas, com uma enorme folha corrida de roubos e assassinatos a pesar-lhe na alma.
Dificilmente se poderia imaginar um encontro entre figuras tão diferentes, no gabinete de um rei.
– Soubemos que divides vossa cela com um cavaleiro Templário acusado de apostasia. É verdadeira essa informação? – perguntou Guilherme de Nogaret.
– Sim, meu Senhor, é verdade – respondeu Florian.
– E é verdade que ouvistes dele várias confissões acerca das práticas realizadas nas reuniões da Irmandade?
– Sim, Excelência.
– Podeis relatar o que ouvistes?
Filipe, com a cabeça apoiada pela mão sobre o queixo, postura que lhe era tradicional, fixou no rosto do bandido os seus grandes olhos azuis. Costumava fazer isso com todas as pessoas a quem interrogava. Um olhar distante, que vinha de um rosto que parecia uma estátua de mármore. Passava uma sensação de implacabilidade e frieza que costumava gelar o sangue da pessoa a quem ele era dirigido. Era como se fosse uma pinça que buscava lá dentro, na própria alma do interrogado, a verdade.
Mas o larápio parecia ser imune a essa forma de pressão. Filipe logo viu que aquele indivíduo não tinha razão nenhuma para ter medo dele. Afinal, era um homem condenado á morte. Talvez tenha percebido a importância do assunto que se desenrolava ali. Porque o próprio rei o teria mandado buscar numa prisão do interior, para ser interrogado sobre um assunto que nem de longe o interessava? Mas ao rei devia interessar, e muito. Sua cabeça criminosa logo percebeu que poderia tirar proveito disso. Bastaria saber jogar.
– Estou na prisão ha mais de dez anos, Majestade, e minha memória já não é tão boa. Além disso, pelo que sei, o juiz provincial já decretou que devo ser enforcado em breve. Assim, é-me dificil recordar o que aquele cavaleiro me contou – disse o meliante, olhando diretamente para o rei, ao invés de responder á Nogaret.
Filipe entendeu. Esboçou mentalmente um sorriso, que no entanto, não refletiu na sua face marmórea.” Eis um pilantra esperto”, pensou.
– Vossa vida será poupada se lembrardes com detalhes das coisas que ele vos disse – respondeu o rei.
O bandido olhou para Nogaret, como se esperasse uma confirmação. O ministro assentiu com um menear de cabeça.
– Bom, vejo que isso interessa muito á Vossas Excelências. Sendo assim, vou fazer um esforço para me lembrar – disse o bandido.
Nogaret manda chamar um escriba, para que tome por escrito o depoimento. Ordena também que o funcionário escreva a ordem de perdão para o depoente, a qual será despachada imediatamente para o juíz da província de Béziér. A vista disso, o homem chamado Sequin de Florian, depois de alguns minutos de estudada postura, na qual fazia conta de estar fazendo um enorme esforço para puxar pela memória, afirmou, com toda a convicção, que o tal cavaleiro havia dito que os Templários, há muito tempo, já não tinham mais fé nos preceitos e na doutrina da Santa Madre Igreja. Em consequência, tinham, eles mesmos desenvolvidos uma religião muito diferente daquela que os bons cristãos professavam. Por isso eles cuspiam na cruz, renegavam Cristo, diziam ser mentira que Jesus nascera de uma virgem, e que ressuscitara ao terceiro dia. Além disso, os votos de castidade e pobreza á que os membros da Ordem estavam sujeitos, há muito que também já não eram obedecidos.
– Os membros da Ordem, disse ele – quando sucumbiam aos desejos carnais, se satisfaziam entre si, praticando o coito com seus próprios companheiros.
Por isso esse Templário deixara a Ordem e fora parar na prisão, acusado pelos próprios companheiros, de praticar os exatos crimes que eles mesmos praticavam, completou ele.
– Infelizmente – disse o depoente, com um simulacro de sorriso – esse cavaleiro não poderá confirmar o meu depoimento, pois foi executado no ano passado.
