SARAMAGO, José. O homem duplicado. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
A obra O Homem Duplicado de José Saramago conta a historia de Tertuliano Máximo Afonso, um professor de História que, em uma noite se depara com alguém com características idênticas às suas. Seu duplo aparece em um filme a que Tertuliano assistia: era um ator secundário. O título do filme era Quem porfia mata a caça. Essa constatação incomoda muito Tertuliano, que decide, no decorrer da narrativa, marcar um encontro com o ator, cujo nome é Antonio Claro. Eles se encontram e, devido a uma reviravolta, acabam invertendo os papéis: Tertuliano veste as roupas de Antonio Claro e este se veste de Tertuliano. Um acidente de carro acontece e Antonio Claro acaba sendo vítima fatal, junto de Maria da Paz noiva de Tertuliano. Entretanto, como estava com as vestimentas de Tertuliano, para todos os efeitos, quem morrera foi o professor de história. Tertuliano, para não ser considerado louco, assume, pois, a vida do ator, incluindo sua esposa. Porém um belo dia ele recebe uma ligação de um novo duplo eles marcam um encontro, ele pega a sua arma e sai. Final do romance.
A referente obra Saramago trata de um tema comum na literatura o duplo, que é muitas vezes representado na literatura como afirma Calmaud:
Em uma primeira aproximação, o tema do duplo é um tema raro, que parece não haver interessado mais que meia dezena de escritores: Hoffman, Andersen, Poe, Dostoiévski, Pirandello e um ou dois mais. Uma demonstração mais aguçada demonstra, no entanto, que este é um tema fundamental de toda literatura. Por último, e, sobretudo, ele nos conduz ao coração dos problemas de nosso tempo. (Apud KALINA e KOVADLOFF, 1989, p.15).
Assim como Saramago, Edgar Allan Poe em seu conto Willian Wilson também aborda o tema do duplo. O conto Willian Wilson, em que Willian Wilson é o narrador de sua própria história. Desde quando era um bebê, William já demonstra uma personalidade forte e se transforma numa criança que faz tudo o que quer. Na escola, ele se depara com um homônimo que também é seu sósia e que nasceu no mesmo dia, mês e ano em que ele havia nascido. Não bastasse isto, este sósia copia todos os seus trejeitos e falas. A única diferença entre eles é a voz do duplo, que não passa de um sussurro. Aparentemente, ninguém mais consegue perceber tais semelhanças, a não ser o próprio Willian Wilson. O tempo passa e Willian Wilson acaba se encontrando com o seu sósia apenas em situações que envolvam constrangimento. Como já não consegue mais suportar a aparição inoportuna do outro, Willian Wilson acaba matando o seu duplo consequentemente a si próprio.
Apesar dos dois autores abordarem o tema do duplo, a construção do mesmo em cada obra é diferenciada, pois, o duplo no conto de Poe aparece de forma incompreensível e inexplicável, já que ele nasceu no mesmo dia em que o “primeiro ou verdadeiro” Willian Wilson, chegou à escola no mesmo dia, tem as mesmas feições, mesma voz, com exceção do fato de ela ser apenas um sussurro. Já o duplo presente na obra de Saramago é apresentado de forma diferente, pois no titulo da obra já é enunciado á presença de um homem duplicado, ainda se constata no decorrer da narração que não apenas Tertuliano Máximo Afonso e Antonio Claro são duplos, ou seja, inicialmente o duplo de Tertuliano é António Claro, porém Antonio possui de certa forma outro duplo, ou seja, seu personagem artístico chamado de Daniel santa clara.
