Irreverências do Bruxo

Estive lendo uma coletânea de crônica do Machado de Assis chamada “Trinta Crônicas Irreverentes”, organizadas por Dilson Ferreira da Cruz. A primeira coisa que me chamou a atenção foi o destaque que Dilson deu ao desconhecimento do lado irreverente em Machado. Honestamente, eu me espantei. Li todos os seus romances e contos e muitas das suas crônicas e nunca me ocorreu que alguém pudesse não ter se apercebido disso. Eu entenderia um “Trinta Crônicas Ácidas” do Rubem Braga, ou um “Trinta Crônicas Moralistas” do Nelson Rodrigues, pois evidenciariam aspectos opostos aos que se espera delas, mas não um Machado irreverente. Mas vá lá: no nível acadêmico deve haver quem não tenha se dado conta – especialmente porque raramente há quem se debruce sobre as crônicas, mesmo as do Machado.

À exceção do Domingos Pellegrini, dificilmente alguém levantará a voz contra o Machado, e também não serei eu a fazê-lo diante dessas crônicas. Que fazer? Se hoje a gente a fala em Rubem e Nelson é porque um dia Machado escreveu coisas como essas que li. A ironia é bastante conhecida, e em textos curtos como a crônica ela normalmente se sustenta do começo ao fim – isso significa que ao longo do texto o escritor não vai dar um indício de que está brincando. Ainda que isso signifique deixar no leitor a impressão de que é favorável ao comércio de vinho falsificado, à exposição de ossos humanos, ou à prática da briga de galos. É uma ousadia que cronista nenhum mantém hoje. Em tempos de internet, Machado seria massacrado semanalmente, nunca compreendido – talvez menos do que naquela época.

Experimentações como as suas também pouco encontram seguidores. Machado não tem medo dos cenários fantásticos, do absurdo, do delírio – ele fatalmente ria horrores enquanto escrevia. O cronista cultiva algumas obsessões em suas brincadeiras, especialmente relacionadas à morte (Memórias Póstumas não é sinal de outra coisa). Na irreverência dessas crônicas, Machado conversa com vermes de cadáveres, transforma-se em espírito e vê a si mesmo possuído pelo diabo, morre e vai ao céu, conversa com São Pedro, morre e vai ao inferno, que é um lugar repleto de sinais de pontuação, e ele próprio acaba espremido no meio de dois parênteses. Machado não era apenas irreverente, era um humorista.

O absurdo também se estende às coisas materiais deste mundo. Em crônica bem famosa, Machado ouve a conversa de dois burros sobre o advento dos bondes elétricos. Em outra, durante um período de enchentes no Rio de Janeiro, mantém em sua casa a própria arca de Noé, com mais de dois animais de cada espécie (eram 7 os galos), e que conversavam entre si e com o cronista. E ainda em outra, cuja própria nota de rodapé ressalta o delírio, o cronista faz a atriz Sara Bernhardt pacificar o Rio Grande do Sul, tornar-se rainha, abdicar do trono e entregá-lo ao próprio Machado, alguém que sonha ser a inflamação na unha de sua amada, e que se vê transformado em dois burros antes de voltar a ser apenas um mocinho de quinze ou dezesseis anos.

Não é o tipo de texto que se vê todo dia. E, ao contrário do que possa parecer, todos eles estão perfeitamente ligados a acontecimentos contemporâneos ao escritor, a coisas que saiam nos jornais e afetavam a vida cotidiana no Rio de Janeiro daquele tempo. Há em cada ironia, e em cada citação (são muitas, algumas obsessivas, o que deve ter ajudado a gerar o Nelson) um motivo muito definido, mas que apenas um olhar atento pode perceber – e, ao perceber, rir. Estão lá teorias absurdas, todas ditas a sério, que satirizam principalmente a ciência e o espiritismo (este, de forma velada num primeiro momento, mas depois de forma surpreendentemente aberta e quase sem ironia).

O livro cobre várias fases da produção de Machado como cronista. Isso inclui textos feitos para a sua coluna “Gazeta de Holanda” que não são crônicas, e sim poesias. A impressão é que Machado foi aperfeiçoando o que já era bom ao longo dos anos, destacando-se em “Bom dias” e possivelmente chegando ao auge nos textos da “A Semana”, que, não à toa, cedeu a maior parte das crônicas. É desta fase a bonita crônica que, à seu modo, explica o mundo como um grande baile de casacas alugadas.

À despeito de algumas referências factuais mais difíceis de serem compreendidas hoje (mas há notas que as explicam), as crônicas do Machado, deste ou de qualquer outro livro, são de leitura essencial para quem já estava admirado com a sua produção de ficção tradicional.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 14/01/2013
Reeditado em 14/01/2013
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