NIETZSCHE: O IDEAL ASCÉTICO E A INVERSÃO DOS VALORES

Em Genealogia da Moral: Uma Polêmica (1887), proposto como um tipo de continuação de Para Além Do Bem E Do Mal (1885), o filósofo alemão Friedrich Nietzsche se dispõe a investigar, através de uma análise histórica e filológica, a origem da moral, o sentido de termos associados à moral, como “bom”, “mau” e “ruim”, bem como o valor que eles possuem. Na primeira dissertação da Genealogia, Nietzsche mostra como termos como “bom”, originalmente, se referiam aos nobres e “ruim” ao que era simples, comum, plebeu e típico de escravos, e com o passar do tempo foram invertidos, tendo os ideais dos escravos e plebeus se tornado o bom no sentido moral. Na segunda dissertação Nietzsche nos apresenta os motivos psicológicos que causaram essa inversão, essa transvaloração dos valores plebeus em bom e os valores nobres em ruim. Já na terceira dissertação Nietzsche analisa mais profundamente o ideal de vida ascético, sua origem e seu valor. O presente texto pretende tratar dessa terceira parte.

Antes de adentrarmos o fenômeno do ascetismo, é conveniente entender como se dá a inversão ou transvaloração dos valores. Como foi dito anteriormente, antes havia apenas o ideal ou modo de vida nobre e plebeu, sem nenhuma conotação moral, e isso Nietzsche nos mostra apresentando uma análise etimológica dos termos empregados. Bom era o nobre, superior, típico dos senhores, e ruim era o plebeu, comum e baixo, típico dos escravos. Não que isso significasse que o modo de vida plebeu era moralmente condenável ou criminoso. Era apenas um modo de vida “inferior”. Assim, enquanto coisas como humildade, coletividade, altruísmo, pobreza, dentre outros, eram típicas dos plebeus, orgulho, força, riqueza, coragem eram típicas dos nobres. Era um ideal de afirmação da vida, da felicidade e da vontade. O homem comum, então, criou um certo ressentimento por conta do modo de vida do nobre, e esse ressentimento foi se tornando espírito de vingança, uma poderosa vontade de vingar-se do nobre, criando um ideal de negação da vida, essencialmente uma negação do ideal da nobreza.

“A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por uma vingança imaginária obtêm reparação. Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não a um ‘fora’, um ‘outro’, um ‘não-eu’ - e este Não é seu ato criador.”

Aqui é onde ocorre que Nietzsche chama de “inversão dos valores”. O modo de vida plebeu, baixo, comum e escravo, através da figura do sacerdote, é posto como regra, como dever moral, enquanto o ideal nobre é considerado imoral, criando assim o que o filósofo alemão considera uma “moral dos fracos e dos ressentidos”:

“os miseráveis somente são os bons, apenas os pobres, impotentes, baixos são bons, os sofredores, necessitados, feios, doentes são os únicos beatos, os únicos abençoados unicamente para eles há bem-aventurança - mas vocês, nobres e poderosos, vocês serão por toda a eternidade os maus, os cruéis, os lascivos, os insaciáveis, os ímpios, serão também eternamente os desventurados, malditos e danados!..."

Qual é, pois, a grande importância de se estudar a origem e o valor do ideal ascético? Ora, porque ele é o modo de vida, ideal de máxima moralidade pretendida pelas sociedades. Entender o ideal ascético é entender não apenas como ocorreu a transvaloração dos valores em apenas um conceito ou juízo moral, e sim na própria visão de vida ideal preconizada por aqueles que partilham desse conjunto de valores. Para isso é preciso entender a que Nietzsche se refere quando fala de ideais ascéticos. Depois de analisar o significado do ideal ascético em relação aos artistas e aos filósofos, Nietzsche chega enfim ao que realmente interessa: falar do ascetismo na visão dos “santos” e dos sacerdotes. E ele assinala três características principais do ascetismo: humildade, pobreza e castidade. Aqui logo se vê os efeitos da transvaloração ocorrida, como ele nos mostra na primeira dissertação. A humildade é tida por Nietzsche como um valor essencialmente plebeu e escravo, algo que ele chama de “baixeza medrosa” na primeira dissertação, e que diz, no livro O Crepúsculo Dos Ídolos, ser semelhante à ação de um verme que se retrai por medo de ser pisado. É oposto à posição orgulhosa dos nobres e dos guerreiros. O orgulho é aqui transformado em algo moralmente negativo, ao passo que a humildade submissa se torna um bem moral. O mesmo ocorre com a pobreza. A inversão dos valores a torna algo desejável, ao passo que a riqueza e opulência típica dos nobres são tidas como coisas negativas e até vergonhosas. O plebeu passa, então, da exaltação das suas próprias características à elevação das mesmas em ideal de vida. O que, pois, faz com que as pessoas aceitem o ascetismo como um ideal de vida?

