A LONGA VIDA DOS PATRIARCAS
“E toda a vida de Matusalém foi de novecentos e sessenta e nove anos, e morreu.”Gênesis , 5;27
Nos antigos tempos não havia a ciência
E as pessoas viviam de maneira discreta.
O homem alcançava comprida vivência,
Todos eles morriam em idade provecta.
Assim foi Adão com a sua posteridade;
Esses centenários patriarcas prolíficos,
Que filhos geravam em avançada idade.
Nem precisavam de recursos científicos.
Esses patriarcas eram homens de valor,
Viviam em Deus, que por isso lhes deu,
Existência tão longa com saúde e vigor.
Quase mil anos durou o tal Matusalém,
O homem mais velho que um dia viveu.
E a maioria de nós sequer chega a cem.
Comentário:
A idade dos patriarcas bíblicos que viveram antes do dilúvio sempre foi uma questão polêmica que nunca foi resolvida a contento pelos comentadores da Bíblia. Segundo os cronistas bíblicos Adão viveu novecentos e trinta anos, e seu filho Set, novecentos e doze. Os descendentes de Set, até Nóe, todos eles viveram vidas várias vezes centenárias, sendo que Matusalém, da oitava geração de Adão, foi o patriarca que mais tempo viveu. A Bíblia registra que ele morreu com novecentos e sessenta e nove anos!
Há quem interprete essa metáfora da longevidade dos patriarcas ante diluvianos como uma verdade literal mesmo, afirmando que a pureza do clima, a frugalidade da alimentação e a vontade que Deus tinha de propagar rapidamente a espécie humana foram as principais causas dessa longevidade.
É claro que a ciência moderna não agasalha essa tese. Afinal, não há qualquer indicação de que o clima, naqueles tempos fosse melhor do que é hoje, nem que a alimentação daqueles antigos povos fosse mais saudável do que é agora. Na verdade, as informações que se pode levantar até agora, oriunda de fósseis recenseados das eras referidas, mostram exatamente o contrário. A expectativa de vida de um indivíduo, nos tempos em que se supõe tenham vivido os patriarcas, mal passava dos trinta anos.
Dizer que foi a vontade de Deus - embora se reconheça que ela tudo pode-, agindo para que a espécie humana se propagasse com rapidez, que fez com que esses homens vivessem tanto tempo, soa como uma simplificação, senão ingênua, bizarra demais para ser levada a sério. No entanto, ela se prestou á várias interpretações, algumas inclusive atribuídas a personagens importantes como Lutero, o desencadeador da Reforma Protestante, e do Bispo Anglicano James Usher, erudito e grande estudioso da Bíblia, que no ano de 1654 divulgou a curiosa informação de que o mundo fora criado no dia 6 de outubro do ano 4.004 a.C, às 9 horas da manhã, quando Deus disse: "Faça-se a Luz". Essa interessante descoberta do Bispo Usher foi feita computando-se as idades dos patriarcas ante diluvianos e pós diluvianos que a Bíblia cita, os quais perfazem uma soma de 2000 anos desde Adão até Abraão e mais 2000 anos de Abrão até Jesus Cristo, perfazendo o total de 4004 anos antes de Cristo (pois segundo ele Jesus teria nascido no ano 4 a era cristã). Assim o nosso universo seria hoje um simpático velhinho de 6012 anos! E se ele morrer em 21 de dezembro de 2012, como os adeptos do apocalipse dizem, ele morrerá mais jovem do que o povo que construiu o sitio de Gobekli Tepe, na Turquia, a quem os arqueólogos atribuem mais de 10.000 anos.