Mas isso era o de menos para Filipe o Belo, e Guilherme Nogaret. Eles já tinham o necessário para começar a minar a Ordem do Templo. Aliás, essas informações já circulavam, á boca pequena, em círculos muito restritos. Na verdade, a Ordem do Templo se tornara uma sociedade secreta, semelhante a certas seitas que a Igreja condenava. Não importava a Filipe, e certamente menos ainda a Nogaret, que a tal testemunha tivesse vindo da região do Langedoc, sua terra natal. Ali, ha pouco mais de cinquenta anos, toda uma população fora chacinada, num dos mais crueis genocídios da História.
Langedoc era a terra dos cátaros, uma das grandes heresias que desafiara a autoridade da Igreja, e que só fora suprimida numa cruzada que ceifara a vida de mais de dez mil pessoas. A memória cátara ainda era muito forte na região, e o Templários tinham uma forte representatividade ali. Dizia-se até que eles eram os herdeiros naturais dos cátaros e tinham adotado, em suas práticas e na doutrina que professavam, uma boa parte da tradição albigense. Em outras palavras, a heresia albigense sobrevivia entre os Templários.
Não foi difícil para Nogaret achar outras testemunhas para corroborar o depoimento do bandido Florian. Logo encontra vários cavaleiros, expulsos da Ordem, dispostos a falar cobras e lagartos contra os seus antigos Irmãos.
Para sorte de Nogaret, o Inquisidor Geral da França, Guilherme de Marigny, também conhecido como Guilherme de Paris, é irmão de Enguerrand, o Conde Marigny, outro fiel ministro de Filipe. Este é o intendente da finanças reais, e também está muito interessado nos bens do Templo. Por isso, ao encontrar os cavaleiros dissidentes da Ordem, dispostos a testemunhar contra seus antigos Irmãos, Nogaret combina com Enguerant para que este os mantenha reclusos e incomunicáveis em Corbeil,sob a tutela de seu irmão, até que o processo contra a Ordem seja iniciado.
Num dia do mês de maio de 1306, Filipe havia se encontrado com o Papa Clemente V, em Poitiers, e apresentado a sua lista de acusações contra os Templários.
– Todas essas informações foram confirmadas por antigos membros da Ordem e Vossa Santidade poderá comprová-las pessoalmente – disse o rei.
– Mas se foram feitas por antigos cavaleiros, expulsos da Ordem, elas não poderiam estar contaminadas pelo desejo de vingança? – objetou o Papa.
– Essa possibilidade existe – repondeu Filipe, – mas não podemos descartá-las apenas por causa disso.
– Tendes razão quanto a isso – diz o Papa. – Gostaria de deixasseis comigo esses depoimentos para que eu possa estudá-los– sugeriu o Papa.
– Isso poderia durar muito tempo, e os Templários, enquanto isso, poderiam destruir todas as provas – protestou o rei.
– Permita-me Vossa Majestade que eu reflita um pouco sobre essa questão. Trata-se de um assunto extremamente delicado, que precisa ser tratado com muito critério – disse o Papa, como se estivesse constrangido perante a insistência do rei.
– Vossa Santidade é soberano nessa questão – respondeu Filipe. – Mas peço que leveis em consideração o perigo que a fé cristã está correndo, se essas acusações forem verdadeiras. Lembrais-vos da heresia Albigense. O quanto custou em recursos, para a Santa Igreja, eliminá-la.
– Hei de dar a esse assunto a importância que ele merece- respondeu o Papa – pensando, intimamente, o quanto podem ser hipócritas as pessoas, quando se trata de defender seus interesses.
Em Chipre, onde Jacques de Molay se encontrava, despachos vindo da França o havia alertado sobre os encontros havidos entre Filipe e o Papa. A Ordem tinha informantes dentro da corte do rei e também junto ao Papado. Há muito que ele já sabia que o Ministro Nogaret andava procurando antigos membros da Ordem para interrogá-los sobre as práticas da Irmandade. Estava seguro quanto a isso, mas assustou-se quando descobriu que tais cavaleiros haviam desaparecido e que provavelmente estavam reclusos em alguma fortaleza, sob a guarda de Nogaret, ou de Guilherme de Paris, o Grande Inquisidor. O caso começa a ficar complicado, e ele vai até Poitiers, onde o Papa se encontra, para uma entrevista com ele.
– Tendes conhecimento das acusações que estão sendo levantadas contra o Templo? – pergunta o Papa, solenemente.