De acordo com Nietzsche, tudo começa com o sentimento de culpa e a ideia de sofrimento. O homem comum sabe que sofre, e por isso ele procura razões ou culpados pelo seu sofrimento, ao contrário do homem nobre, que aceita seu próprio destino e compreende a fatalidade da vida. “Alguém deve ser culpado”, pensa ele, mas o sacerdote, o principal personagem no jogo de inversão dos valores, lhe diz que tão-somente cada um é culpado por seu próprio sofrimento:

“‘Eu sofro: disso alguém deve ser culpado’ – assim pensa toda ovelha doente. Mas seu pastor, o sacerdote ascético, lhe diz: ‘Isso mesmo, minha ovelha! Alguém deve ser culpado: mas você mesma é esse alguém – somente você é culpada de si’”

Assim, o sacerdote imputa ao sofredor a culpa pelo seu próprio sofrimento, preparando o terreno para a total inversão dos valores. Primeiramente surge a noção de pecado, algo com o qual nascemos e do qual devemos nos livrar. Nascemos culpados e o sofrimento é efeito e redenção dessa culpa. Para nos livrarmos da culpa precisamos sofrer da mesma maneira que o devedor que não paga suas dúvidas. Deus é o credor e o pecado é nossa dívida para com ele, e esta deve ser paga através do sofrimento. Devemos entender o sofrimento como uma punição, como diz o próprio Nietzsche. O Cristo representa esse sofrimento, posto que ele sofreu e morreu para nos livrar da nossa culpa. No entanto, ganhamos uma nova dúvida, desta vez para com Cristo. Somos culpados pela sua morte, a morte de um inocente, e devemos pagar com nosso próprio sofrimento, que existe justamente com a finalidade de nos livrar de nossa culpa, nossa tão grande culpa. Por conta disso é que Nietzsche declara que “O advento do Deus cristão, o deus máximo até agora alcançado, trouxe também ao mundo o máximo de sentimento de culpa”. O cristianismo transforma o sofrimento em um “mecanismo secreto de salvação”, através do qual a culpa deve ser expiada. E esse sofrimento tem sua maior representação no ideal ascético, na negação do mundo, dos prazeres materiais e sensoriais, bem como uma certa aversão à razão e todo conhecimento “mundano”.

Essa aversão ao “mundano” é uma aversão à vida, um niilismo que se revela paradoxal: ao mesmo tempo em que nega a vida, o ascético afirma-a. Esse ideal é, como diz Nietzsche, “um artifício para preservação da vida”. Não é, portanto, um niilismo suicida, mas uma tentativa de dar sentido ao sofrimento. Este é o grande triunfo do ideal ascético. Como diz Nietzsche, “O que revolta no sofrimento não é o sofrimento em si, mas a sua falta de sentido”. Ao transformar o sofrimento em culpa e redenção o sacerdote confere sentido ao sofrimento do homem comum que, diferentemente dos nobres, dos senhores e dos homens superiores, é incapaz de conviver com a gratuidade da vida, com sua total falta de sentido. Além de procurar um culpado para seu sofrimento, ele também quer que esse sofrimento tenha alguma finalidade, que o sacerdote logo projeta na salvação. É preciso sofrer, se afastar do que é mundano e humano para poder ter salvação em Cristo. Da mesma forma, no budismo, é preciso o sofrimento para que se encerre o perpétuo ciclo de nascimento e morte. Em todas as religiões o sofrimento adquire um sentido. Mas que valor tem esse sentido? “Qualquer sentido é melhor do que nenhum”, declara o filósofo. O ideal ascético é, portanto, uma negação desta vida em prol de uma vida futura, eterna e feliz. Uma proposta obviamente ilusória na visão de mundo ateísta, um nada. Nietzsche conclui: “o homem preferirá ainda querer o nada a nada querer...”

Igor Roosevelt
Enviado por Igor Roosevelt em 28/01/2013
Reeditado em 28/01/2013
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