Mataram os passarinhos de Deus!

* Por Edir Araujo

(Resenha literária em verso e prosa, inspirada no livro

Corpo Vivo, de Adonias Filho)

A morte, naqueles confins do sul da Bahia,

penetra as matas e os corações de pedra.

Como numa arena dos tempos romanos,

as feras devoram os inocentes...

para ambição feroz dos poderosos,

numa furiosa cegueira por mais e mais terras

(cujo ouro maldito é o cacau).

Ouvem-se gritos horrorizados pelas selvas;

é Hebe, anunciando, aterrorizada:

“Mataram os passarinhos de Deus.”

Padrinho Abílio é quem encontra os mortos.

Sobre o sangue derramado florescerá o cacau;

ouro que provoca ambição e desgraça.

Hebe profetizou o fim... e agora corre alardeando

por aqueles rincões, pelas entranhas daquele mundo selvagem:

“Mataram os passarinhos de Deus."

Compadre Januário e família, mortos.

Da chacina só escapa o menino Cajango.

Nosso fabuloso herói, que parece personificar

tão bem uma tragédia grega, tamanha a sua grandeza.

E ei-lo já crescido, a vingança nos olhos,

o bugre, a cara de pedra, cuja rebeldia,

transcende toda a amargura do seu peito.

Tendo por único objetivo; vingar a bruxa doida;

é Hebe, bradando aos quatro ventos:

“Mataram os passarinhos de Deus”.

Há também um tal de João Caio, com sua pulseira de ferro.

Dico Gaspar, com seu calção de couro de carneiro;

chefe de um dos bandos de Cajango, que castigará

severamente caboclo Juca, o traidor,

sendo devorado pelos cães famintos.

É o selvagem tagarela nas roças de cacau.

É temido, e seu nome está em todas as bocas,

em todos os caminhos, por onde também passa

Hebe, que grita, célere:

“Mataram os passarinhos de Deus”.

Entre os seios de Malva,

a cruz de arame do negro Setembro;

morto heroicamente num combate.

Mas a presença desta mulher foi reclamada

pois que poria em risco a vida de Cajango,

caído de amores por ela, e um deles dirá:

“Hebe, a bruxa doida, avisou muitas vezes

que esta mulher chegaria...”

E chegou. E com ela a discórdia...

Mas um deles também teria dito:

- "Cajango deveria ter matado Hebe".

Cujos gritos ecoam pela selva sombria:

“Mataram os passarinhos de Deus”.

Qual uma entidade fantástica, vivente das sombras,

dela falam as bocas, os ouvidos ouvem, aqui e acolá;

É Hebe, a velha bruxa, berrando,

como uma alma penada, pelas veredas:

“Mataram os passarinhos de Deus”.

Cajango é caçado, implacavelmente.

E todos querem a sua cabeça.

Sua cabeça está a prêmio, vale ouro!

Talvez tanto quanto a desenfreada

cobiça dos fazendeiros de cacau.

Mas no que tange ao amor, com seus encantos,

só uma mulher faria o milagre.

Assim Malva entraria em cena,

conquistando seu coração de pedra;

rude, vingativo e selvagem...

Pela qual nosso herói mata Inuri, seu tio e tutor,

num duelo épico, lírico, sangrento.

E corre o casal, numa fuga incansável.

Deixando para trás a terra banhada de sangue.

O ouro dos cacaueiros, a ferocidade, a morte.

A velha bruxa, com seus cabelos de algodão;

gritando loucamente, espavorida:

“Mataram os passarinhos de Deus”.

Dizem que ela tem cem anos.

A primeira mulher branca a endoidecer

naquelas terras, cujo cacau é o deus supremo.

Viu o Sangrador matar os meninos, e enlouqueceu.

Agora corre, doidivanas, por entre as árvores,

que parecem dormir sob um céu de chumbo.

ouvem-se seus gritos, numa voz esganiçada:

“Mataram os passarinhos de Deus.”

Cajango e Malva, o homem e a mulher.

Seguirão, determinados, numa fuga sem igual.

Nunca houve em tempo algum um amor tão selvagem!

É Cajango com seu facão, desafiador,

abrindo caminho entre o capinzal,

puxando a mulher pela mão. O amor de um bugre!

Cujo penhor custou-lhe a fúria, suor e sangue.

Parecem ainda ouvir atrás de si os gritos de Hebe:

“Mataram os passarinhos de Deus”.

Mais a frente; a serra, o chapadão.

Lá encontrarão o ninho, extasiados.

Mão na mão, olho no olho, ali se amarão.

Decerto terão filhos, decerto a paz reinará,

e não mais pisarão o sangue humano.

Mas quem ousaria chegar lá onde estão?

Eles chegaram. O solo é úmido.

Febril é o seu coração pela amada.

Uma muralha de pedra, medonha, dobra-se

entre eles e aquele mundo sanguinário e tenebroso.

Talvez nem o vento chegue lá,

onde estão, onde nenhum humano pisou.

E ali construirão o ninho e gozarão a vida.

Mas jamais esquecerão de Hebe.

A velha bruxa e os seus gritos insanos:

“Mataram os passarinhos de Deus”.

Cobre eles agora um novo céu.

Fitarão as estrelas, radiantes...

E não terão saudades daqueles dias infaustos.

E o homem dirá a mulher que o inferno ficou para trás.

Uma terra inóspita e beligerante,

onde o ouro do cacau provoca tanta tirania,

tanta amargura e tanta morte...

E seus ouvidos, durante a tempestade,

parecerão ouvir entre os trovões,

de muito longe, o eco de um grito longínquo.

Será Hebe? (dirá o homem) a velha bruxa?

Sim... que ainda vive naquele inferno.

Ela profetizou o fim, já é uma lenda.

Correndo, desvairada...

Uivando como um cão danado:

“Mataram os passarinhos de Deus”.

Inserido no livro Risos e Lágrimas, pág. 30.

Reservados Direitos Autorais. Registro ISBN - 978-85-913565-2-2

* Poeta e escritor, autor dos livros: A Passagem dos Cometas, A Boneca de Pano, Risos e Lágrimas e Fulana (este inédito).

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Edir Araujo
Enviado por Edir Araujo em 12/12/2012
Reeditado em 10/11/2019
Código do texto: T4032449
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