– Tenho ouvido algumas insinuações, Santidade – responde o Grão-Mestre.
– O que tendes a dizer sobre isso ?– pergunta o Papa.
– Que são calúnias e grosseiras difamações, Santidade. Sabeis muito bem que a nossa Irmandade é extremamente dedicada a Santa Madre Igreja e jamais praticaria qualquer ato que profanasse a nossa fé – responde o Grão-Mestre.
– Essas acusações – continua – pelo que me foi informado, foram feitas por antigos cavaleiros expulsos da Ordem por causa do comportamento incompatível com os cânones da Irmandade. São mentiras urdidas pelo ódio e pelo espírito de vingança desses fascínoras.
A face pálida do Grão-Mestre do Templo estava vermelha de uma indignação, que suas espessas barbas não conseguiam ocultar. Nesse instante, Clemente percebeu o quanto Jacques de Molay parecia velho e frágil.
Teve pena e comiseração pelo ancião, que embora ostentasse uma figura imponente, em seu vistoso manto branco, ornado com a respeitada cruz vermelha, parecia o retrato da degeneração que uma vida monástica e sujeita a tantas pressões, como deveria ser a vida de um Grão-Mestre do Templo, provocava nas pessoas a ela submetida.
– Creio piamente nas vossas palavras – disse o Papa. – Tenho certeza de que se tratam de calúnias urdidas com maldade, inveja e desejo de vingança – completou.
– Tenho confiança em vosso julgamento, Santidade – respondeu o Grão-Mestre. – Não obstante – continuou – penso que seria conveniente, para a Ordem e para Vós, que se abrisse um inquérito, para que não paire nenhuma dúvida sobre a isenção de Vossa Santidade nem sobre a virtude dos nossos cavaleiros.
– Essa medida, será, sem dúvida, uma necessidade e a solução ideal – concordou o Papa, que intimamente já se decidira por ela. Ficou aliviado ao ver que o próprio Grão-Mestre concordava com isso e ele mesmo a sugeria.
– Podeis ficar sossegado – disse o Papa, batendo amigavelmente no ombro do imponente ancião. – O Templo não corre nenhum perigo – completou.
Nem bem Jacques de Molay tinha deixado a presença do Papa, ele se põe a escrever uma carta a Filipe, dando conta da sua entrevista com o Grão-Mestre e informando-o do inquérito que seria conduzido pela Igreja. Propõe a Filipe que este envie todos os relatórios que possui sobre o caso e promete deixar o rei a par de tudo que for apurado.
Assim, Clemente achava que podia aplacar a sanha do rei contra a Ordem. Mas enganava-se redondamente. Filipe não queria, de modo algum, deixar o assunto nas mãos da Igreja. Sabia que o Papa jamais seria capaz de fazer alguma coisa contra o Templo. Ela era por demais dependente dos Templários, de várias maneiras, para que tivesse a coragem de tomar qualquer medida que prejudicasse a Irmandade. Filipe tinha certeza que o Papa não levava a sério as acusações levantadas contra eles, pois tudo isso, se fosse verdade, era praticado intramuros, e não afetava as relações políticas, administrativas e principalmente, econômicas, que a Igreja mantinha com a Ordem do Templo.
O Papa também não via o perigo de que o Templo viesse a se se tornar uma nova heresia Albigense, como temia Filipe e seu ministro Nogaret. Até porque o Templo jamais proclamara qualquer desejo de independência em relação á Igreja, como outrora tinham feito os cátaros. “ A Igreja”, pensava Clemente, “pode muito bem viver como um marido traído, mas não pode suportar um divórcio que cause uma diminuição nos seus bens.” Que os Templários praticassem o que quer fosse em suas liturgias, desde que continuassem a alimentar o tesouro da Igreja, quando fosse preciso.
Filipe, como se viu, tinha seus próprios planos a respeito. Já decidira suprimir a Ordem do Templo e apossar-se dos seus bens. Não deixaria que a Igreja o impedisse de fazê-lo. Evidentemente, sabia que esse não seria um plano de fácil execução. A Ordem tinha seus defensores, mesmo no seu próprio palácio. Seu irmão, Carlos de Valois, era um deles. Sua filha, Izabel, em vias de casar-se com Eduardo, herdeiro do trono da Inglaterra, era outra. Afinal, Jacques de Molay, o Grão Mestre do Templo, fora seu padrinho de batismo.Violento debate é travado entre os ministros e conselheiros do rei.
