Orfandades – O Destino das Ausências – Pe. Fábio de Melo
Editora Planeta – 2012 – 158 páginas
Quem espera que este livro lhe traga algum tipo de conforto espiritual após uma grande perda, não deve lê-lo; da mesma forma, quem pensa encontrar aqui soluções espirituais e respostas para as coisas da vida e da morte, acabará se decepcionando. Este livro foi escrito por Fábio de Melo – o homem, não o padre.
Mas quem deseja uma leitura verdadeira e cheia de poesia, que traz a dor e suas facetas cruas e sem máscaras; quem tem a coragem de assumir que a espiritualidade e a religião não trazem todas as respostas às nossas dores e mazelas, e que não nos protegem contra aquilo que estamos acostumados a chamar de ‘mal,’ encontrará neste livro uma leitura que, embora seja difícil (ninguém gosta de caminhar pela Estrada da Dor), será envolvente, surpreendente e inesquecivelmente bela.
Padre Fábio de Melo ausenta-se por algum tempo, é dá lugar ao homem Fábio de Melo, que nos escreve dezenove contos que falam da perda, do medo, da dor e da morte. Um livro para leitores corajosos. Os contos de “Orfandade” arrancarão lágrimas e despertarão lembranças. Além de oferecer beleza e poesia, ao ler este livro nos lembraremos do quanto somos todos tão parecidos na hora da dor e da perda, e o quanto estamos todos igualmente vulneráveis a elas.
O livro nos fala das ausências e dos desejos reprimidos que muitos já sentimos, desejos de deixar tudo para trás e atravessar até o outro lado do rio, levando na bagagem apenas a cara e a coragem (“O Outro lado” e “O Mapa”). Talvez ele consiga expressar toda a dor de nos sentirmos órfãos (“Mãe Morta” e “Pai de Poeira”) ou o nosso medo de assumirmos a nossa própria vida e nos responsabilizarmos por nossas próprias escolhas ( “A mulher Acabada” e “A Escolhida”). Enfim; para cada um de nós haverá um personagem que nos custará assumir, mas que nos fará mais humanos e, ao mesmo tempo, transcendentes.
Trecho de “O Mapa”
“Queria o dom de esquecer. Que confortante, viver a oportunidade de olhar para o muro e nele não encontrar rosto familiar. Andar pelos cômodos da casa e deixar de ouvir as vozes dos que partiram, mergulhada numa estranheza, como se tudo fosse visto pela primeira vez. Todas as coisas reduzidas a serem o que são. A pedra é pedra. Nada mais. Nenhuma abertura de sentido para a materialidade.”
Trecho de “Mãe Morta”
“Já posso morrer. A pedra posta me segura. “Aqui jaz Antonieta Bonaparte do Couto. Viveu, sonhou e amou.” O argentado das palavras reluz tristeza. Contradição. A frase triste está prenhe de esperanças que ainda não sei reconhecer. Minha mãe está morta. Repito. Digo a palavra mais dura, o recado mais tristonho. Mas no avesso da aterradora notícia há um travesseiro de conforto. Minha orfandade é alforria. O amargo da verdade se mistura ao doce de um futuro que posso ter. Sua partida me outorga direitos. Já posso morrer também. Não tenho mais a obrigação da vida. Posso aventurar-me sem medos, dar-me aos descuidos, avançar limites, ultrapassar fronteiras. Posso partir, posso morrer, desistir, ser infeliz.
Morrer requer ter nascido. Quarenta e dois anos e só agora o meu nascer terminou. O cordão que me atava ao outro corpo foi decepado. O ventre está lacrado. Nele não há respiro. Estou livre.”
Trecho de “A Consagrada”
“O amor me coloniza. Faz comigo o mesmo que Portugal fez com minha pátria. Arranca o ouro, devasta as reservas e me outorga misérias que frutificarão no futuro. Eu as descubro aos poucos como se a névoa da realidade me preservasse do susto de vê-las num mesmo movimento de olhos. Alguém deve ter rezado nessa intenção. Deus age como pode. Também Ele, ainda que goze de soberania e poder, vê-se impossibilitado de realizar proezas. Eu o limito, algemo suas mãos quando não sou capaz de encher as talhas para que o milagre aconteça. O vinho é resultado dele, dádiva de sua gratuidade, mas a água é atributo humano, é a parte que me cabe.
Amar é perder a pertença; ser invadida por outro, ver rasgada a cortina que me preservou por tantos anos indivisa, proprietária da decisão de descer escadas, cruzar a rua, realizar o simples da vida, o ordinário, o natural de ser livre. É desastroso amar assim.”