Ressalva do Jô:
     As leituras e análises aqui feitas contêm apenas impressões, opiniões pessoais e interpretações despretensiosas, e não configuram uma resenha, ou um ensaio, estudos bem mais sérios e profissionais. (É que o Recanto das Letras não disponibiliza a opção "Impressões de Leitura", por exemplo).

     Algumas palavras foram destacadas em vermelho pelo Jô, somente para clareza didática e futuro estudo dele.
 
                                 *** *** ***

                                  Introdução
                               
(prefácio do André)
 sim, a poesia viera a encharcar-se de democracia, de visão e caosificação. 

vaziez de sentido 

a mnêmica televisiva da nova imaginação infantil 

o imaginário do homem desexiste como fantasia agora
 

esta coisa de materialismo histórico dialético, marxismo versus capitalismo, esta coisa de autofalantes virais...
 
o homem hoje vende a sua voz, mesmo porque está empobrecido pela própria necessidade
 
e em virtude do talento, ele é
construto
 

investe nas ambiguidades e duplicidades textuais para chegar aos seus ubíquos pontos únicos de chegada

 
     Comentário do Jô:

     Verifiquei dicionários, e anotei:
caosificação  verbete não encontrado. Neologismo do André. Parece significar a tranformação da Poesia num caos sem maior importância, como destino natural e sem surpresas.

      Transcrevo do dicionário, para ilustrar, um vocábulo afim:
     "Coisificação - sf. (Filosofia) Transformação dos seres humanos, suas propriedades, relações e ações, em seres semelhantes a coisas, que se comportam de acordo com as leis do universo das coisas." (Dic. Aulete)
     E, complementando, exemplifico com "coisificar" (tornar coisa, diminuir a importância de alguém, menosprezando qualidades, características superiores etc., reduzindo elevados valores morais a meros valores materiais).


construto – “Aquilo que é elaborado ou sintetizado com base em dados simples, como, por exemplo, os constructos científicos.” (Dic. Michaelis)

desexiste verbete não encontrado. Neologismo do André. Do verbo desexistir (= cessar, deixar de existir - no contexto do poema). 


inconjecturabilidade neologismo do André.

mnêmica (ou mnemônica) relativo à memória; algo fácil de memorizar.

pascigo – (arcaísmo) pastagem, pasto. Cf. pascer (pastar) e pascigoso (região abundante em pascigos).

ubíquo – onipresente, que possui ubiquidade (faculdade de se fazer presente em todo o tempo e espaço). André mexe, desloca o significado consagrado, ao escrever “ubíquos pontos únicos de chegada”.
Mexe como? – Ora, se são ubíquos (ocupando tudo) não se pode considerá-los “pontos únicos”... 

vaziez  neologismo do André.
     Transcrevo abaixo um e-mail dele de 28/01/2013:
   "veja vaziez aqui, Jô:
    
http://www.bemfalar.com/significado/vaziez.html
- Significado de vaziez: Substantivo Feminino qualidade ou condição de vazio
O mesmo que: vacuidade - creio que inconjecturabilidade, se digitar no google, exista tbm... telúreo pode ser encontrado como neologismo unindo-o ao significado de telúrico (Tellus: Terra), que o torna melhor acessível... --- o que se lhe contesta fica entre o \\ " (andré)


                                           *&*&*

      N
eologismos: sempre bem-vindos ao idioma, pois convidam o usuário (leitor/falante) a vê-lo por outro ângulo, outro prisma inovador.
     Remeto o leitor à "Gramática da Língua Portuguesa", de Pasquale Cipro Neto e Ulisses Infante (págs. 105-109).  (Ver bibliografia na Parte II deste estudo)

     Já o verso seguinte encerra uma decepcionante prolixidade:

"o homem hoje vende a sua voz, mesmo porque está empobrecido pela própria necessidade"
     Longo e 90% descartável. Bastaria "o homem, empobrecido, hoje vende a sua voz". O resto é simples redundância.


 
                                     *** *** ***

 
                       súplica
conquanto
se faça-me o canto eu não veja
na luz da
candeia ou só a dor, ou o vazio;
no esguio que se faça-me o pranto eu não tenha
no calço da meia ou só a pedra, ou só o frio.
 
não queira,
conquanto
esta cruz, minha morte.
na pira indelével da sorte traiçoeira
não queira,
conquanto
mi’a culpa, o revólver
nem volte,
conquanto
o cansaço, à coleira.
 
que eu seja, ‘inda embora o meu medo, uma paz.
que mesmo perdido o meu canto ou fugaz,
mas seja,
conquanto a tristeza, candor;
 

e, terno, pra dentro de ti me aderrame, —
que seja o meu canto o que a ti tudo inflame e
que cante,
conquanto o silêncio, o alvor.