As aparições dos duplos são de formas diferentes, o duplo de Saramago aparece inicialmente no filme em que fora indicado pelo professor de matemática ao Tertuliano:
[...] Tertuliano Máximo Afonso levantou-se da cadeira, ajoelhou-se diante do televisor, a cara tão perto do ecrã quanto lho permitia a visão, Sou eu, disse, e outra vez sentiu que se lhe eriçavam os pêlos do corpo, o que ali estava não era verdade, não podia ser verdade, qualquer pessoa equilibrada por acaso ali presente o tranquilizaria, Que ideia, meu caro Tertuliano, tenha a bondade de observar que ele usa bigode, enquanto você tem a cara rapada. [...] (SARAMAGO, 2002)
Já no conto de Poe o duplo aparece na escola onde Willian Wilson estuda:
[...] Este um era o aluno que, sem ter comigo parentesco algum, tinha o mesmo nome de batismo e o mesmo nome de família (circunstância pouco notável em si, porque o meu nome, não obstante a nobreza da origem era um destes apelidos vulgares, que parece ter sido, desde tempo imemorial, por direito de prescrição, propriedade comum do povo). Nesta narrativa, o nome de Wilson (nome fictício, mas que não está muito afastado do verdadeiro): só o meu homônimo, entre todos os que, segundo a linguagem do colégio, compunham a nossa classe, ousava rivalizar comigo nos estudos das aulas, nos jogos e nas disputas do recreio, recusar fé absoluta às minhas asserções e submissão completa à minha vontade; [...] (POE, 2000)
Podemos perceber que as descobertas dos duplos de cada obra aconteceram de maneiras distintas, pois, o duplo de Poe de certa forma é rival do “verdadeiro”, já o duplo de Saramago vive uma vida comum, que dispensa a participação do seu duplo “verdadeiro”. A descoberta do duplo para Willian Wilson se torna um tormento, pois o seu duplo faz tudo o que ele de certa forma não pode ou não tem coragem, seu duplo o desafia durante toda a narração da historia, percebemos nesta passagem:
Fugia em vão! O meu destino maldito perseguiu-me triunfante, provando-me que o seu poder misterioso tinha apenas começado. Mal pus os pés em Paris, tive logo uma
prova da jurisdição de Wilson. Decorreram anos sem tré-guas para mim. Miserável! Em Roma, com que desvê-lo importuno, com que ternura de espectro, veio interpor-se entre mim e a minha ambição! E em Viena! E em Berlim! E em Moscou! Aonde podia eu ir, que não achasse logo uma razão amarga para o amaldiçoar do fundo do coração? Atacado por um pânico indescritível, fugia diante da sua tirania como diante da peste. Fugi até ao fim do mundo, mas fugi em vão!(POE, 2000)
Percebe se que a descoberta de Willian e a convivência com seu duplo não é das melhores, já no duplo de Saramago os dois se encontram após uma grande busca de Tertuliano ao seu duplo, porém quando se encontram ele não odeia seu duplo, mas cai em uma crise de identidade, Quem será o verdadeiro? Quem nasceu primeiro? E agora como vai ser? Assim como no conto de Poe os duplos nasceram no mesmo dia, mês e ano, porém a preocupação deles inicialmente era que havia nascido primeiro:
[...] E que importância terá dizermos um ao outro a hora a que viemos ao mundo, A importância que irá ter é que ficaremos a saber qual de nós dois, você ou eu, é o duplicado do outro, E que sucederá a um e a outro pelo facto de o sabermos, Disso não tenho a menor ideia, porém, a minha imaginação, os actores também são dotados de alguma, diz-me que, no mínimo, não deverá ser cómodo viver sabendo-se duplicado de outra pessoa, E está disposto, pela sua parte, a arriscar-se, Mais que disposto, Sem mentir, Espero que não seja necessário, respondeu António Claro com um sorriso estudado, uma composição plástica de lábios e dentes onde, em doses idênticas e indiscerníveis, se reuniam a franqueza e a maldade, a inocência e o descaro. Depois acrescentou, Naturalmente, se prefere, poderemos tirar à sorte aquele a quem caberá falar em primeiro lugar, Não é preciso, eu começo, você mesmo referiu que é uma questão de rectidão e boa-fé, disse Tertuliano Máximo Afonso, Nasceu então a que horas, Às duas da tarde. António Claro pôs uma cara de pena e disse, Eu nasci meia hora antes, ou, para falar com absoluta exactidão cronométrica, pus a cabeça de fora às treze horas e vinte e nove minutos, lamento-o, meu caro, mas eu já cá estava quando você nasceu o duplicado é você. [...] (SARAMAGO, 2002)
Enquanto no conto de Poe os duplos viviam em uma disputa e ainda Willian Wilson em constante fuga de seu duplo, no duplo saramaguiano eles de certa forma duelam civilizadamente para saber que nasceu primeiro, mas não há uma preocupação em fugir desta descoberta ou da convivência e sim uma curiosidade de saber mais de cada um. A necessidade de comparação entre Tertuliano e Antonio é tanta que os mesmos chegam a trocar as mulheres para saber como seria, a ideia surge de Antonio que convida Maria da Paz para sair com ele, inicialmente Tertuliano não gosta da ideia fica contrariado, mas depois de muita discussão concorda:
[...] Convidei-a para ir hoje comigo ver uma casa de campo que está para alugar, A sua casa de campo, exatamente, a minha casa de campo, mas fique descansado, quem falou pelo telefone com a sua amiga Maria da Paz não foi António Claro, mas sim Tertuliano Máximo Afonso, Você está doido, que diabólica tramóia é esta, que pretende, Quer que lhe diga, Exijo-o, Pretendo passar esta noite com ela, nada mais. [...] (SARAMAGO, 2002)