– Vossa Majestade não pode deixar esse assunto nas mãos do Papa – insiste Nogaret. – Ele não é isento e jamais tomará qualquer atitude contra os Templários.
Enguerrand de Marigny apoia Nogaret. – Vossa Majestade deve invocar para si essa competência – disse ele. – Está dentro de Vossa autoridade uma decisão sobre esse assunto, visto que o Templo, sendo proprietário de terras no território francês é, por direito, vosso vassalo.
Carlos de Valois discorda. – O Templo não está sujeito á autoridade real, mas apenas ao Papa – argumenta. – Se Vossa Majestade tomar qualquer medida contra a Ordem, ela, além de ilegal, provocará a reação da Igreja e seus aliados.
– A autoridade do rei sobre seus vassalos supera a do Papa – insiste Marigny. – Não é assim, Senhor de Presles?
– Assim penso, Senhor Marigny – responde servilmente Raul de Presles, secretário do rei e advogado formado pela Universidade de Paris, representando aquela instituição na corte.
– Ademais – insiste Nogaret,– o próprio Papa concorda com a investigação sobre os crimes da Ordem. Vossa Majestade tem bastante ascendência sobre ele. Não acredito que ele seja capaz de qualquer reação mais séria se Vós tomardes esse assunto em vossas mãos.
– Não esqueçais, – disse Carlos Valois – que o Templo é a mais veneranda e respeitável Ordem de cavalaria existente em toda a Europa. Ao atentardes contra ela estareis atentando contra toda uma instituição.
– A defesa da fé justifica essa medida – respondeu Nogaret.
– Podeis fazê-lo com ou sem a aprovação pessoal do Papa – intervém Enguerrand.
– Como? – perguntou Carlos de Valois.
– Denunciando a Ordem ao Tribunal da Inquisição – disse ele. – Se a denúncia for formalizada, nem o Papa poderá impedir que o processo seja iniciado
- É isso mesmo – disse Nogaret, com os olhos brilhando, como se tivesse chegado a uma conclusão irrefutável. – E como vosso irmão Guilherme de Paris,é o Grande Inquisidor, não vejo nenhuma dificuldade em iniciarmos esse processo.
Durante todo esse debate, Filipe, o Belo, tinha se mantido na sua postura favorita. Cotovelo apoiado no espaldar do trono, cabeça apoiada nas mãos, olhos perdidos no vasio, não dissera uma palavra. Dir-se-ia enfadado por ter que estar ali, perdendo tempo com tal assunto. Mas sua postura não verbal mostrava muito pouco do que se passava em sua mente. Intimamente ele já tinha a convicção de que os Templários eram todos culpados das acusações que lhes eram feitas. E se convencera também que cabia a ele, como defensor da verdadeira fé, suprimir esse cancro que ameaçava toda a cristandade. E se o Papa era impotente para fazê-lo,ele, Filipe o Belo, Rei de Ferro, ou de mármore, como o chamavam, tomaria sobre seus ombros esse pesado fardo. A História julgaria quem tinha razão. E se a História viesse a provar, mais tarde, que ele estava errado, ele não estaria mais ali para pagar pelo seu erro. No momento, a única coisa certa a fazer era, na verdade, salvar a França da bancarrota e segurar a sua própria coroa, que certamente escaparia das suas mãos,se o reino quebrasse de vez.
Foi então que o rei se levantou e disse as únicas palavras que pronunciou naquela fatídica reunião.
– Preparai a acusação e enviai-a ao Tribunal do Santo Ofício – disse a Nogaret. – Depois reuni todos os senescais das cidades onde há preceptorias templárias para uma reunião aqui no palácio.
E imediatamente, deixou a sala de reuniões, como se fosse uma estátua de mármore, que de repente tivesse adquirido vida.
(continua)
DO LIVRO 'A RECONSTRUÇÃO DO TEMPLO- ROMANCE DA MAÇONARIA, NO PRELO