 
     Comentário do Jô:
     
conquanto -  conj. (com+quanto) - Significa concessão, possibilidade viável, situação possível. Caracteriza um fato ou situação contraditória. Possui significado semelhante a:  ainda que, desde que, já que, mesmo que, posto que, se bem que, visto que, embora, 
porquanto... 
     O emprego do termo pelo poeta foi de uma precisão professoral, de uma maturidade intelectual incontestável, insofismável. Desfilosofou o idioma, com esse emprego tão prático quão estético da conjunção.
     Esse "conquanto" representa uma figura de linguagem, a anáfora (repetição intencional de uma palavra ou expressão com fins estilísticos).

"CandeiaPequeno aparelho de iluminação que se pendura à parede e funciona com a queima de um pavio embebido em óleo, azeite ou querosene. Lamparina, candeeiro, lampião."   (Dic. Aulete)
     Excelente emprego desse arcaísmo - aliás, numa postura submissa perante a imensidão da Língua Portuguesa, aplaudo o uso de vocábulos antigos por escritores e poetas, pois afinal todos continuarão pertencendo ao léxico... E mais: quando um literato lança mão de arcaísmos, decidiu revolver o idioma, prestigiar, resgatar verbetes crepusculares, às margens do ocaso - quão salutar é isto! 
     E quando concebe, quando produz neopalavras, contribui generosamente para a dilatação das fronteiras idiomáticas.


candor -
candidez, candura, inocência.

                                   *&*&*

     Ocorre neste soneto a obscuridade, "um defeito textual causado pela falta de clareza, de transparência, nexo, lógica e simplicidade.  Causam-na a má pontuação, o rebuscamento da linguagem e os erros de concordância e regência." (José de Nicola)
     Nele, o rebuscamento da linguagem impede qualquer  entendimento e consequente prazer em lê-lo. André floreou muito, enfeitou demais e complicou as coisas.


                                *&*&*

     O fecundo título - "súplica" - provoca, incita, conquista e faz pensar. Súplica a quem? A Deus? À Natureza? Ao próprio espírito, então poderoso? Ao concentrado leitor? Fica a dúvida - amiga da polissemia, essa faculdade pessoal de múltiplas interpretações de um enunciado literário.



                               
*** *** ***
     da esperança do canto
o silêncio do corpo
 
metafísica física e espiritual
 
pois só teu canto é verdadeiro de verdade



     Comentário do Jô:
     
Deveras, ninguém nunca parou para pensar no "silêncio do corpo"...
     E há um jogo dialético vocabular nessa "metafísica física e espiritual". 
     Em ambos os exemplos, as palavras nos acordam, nos despertam para vastidão semântica da língua portuguesa.
     Já a redundância do termo "de verdade" no terceiro verso o empobrece e banaliza. Aliás, esse verso - extracanto, anticanto, contracanto - não deveria nem existir.
     
(Por quê não calo a minha boca?!)

 

                                *** *** ***
            símplice profecia
eis que, do teto das casas,
da pinha das copas,
do cimo
dos prédios,
da riba dos montes, do cume dos sóis,
 
nasce uma manhã derradeira, cheia de sonhos,
no coração pequeno dos homens.

 
 
     Comentário do Jô:
     Há ocorrência da gradação (figura de linguagem que pode se apresentar como ascendente (clímax) ou descendente (anticlímax) - no caso, ascendente:
     "eis que, do teto das casas,
     da pinha das copas,
     do cimo
     dos prédios,
     da riba dos montes, do cume dos sóis, 
     nasce uma manhã derradeira"

     Note-se o crescendo: casas, copas, prédios, montes, sóis...


                                *&*&*


     Poema perfeito. Canção que surge, brota com a aurora de Deus, tão misteriosa e solene que faz os homens pasmos, dóceis, pequeninos. 
     E justificando o título, dramático, patético, num tom de predição, temos "manhã derradeira" - não uma manhã qualquer, dentre tantas. Percebe-se ainda a dicotomia, a contradição, os ideais perdidos: uma alvorada plena de venturas, porém... última, extrema.

    

                                *** *** ***
                       de repente
de repente, a gente gostaria de mudar o mundo,
a gente queria ser bruxos,
mas a gente é pequeno demais.
 
mas sempre a gente chega tarde, a gente chega
depois do
pulgão


     
Comentário do Jô:
     pulgão (ou pulga-da-terra) - inseto parasito, praga agrícola.
     Palavra estranha a um texto que se pretenda poético.