[...] Muito bem, disse Tertuliano Máximo Afonso, e de que tipo de roupas vai necessitar, traje completo com gravata, ou assim como o estou a ver, à verão, Roupas leves, deste gênero. Tertuliano Máximo Afonso saiu, foi ao quarto, abriu o guarda-fato, abriu gavetas, em menos de cinco minutos estava de volta com tudo o que era necessário, uma camisa, umas calças, jérsei, peúgas, sapatos. Vista-se na casa de banho, disse. Quando António Claro regressou, viu em cima da mesa de centro um relógio de pulso, uma carteira e documentos de identificação, Os papéis do carro encontram-se no compartimento das luvas, disse Tertuliano Máximo Afonso, e aqui estão também as chaves, e ainda as desta casa para a hipótese de eu não estar cá quando você vier trocar de roupa, suponho que virá trocar de roupa, Virei a meio da manhã, prometi à minha mulher que não chegaria depois do meio-dia, respondeu António Claro. [...] (SARAMAGO, 2002)
Após aceitar a ideia de Antonio Claro, Tertuliano resolve então ficar com Helena mulher de seu duplo, isso contraria toda narração estabelecida desde o inicio da obra quando a mesma descreve Tertuliano, pois essa atuação não é comum de um homem pacato, simples, sem expectativa de vida:
[...] Tertuliano Máximo Afonso despiu-se todo. Franziu o nariz de repugnância ao pôr a roupa interior que havia sido usada pelo outro, mas não havia remédio, a tanto o obrigava a necessidade, que é um dos nomes que toma o destino quando lhe convém disfarçar-se. Agora que se via convertido à situação de outro de Tertuliano Máximo Afonso, mais não lhe restava que tornar-se António Claro que o mesmo António Claro abandonara. Por sua vez, quando amanhã voltar para recuperar a roupa, António Claro só como Tertuliano Máximo Afonso poderá sair à rua, terá de ser Tertuliano Máximo Afonso por todo o tempo que roupas suas, próprias, estas que aqui deixou ou outras, tardarem a devolver-lhe a identidade de António Claro. [...] (SARAMAGO, 2002)
Percebe se que com o descobrimento de seu duplo o professor de Historia que dedicava se a uma vida pacata e cotidiana, começa a tomar atitudes de certa forma contraria aos seus valores, ele assume a identidade de um homem de atitude, pois com as narrativas iniciais da obra O homem duplicado, fica incabível imaginar que Tertuliano praticaria a ação de dormir com a mulher de Antonio Claro. Todo esse desenrolar da narrativa ocorre uma relação entre os duplos de Saramago, contrario ao que ocorre com os duplos de Poe:
[...] E sempre, sempre interrogando secretamente: a alma repetia as minhas perguntas: Quem é? De onde vem? Que quer? E analisava, então, com minucioso cuidado, as formas, o método, as feições características da sua insolente vigilância. Mas, nem nesse ponto achava nada que pudesse servir de base a uma conjetura. Era uma coisa verdadeiramente notável, que nos casos numerosos em que Wilson tinha recentemente, atravessado o meu caminho, todos os planos derrotados por ele eram loucuras que, se tivessem progredido, teriam fatalmente rematado por uma desgraça. [...] (POE, 2000)
Aparentemente cabe colocar que o duplo presente no conto de Poe é um duplo psicológico como se fosse à extensão de Willian Wilson, sendo que quando os dois se encontram e William resolve então tirar satisfações com seu duplo, pois no decorrer do conto os mesmos não conversão, eles se encontram em um baile de mascara em Roma, Willian havia tomado vinho além da conta, quando percebe seu duplo lhe toca o ombro, William possuído de raiva leva seu duplo para uma sala:
[...] O combate não foi longo. Exasperado como estava, por ardentes excitações de toda espécie, sentia no braço a energia e o poder de um exército. Dentro em poucos segundos, levei-o contra a parede e ali, tendo-o à discrição, cravei- lhe repetidas vezes a espada no peito, com a ferocidade de um bruto. [...] (POE, 2000)
[...] Durante o curto instante que me afastara, produzira-se nas disposições locais do aposento uma mudança material. No lugar onde me recordava de não ter visto - nada, estava agora um espelho enorme (no estado de perturbação em que me achava, assim se me afigurou) e, como eu caminhasse para ele, cheio de terror, a minha própria imagem, mas com a cara horrivelmente pálida e toda salpicada de sangue, avançou para mim a passos lentos e vacilantes. Tal se me afigurava, digo, mas realmente não era assim. Era o meu adversário, era Wilson moribundo, que se erguia diante de mim. A sua máscara e o seu manto estavam no chão. Não havia um fio no seu vestuário, nem uma linha em toda a sua figura (tão caracterizada e tão singular) que não fosse meu, que não fosse minha; era o absoluto na identidade![...] (POE, 2000)
Percebe se que o duplo de Poe quando foi morto por Willian Wilson ao mesmo tempo em que ele morre a morte de Willian esta determinada, por isso a questão do duplo de Poe ser uma extensão psicológica de Willian. O duplo em Poe é direto e incisivo, não há uma explicação, pelo contrário, o leitor segue por uma teia emaranhada de perguntas que ficam sem resposta.
