MARÍLIA DE DIRCEU, ROMANTISMO ETERNO..
 
Minha primeira experiência sentimental com Ouro Preto ocorreu quando, ainda adolescente, assisti a um filme chamado “Rebelião em Vila Rica”. Em princípio pensei que se tratasse de um filme sobre a Inconfidência Mineira, mas depois vi que se tratava de uma revolta de estudantes do famoso colégio que fica naquela cidade, contra a tirania do seu diretor. Era, como se pode imaginar, um filme inspirado na sua congênere, ocorrida dois séculos antes, mas que continha alguns elementos modernos, muito próprios dos dias de hoje. O filme era bonito e emulava ideais românticos. Aliás, Ouro Preto é uma cidade romântica por excelência. Não se consegue andar por suas vetustas ruas e vielas sem pensar em uma mocinha na sacada de seus corroídos prédios e um trovador em baixo, cantando uma velha canção falando de amor, luar, melancolia, paixão não correspondida, e coisas afins.
A primeira vez que fui, pessoalmente, a Ouro Preto, eu já era adulto, um homem casado, com filhos para criar e bem pouco propenso a arroubos românticos. Mas não pude deixar de procurar por lembranças do casal Marilia e Dirceu, apelidos dos infelizes namorados Tomas Antonio Gonzaga e Maria Dorotéia de Seixas, que um pouco antes e imediatamente após o triste episódio da Inconfidência, viveram esse romance que o ambíguo desembargador Gonzaga transformou em dos mais deliciosos poemas da literatura pátria.
Historicamente, esse foi um romance que não deu em nada. Tomás Antonio Gonzaga, que apelidou a si mesmo de Dirceu, por causa do homônimo grego, um pastor que tinha esse nome, era um sujeito ambíguo, cuja biografia ninguém, até hoje, conseguiu levantar com alguma concisão. Esse romance não deu em nada porque o autor, mesmo perdidamente apaixonado pela musa que o inspirou, não foi fiel a esse amor, e tão logo se viu livre, alguns anos depois, em Moçambique, para onde foi exilado por ter participado da conjuração que vitimou Tiradentes, casou-se com a rica filha de um comerciante de escravos e esqueceu-se da sua romântica e sofredora Marília.
Por isso se diz que Gonzaga era um homem de caráter bastante polêmico. É certo que tenha participado da conspiração que visava derrubar o governo português e implantar uma república em Minas. Provavelmente esperava ser um futuro governante dessa república, ou mesmo um legislador, talvez uma espécie de Thomas Jefferson tupiniquim, a se julgar pelas suas próprias palavras, escritas á sua infeliz namorada:
 
“ Não hás de ter horror, Minha Marília,
De tocar pulso, que sofreu ferros!
Infames impostores m’os lançaram,
        E não puníveis erros.
 
Esta mão, esta mão que ré parece,
Ah! Não foi uma vez, não foi só uma,
Que em defesa dos bens, que são do Estado,
        Moveu a sábia pluma!
 
É certo, minha amada, sim, é certo,
Qu’eu aspirava ser de um Cetro o dono:
Mas esse império, que eu aspirava,
        Tinha em teu peito o trono.(...)
                                        Lira XXXVI
 
“Qual é o povo, dize,
Que comigo concorre no atentado?
Americano Povo?
O povo mais fiel e mais honrado:
Tira as praças das mãos do injusto dono,
Ele mesmo as submete,
De novo á sujeição do Luso Trono!
(...)
                                               Lira XXXVIII

Que Gonzaga era o mais preparado dos inconfidentes, não muita dúvida. Ele, mais Cláudio Manuel da Costa, o outro poeta dessa conjuração, eram os intelectuais do grupo. Umas das acusações que lhe foram feitas pelos inquisidores foi exatamente a de ter pretensões a um futuro governo, o que ele negou veementemente, dizendo inclusive não ter qualquer ligação com os conspiradores, e que sequer conhecia o chamado alferes Tiradentes, de quem se dizia ser o líder dos revoltosos. Essa informação consta das atas do processo que resultou na sua prisão nas Ilhas das Cobras e posterior deportação para Moçambique.
 
Abstraindo essas vicissitudes da política, que de resto são normais em todos os casos desse tipo, o que fica dessa história, pelo menos para mim, é o doce enlevo do romance que ele transformou em poema. María Dorotéia virou a noiva da Inconfidência e tornou-se a heroína de uma história sem nenhum heroísmo, a não ser a coragem com que o infeliz alferes José Joaquim enfrentou o processo, a prisão e a execução final, carregando em seus ombros todo o opróbrio de uma malfadada conjuração.
Ouro Preto, entretanto, ainda hoje respira a atmosfera desses românticos tempos e distila as memórias dos amores de Marília e Dirceu. Olho para as fotos que tirei com minhas filhas diante da Casa dos Contos, da Ponte que antecede o casarão da família Seixas, da Igreja de São Francisco, do Colégio Caraça, do Paço Imperial. Isso foi há vinte anos atrás. Releio Marília de Dirceu e recupero esses sentimentos.E hoje, dia 20 de junho de 2013, vendo a multidão de jovens que se aglomeram nas ruas da cidade numa manifestação por algo que nem eles sabem direito para que, meus olhos marejam e eu me lembro de Dirceu e Marília, dos Inconfidentes e dos estudantes da Rebelião de Vila Rica. Que bom que nós continuamos românticos e ainda sonhamos. Sem esses sentimentos não haveria ideais. De repente voltei a ter confiança no futuro deste país.   

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Livro Marília de Dirceu: Tomás Antonio Gonzaga
Ed. Ciranda Cultural-2008
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 20/06/2013
Reeditado em 20/06/2013
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