                                    *** *** ***

                     oração entre os homens  
quando a prostituta passar, ó Senhor,
que
eu não desvie os meus olhos.
que a cor não seja para mim um detalhe, nem dos olhos nem da pele.
que todos tenham feições iguais e corações maiores
para mim, ó Senhor.
que tenham a mesma medida que
eu tenho,
em todos os tamanhos que
eu tenho.
que quando
eu achar absurdo ou ridículo ou estranho ou espúrio o que eu vejo,
que
eu saiba que o vejo, que são só os meus olhos,
— que estúpidos meus olhos que inventam barreiras para olhar.
eles olham de canto e desconfiados,
estúpidos!
que um dia os meus olhos possam ver com amor, — quando a prostituta passar
ou qualquer um, ó Senhor!

que um dia a gente pense com o pensamento da gente,
libertos.
que um dia a gente tente com o tento
da gente,
que a gente seja espertos.
que um dia a gente seja verdadeiros, desde o nascimento. sinceros.  
 
mas que antes disso a gente aprenda.
que a gente entenda o termo “gente” no silêncio da gente.
(que antes de sermos cristãos entendamos jesus: plebeu de nazaré,
filósofo e poeta, cantor de
inteligência e coração,
e que jamais deixara nenhum pelo outro: inteligência e coração.
como são tolos os homens, meu jesus do céu!)
como são tolos os homens: na ervilha do próprio ego concentrados (introspectivamente) — magoando-se-lhes todo
o arredor; como se fosse o seu mundo inteiro um
centro perfeito de orgulho e arrogância!
mas fora disso não são nada.
fora disso são idênticos a todos, uns para os outros,
e a tudo,
uma coisa do mundo a mais.
e se a mais, ainda não somam; disléxicos e retraídos:
os homens não vão a lugar nenhum!
quando a prostituta passar, ó Senhor,
olhemos para fora de nós, não mascaremos
nossas vistas.  
 
que noss’alma compreenda que isso é só matéria estulta, forma no vento, teu corpo, teu credo, teu reto e o meu,
que emanam do coração por dentro e passam a existir neste tempo, que passa,
(este espaço, que voa);
que se torne mais leve, portanto, o teu corpo, o meu corpo,
para não afundar;
(quando o amor me visitar. quando o amor me visitar. quando o amor me visitar.)
que
eu esteja todo inteiro por dentro,
por fora, por certo — quando o fim da minha vida me achar.
que não me restem dúvidas da minha integridade;
que o meu choro seja de culpa,
de cancro,
de calvas grisalhas intrépidas emoções,
mas que
eu não esteja morto antes de estar. que eu possa chorar.
que
eu não durma sem que me sinta (absolutamente)
esgotado de tudo. todo inteiro,
quando o meu tempo
acabar. quando o silêncio da minh’alma a mim me tomar.
e então — adeus!
mas que
eu esteja atento,
reverencialmente atento, leve, longe e fugaz,
sem qualquer dissabor;
 
quando a
não-profecia cumprir-se,
quando o resto
me sobrar.
quando eu, minha avó, minha mãe, meu amor...
— quando a prostituta passar,
ó Senhor!

        
 
 

     Comentário do Jô:
     
Excesso de "eus".
     Figuras de linguagem existentes nessa "oração...":
     1 - Polissíndeto (repetição, com fins expressivos, de uma conjunção coordenativa - em geral "e" ou "ou" - interligando um verso, poema ou período):
     a) ou:
     "que quando eu achar absurdo ou ridículo ou estranho ou espúrio o que eu vejo"

     b) que:
     "que um dia a gente pense com o pensamento da gente,
     libertos. que um dia a gente tente com o tento
     da gente, que a gente seja espertos.
     que um dia a gente seja verdadeiros, 
     desde o nascimento. sinceros." 

     2 - Apóstrofe (quando o orador ou escritor interpela alguém, real ou não, presente ou não, de surpresa, comunicando, denunciando ou solicitando algo):  
     "quando a prostituta passar, ó Senhor,
     que
eu não desvie os meus olhos."

     "que todos tenham feições iguais e corações maiores
     para mim, ó Senhor."


     "quando a prostituta passar
     ou qualquer um, ó Senhor!"


     "quando a prostituta passar, ó Senhor,
     olhemos para fora de nós, não mascaremos
     nossas vistas."  


     "quando eu, minha avó, minha mãe, meu amor...
     — quando a prostituta passar,
     ó Senhor!"

     Diríamos que a apóstrofe nasceu com as literaturas. E na luso-brasileira, há uma tradição em prosa e verso, passando por Luís de Camões ("Que me quereis, perpétuas saudades?"), António Vieira, Antônio de Castro Alves ("Deus, meu Deus, onde estás que não respondes?"), Fernando Pessoa ("Ò mar salgado, quanto do teu sal / São lágrimas de Portugal!"), Cecília Meireles ("Ai, palavras, ai, palavras, que estranha potência a vossa...") etc.