Bom. Sabemos que o conflito entre os cientistas e os que interpretam literalmente a Bíblia é uma coisa irreconciliável, tanto quanto o conflito entre Israel e os povos palestinos. Aliás, um e outro têm muito a ver. Aliás, não de hoje que os primeiros vêm denunciando o caráter ideológico e propagandístico da Bíblia em favor de uma hegemonia de Israel naqueles territórios e, com base nessas conclusões, propondo interpretações outras para as histórias, metáforas e mitos que compõem o livro sagrado, especialmente aqueles que se referem ao mito da criação e aos primeiros tempos da humanidade.
É evidente que os cientistas não poderiam mesmo concordar com aqueles que defendem a literalidade da Bíblia nessa questão, porquanto a ciência afirma que a presença do "homo sapiens" sobre a terra pode ser recenseada até uns 500 mil anos atrás ou muito mais, se quisermos incluir na espécie humana o chamado "homo Habilis", cuja existência talvez possa ser detectada a dois milhões e meio de anos. Ainda que tais afirmações possam ser contestadas, é fato comprovado que a presença do homem sobre a terra, tal qual o conhecemos hoje, é muito mais antiga do que os escassos seis mil anos que lhe atribuem os seguidores do inefável Bispo Usher.
Quanto á notável longevidade dos patriarcas bíblicos convém notar que hoje, mesmo com todos os avanços da ciência, ela pouco excede os setenta anos, e entre as civilizações menos desenvolvidas, como algumas tribos da África e do Oriente, ela mal chega a quarenta. Considerando as condições de vida em que viviam os povos antigos, pouco diferentes em relação às tribos ainda hoje vivendo em algumas regiões do Oriente Médio, é difícil imaginar que em algum momento, anterior aos tempos históricos, elas tenham sido melhores do que hoje.
Para os cronistas bíblicos, a civilização, em termos de qualidade de vida, não avançou, mas sim retrocedeu violentamente, pois se antes do dilúvio um homem podia alcançar quase mil anos de vida, como Matusalém, um pouco antes de Deus afogar a antiga civilização, a expectativa de vida caiu para cento e vinte anos (Gênesis, 6.3), por conta do próprio decreto divino, que resolveu, dessa forma, punir o gênero humano por seus pecados.
Então como ler essas conflitantes informações que a Bíblia nos dá acerca da longevidade dos patriarcas? Em primeiro lugar é preciso assinalar que tais personagens são citados única e exclusivamente para identificar a árvore genealógica do povo de Israel, e constituem muito mais uma fonte de referência para a construção de uma tese do que uma verdade histórica mesmo. Isso quer dizer que os cronistas bíblicos usaram a história dos patriarcas longevos para justificar a pretensão do povo de Israel como povo eleito de Deus, da mesma forma que um jurista usaria a árvore genealógica de uma família para justificar a reivindicação de um direito de família num tribunal.
A grande sacada dos cronistas israelitas foi ter criado personagens reais (ou supostamente reais) para preencher sua árvore genealógica, enquanto os demais povos do Oriente e do Ocidente preenchiam esse espaço com personagens divinas e mitológicas. Enquanto os povos do Vale do Nilo, do Eufrates e dos grandes rios da Índia e da China invocavam deuses e outras criaturas mitológicas como antecedentes, da mesma forma que os gregos, os romanos e outros povos do Ocidente, Israel preferiu identificar seus antecessores como criaturas humanas, e mais que isso, deu-lhes nomes e criou para eles uma história de vida factível, mais compatível com gente de carne e osso. Assim, para uma humanidade que estava acostumada a preencher os vazios da sua ancestralidade com seres imaginários, a obra dos cronistas de Israel veio preencher uma gigantesca lacuna na mente consciente da humanidade. Numa história é mais fácil acreditar do que numa lenda.
Ressalta-se, desde logo, que a árvore genealógica bíblica é uma montagem urdida com muita inteligência literária. São dez patriarcas antes do dilúvio(de Adão até Noé), mais dez depois do dilúvio(de Noé até Abraão). Nada mais fácil para recordar do que listas decimais, que podem ser contadas pelos dedos das mãos.
