Resenha Crítica – As Cem Melhores Crônicas Brasileiras

Gosto de começar as histórias dizendo: “Certo dia...”. Acho que é uma tentativa de substituir a expressão “era uma vez” tão utilizada nas redações de ensino fundamental. Pois bem... Certo dia, passou pelas minhas mãos um livro vermelho (eu costumo identificar os livros pela cor da capa) intitulado “As Cem Melhores Crônicas Brasileiras” organizado por Joaquim Ferreira dos Santos, jornalista e também cronista.

Logo percebi que a crônica é como droga ou vídeo game: vicia. A crônica deve se chamar “crônica”, porque é como uma doença das mais graves – doença crônica, entendeu o trocadilho? A crônica às vezes parece capítulo de novela mexicana, só que interessante para homens. Lembra editorial de jornal, só que mais vibrante, ainda que também contenha ideologias. A crônica evoca os melhores e os piores sentimentos entre amantes e ex-amantes, só que os tornam hilários, ou seja, harmoniza ou equilibra os excessos.

Isso quando não é a crônica o próprio excesso. Verdade seja dita: a crônica foi feita para o povo. Porque povo é sinônimo de exagero, tanto no sentido numérico como no qualitativo. O mendigo original de João do Rio poderia dizer que ler crônica é inútil, tanto mais escrevê-la.

Mas o melhor da crônica é que ela é vivenciada, pena que de forma rápida, passageira. Outro dia, estava no ônibus a caminho da faculdade. Procurava pacientemente uma crônica, como um caçador a procura da presa. Foi aí que percebi que já estava dentro de uma. A gente escreve coisas do cotidiano e por menos importantes que pareçam, há sempre uma relevância para alguém, mesmo que esse alguém seja você mesmo.

Da mesma forma que no Ceará tudo é motivo para piada, no Brasil tudo é motivo para uma crônica. Aula de inglês? Sim! História de viúva? Sim! Futebol? Sim! Conversa de pai e filha? Por que não? Traição? Também.

Mas para entrar no hall da fama tem que ter um “tchan” a mais. Tem que abusar da classe e da informalidade. Tem que saber fazer gíria com o português correto. Tem que construir as frases como faz o ninho um joão-de-barro, mais conhecido como hornero na Argentina.

Nossos hermanos terão de se render a genialidade do cronista brasileiro, super representado nos sobrenomes Drummond de Andrade, Rubens Paiva, Assis, Braga, Veríssimo, Lispector, Ponte Preta... Enfim, a lista é grande. Grande mesmo é a ousadia de fazer crônica sobre crônica, sem nunca ter feito uma crônica sequer.

Mas, que me empreste sua expressão o amigo, a quem nunca me apresentei, Luís Fernando Veríssimo: homem que é homem não vê novela, lê crônica. Parece preconceito, mas não é. Na minha crônica eu posso falar o que bem entender e vai parecer coisa de artista mal compreendido. Um dia, quem sabe, serei reconhecido, provavelmente depois de morto, porque a gente só fez o bem mesmo quando lembrado ao lado da expressão in memoriam.

Da arte de falar mal o cronista entende. Da política mais adequada de segurança, nem se fala. É como diz Olavo Bilac: pare, por favor, a polícia de perseguir as cartomantes. E completa o já citado mendigo: “É inútil, seu guarda. É inútil”. O cronista entende de tudo, porque tudo sobre o que ele escreve é tudo o que ele sabe, porque tudo o que ele sabe é tudo o que ele vive.

Choram as viúvas. Assombrações surgem por todos os lados. O Papai Noel é enfim descoberto, enquanto os hotéis de Belém estão todos lotados. Os amantes se amam, sejam eles feios ou belos. As mulheres são traídas e os homens descobertos. Conversam o pai e a filha. Tudo é motivo para festa.