     3 - Anáfora (figura que se caracteriza por repetir uma palavra ou construção frasal em diversas orações ou versos). Além do item 2 (acima), há outros versos começando por quando:
"que quando
eu achar absurdo" 

"quando o fim da minha vida me achar."

"todo inteiro,
quando o meu tempo
acabar."


"quando o silêncio da minh’alma a mim me tomar."

"quando a
não-profecia cumprir-se,
quando o resto
me sobrar."


     4 - Pleonasmo 
(que é, na verdade, uma redundância elaborada estilisticamente, com objetivos artísticos):     
     "quando o silêncio da minh’alma a mim me tomar."

     5 - Eufemismo (uso de termos amenos para designar algo desagradável, terrível ou doloroso, em vez da expressão própria: "amigo do alheio" (ladrão), "foi para junto do Senhor" (faleceu) etc.:

"quando o fim da minha vida me achar."

"que
eu não durma sem que me sinta (absolutamente)
esgotado de tudo." 


"todo inteiro,
quando o meu tempo
acabar."


"quando o silêncio da minh’alma a mim me tomar."

"quando a
não-profecia cumprir-se,
quando o resto
me sobrar."

     Note-se o cuidado do poeta em não pronunciar sequer a palavra morte... 


                                       *&*&*

     Perdoem-me a ousadia da afirmação: o verso abaixo - verso-andorinha, verso-esperança, verso-entre os lírios - cabe em qualquer poema da Terra:
"(quando o amor me visitar. quando o amor me visitar. quando o amor me visitar.)"
     Um verso mozartiano.


     
 o arredor - algumas palavras da língua portuguesa só se usam no plural, como: as exéquias, os funerais... e os arredores. André inovou, ousou, avançou. Vejam em Substantivos só usados no plural .

     não-profecia - os povos, em geral, proclamam solenemente "a profecia se cumpriu", ou a profecia isto, a profecia aquilo... Já essa "não-profecia" dá o tom da originalidade do vate, quebrando a tradição profética de todos os tempos. André assumiu, aí, a missão imemorial do artista: desmontar conceitos multisseculares, aceitos sem indagações, que automatizam o senso comum...
     Êxtase completo, também, o título: "oração entre os homens", passando a noção de comunidade, irmandade, reunião e abraçologia; não "pelos", "ante", "aos" ou "com": "entre" todos. Em círculo, em júbilo, ditosos, encantados. Em ascensão. 
     Possivelmente, esse poema - salmo místico - perdurará, alcançando o Fim dos Tempos. Aleluia única!
   
  
   

                                *** *** *** 
     telúreo canto (pequena divagação dissertativa)
— todo o tempo
eu quis esperar de mim grandezas que eu
não precisava ter.
eu queria cantar como um deus, e o não precisava ser.
 
eu
errei na noção, na moção,
na ilusão,
na poesia, no olhar.
só não me faltou faltar; —
eu
tentei com todas as forças do
mundo!
 
às vezes
eu
sonhei pedestais e fui esquisito ou imbecil,
mas hoje me perdoem os homens!

eu
não cria ser nada mais que as minhas palavras
colocadas,
que o papel que
eu escrevia.
 
 
     Comentário do Jô:
     
Muitos "eus" num só enunciado.
     Pesquisando, descobri:

a) “telúrio - sm. 1. Quím. Elemento químico de número atômico 52, usado em semicondutores.”  (Dic. Aulete)

b) “telúrio - sm. 
 Elemento semimetálico, relacionado com o selênio e o enxofre e quimicamente semelhante a eles, conhecido sob dupla forma, uma, branco-prateada, quebradiça, cristalina, com lustre metálico mas fraca condutora de eletricidade, e outra, escura, amorfa, de propriedades variadas; arde, exposto ao ar, com chama verde-azulada, produzindo dióxido cristalino; é usado principalmente na indústria da borracha como agente vulcanizador secundário e em metalurgia na fabricação de ligas de alta resistência elétrica.” (Dic. Michaelis)
 
c) telúreo - verbete não encontrado. Neologismo do André.


    Revendo os termos análogos "telúrico" e "telurismo", constatei:
a) "Telúrico - adj. Relativo ou pertencente à Terra." (Dic. Michaelis)

b) "Telúrico - adj.
1. Ref. ao orbe terrestre (camadas telúricas); teluriano, teluroso.
2. Ref. ao solo (abalo telúrico).
3. Astron. Diz-se do planeta do tipo da Terra." (Dic. Aulete)


c) "Telurismo - sm.
1. O magnetismo terrestre e seus efeitos.
2. Influência da natureza do solo no homem que o habita, em sua  índole, costumes etc.
3. Suposta origem de certas doenças devido a características do solo." (Dic. Aulete)



                             *** *** ***
 
Enviado por Jô do Recanto das Letras em 27/01/2013
Reeditado em 03/04/2013
Código do texto: T4108761
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