[...] Venceste e eu sucumbo. Mas, doravante também estás morto, morto para o mundo, para o céu e para a esperança! Em mim existias; e, agora, olha para a minha morte, vê nesta imagem, que é a tua, como te assassinaste a ti próprio![...] (POE, 2000)
Na obra de Saramago, diferentemente de Poe, o autor utiliza o tema para discutir a sociedade moderna. No decorrer da história, á sempre uma pergunta a ser respondida: Quem é o homem que vive hoje numa sociedade? Para Saramago, o homem perde a identidade sem perceber. Depara-se com seu duplo e é obrigado a assumir a identidade perdida para tentar descobrir quem é realmente. Para isso luta por sua sobrevivência enquanto indivíduo singular, busca resgatar uma personalidade encoberta pela rotina de uma vida medíocre e pacata.
O homem duplicado reconhece: “Serei um erro, perguntou- se, e supondo que efetivamente o sou, que significado, que conseqüências para um ser humano terá saber-se errado.” O romance se finaliza com a busca de Tertuliano em conservar sua identidade única:
É o senhor Daniel Santa-Clara, perguntou a voz, Sim, sou eu, Andava há semanas à sua procura, mas finalmente encontrei-o, Que deseja, Gostaria de me encontrar pessoalmente consigo, Para quê, Deve ter reparado que as nossas vozes são iguais, Parece-me notar uma certa semelhança, Semelhança, não, igualdade, Como queira, Não é só nas vozes que somos parecidos, Não entendo, Qualquer pessoa que nos visse juntos seria capaz de jurar que somos gêmeos, Gêmeos, Mais que gêmeos, iguais, Iguais, como, Iguais, simplesmente iguais, Acabemos com esta conversa, tenho que fazer, Quer dizer que não acredita em mim, Não acredito em impossíveis, Tem dois sinais no antebraço direito, um ao lado do outro, Tenho, Eu também, Isso não prova nada, Tem uma cicatriz debaixo da rótula esquerda, Sim, Eu também. Tertuliano Máximo Afonso respirou fundo, depois perguntou, Onde está, Numa cabina telefônica não muito longe da sua casa, E onde posso encontrá- lo Terá de ser num sítio isolado, sem testemunhas, Evidentemente, não somos quaisquer fenômenos de feira. A voz do outro lado sugeriu um parque na periferia da cidade e Tertuliano Máximo Afonso disse que estava de acordo, Mas os carros não podem entrar, observou, Melhor assim, disse a voz, É essa também a minha opinião, Há uma parte de bosque depois do terceiro lago, espero-o aí, Talvez eu chegue primeiro, Quando, Agora mesmo, dentro de uma hora, Muito bem, Muito bem, repetiu Tertuliano Máximo Afonso pousando o telefone. Puxou uma folha de papel e escreveu sem assinar, Voltarei. Depois foi ao quarto, abriu a gaveta onde estava a pistola. Introduziu o carregador na coronha e transferiu um cartucho para a câmara. Mudou de roupa, camisa lavada, gravata, calças, casaco, os sapatos melhores. Entalou a pistola no cinto e saiu. (SARAMAGO, 2002)
KALINA, Eduardo; KOVADLOFF, Santiago. O dualismo. Trad. Oswaldo Amaral. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989.
POE, Edgar Allan. Willian Wilson. Copyright © 2000.
SARAMAGO, Jose. O homem duplicado. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.