E festa é motivo para crônica. Tem gente que faz festa para recém defunto: “até que enfim!”. Fazem festa sobre assombração: “doce ou travessura?”. O Natal já é uma data festiva, então nem se fala. Os amantes comemoram entre quatro paredes. E enquanto os homens fazem festa nos “inferninhos” mais longínquos da cidade, as mulheres se vingam na cama comprada pelo marido na loja da Ortobom, que deveria me patrocinar por esse “merchan”.

Mais uma vez: a crônica é uma festa. Pelo menos aqui no Brasil, onde o brasileiro é alegre, embora tonto. Tem muita gente que confunde as coisas: bebe para ficar alegre, mas a conseqüência é a tontura, quando não a amnésia, muitas vezes fingida.

Amnésia lembra “idade chegando”. O quê dirá Millôr Fernandes sobre ser gagá e Marcos Rey sobre a mocidade de hoje, que antecipa a velhice embriagando-se diariamente?

A seleção de Joaquim Ferreira dos Santos é fantástica. A organização também. Mostra como evoluiu este gênero tão criticado no início, hoje um texto sempre crítico. O jornalista escolhe as melhores, em sua opinião, de cada década, permitindo ao leitor que lê do começo ao fim, viajar pelas histórias que não são contadas nos livros tradicionais de história.

Permite que percebamos a evolução das tecnologias e a degradação da moral. Permite-nos enxergar o mundo de um jeito novo, bem mais divertido. A crônica faz graça da desgraça, pelo menos aqui no Brasil, onde desgraça não falta.

As belas moças também dão o ar da graça. Trazem cheiro e encanto. Tomam as crônicas por assalto, enquanto os bandidos estão soltos nos arredores de Brasília. E por falar em belas moças e em Brasília...

Certo dia, li um artigo interessante de Ruy Castro, o qual comentava uma pesquisa do IBGE sobre solteiros e solteiras. Enquanto as mulheres gritam “Não há homens (solteiros disponíveis) na praça!”, o IBGE divulgou uma pesquisa, mostrando que há um saldo de 1,5 milhão de homens “prontos para o abate”. Em Santa Catarina são 122 solteiras para 100 solteiras. Porém, na situação inversa, no Distrito Federal existem nove homens solteiros para cada 100 mulheres solteiras. Diz se isso não é assunto para crônica?

Segundo Ruy Castro, o problema não é estatístico, mas comportamental. Os homens não querem assumir compromissos. Querem testar o máximo quanto podem até decidir quê investimento fazer. Mais: estão com mania de morar com os pais até os 40 anos de idade. “Para quê fugir de casa se aqui tenho comida e roupa lavada?” E, por outro lado, já tem muito homem preparando as malas para morar em Brasília depois dessa reportagem. “Se bem que... tem a casa da mamãe, né? Viver sem mesada, comida e roupa lavada não dá. Esquece!”

Podemos voltar ao livro de Joaquim Ferreira dos Santos, em que quase nada é dele, a não ser a introdução e a saborosa tarefa de selecionar as melhores crônicas brasileiras. Estamos falando de um livro convocatório. Parece coisa de seleção brasileira de futebol. Cada um tem a sua na cabeça. Enquanto eu preferia o Ganso, o Dunga insistia no Júlio Baptista.

O que eu acho chato é ter que escolher só 23 jogadores, quando tem tanta gente boa por aí. Da mesma forma, eu queria que Joaquim Ferreira tivesse feito o favor de trabalhar um pouco menos: para quê analisar cada uma e decidir por 100. Melhor seria se o título do livro fosse: “Todas as Crônicas Brasileiras”.

Eu entendo que o jornalista não quisesse pôr no mesmo saco as melhores e as piores. Todavia, parece que ele não entendeu que crônica vicia. Deixa marcas. Que me importa se são as melhores ou as piores? Dizem que o crack é droga de péssima qualidade, mas e daí? Mantém o vício do mesmo jeito! A grande diferença é que enquanto o crack deixa a pessoa fora de si, a crônica abre a mente, desperta para a vida.

Referências

[1] SANTOS, Joaquim Ferreira dos. As cem melhores crônicas brasileiras. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.

Setembro de 2010.