Agora, é claro que os cronistas bíblicos não inventaram simplesmente esses patriarcas e lhes deram uma histórica de vida consentânea com as necessidades das suas teses destinadas a provar o direito hereditário de Israel como primogênito de Deus. Esses personagens já existiam nas tradições mais antigas, especialmente dos sumérios e outros povos mesopotâmicos, de onde os antecessores dos israelitas provieram. Adão, Set, Enoque, Matusalém, Lamec, Noé e outros, são arquétipos que têm seus correspondentes em quase todas as histórias dos povos antigos. Um exemplo pode ser buscado na literatura sumeriana, onde certamente os cronistas bíblicos devem ter se inspirado. Pois ali se encontra uma lista de reis ante diluvianos que teriam vivido nos primórdios da humanidade, dotados cada qual de extraordinária longevidade. Uma dessas listas, compilada por um sacerdote babilônico de nome Berosso, contém um catálogo de dez reis que teriam vivido antes do dilúvio, sendo que o décimo deles, de nome Xisutro,ou Xixoutro, é o Noé babilônico, herói citado na epopéia de Gilgamesh, como sendo sobrevivente do dilúvio e iniciador da nova raça humana. Nessa lista se informa o nome de dez reis e o tempo, em anos, de cada reinado:
1.; Aloro reinou; 36.000 anos ou 10 saros (1 saro=3600 anos)
2.; Aláparo; 10.800; 3
3.; Almelon; 46.800; 13
4.; Amenon; 43.200; 12
5.; Amegálaro; 64.800; 18
6.; Dáono; 36.000; 10
7.; Edoranco; 64.800; 18
S.; Amenfsino; 36.000; 10
9.; Otiartes; 24.800; 8
10.; Xisutro; 64.800; 18.[1]
Uma outra lista, constante de uma inscrição encontrada nas ruínas das antigas civilizações mesopotâmicas dão os nomes de dez reis que teriam reinado após o dilúvio, bem como o tempo de seus reinados. Essa lista cobriria um período que iria desde o fim do dilúvio até o ano em que ela foi compilada (cerca de 2.400 a C). Esses reis seriam:
1. Alulim, de Eridu reinou 28.800 anos ou 8 saros.
2. Alagar, de Eridu 36.000 anos,ou 10 saros.
3. En-me-en-lu-an-na, de Badtibira 43.200 anos ou 12 saros.
4. En-me-en-gal-an-na, de Badtibira 28.800 anos ou 8 saros.
5. Dumu-zy, o pastor de Badtibira 36.000 anos ou 10 saros.
6. En-sib-zi-an-na, de Larak 28.000 anos, ou 8 saros.
7. En-me-en-dur-an-na, de Sippar 21.000 anos ou 5 saros e 5 ner.
8. Ubara-du-du, de Suruppak 18.000 anos ou 5 saros e 1 ner.[2]
Em outras civilizações antigas também foram encontrados registros que citam personagens fundadores de sua civilização. No Egito, por exemplo, achou-se uma lista de dez reis que governaram o povo nos seus primórdios, começando com Osíris, o herói atlante deificado. Os Persas também conheciam seus dez Patriarcas antecessores; os Hindus enumeravam os nove descendentes de Brama, que deram geração aos povos do Vale do Indo e do Ganges.
Assim, a literatura bíblica teve seus antecedentes, nos quais se inspiraram e os espertos cronistas israelitas não inventaram nada. Apenas adaptaram antigas tradições ás necessidades de sua tese. E á elas acrescentaram um criativo enredo, fundamentado principalmente nas fórmulas cabalísticas, por eles criadas para interpretar as crenças e mistérios da sua religião. Esse enredo, fundamentado principalmente na numerologia cabalística emprestou á narrativa bíblica a característica misteriosa que até hoje excita a imaginação de quem se propõe a estudar esse assunto. Assim, as idades dos patriarcas podem ser deduzidas dessas estranhas relações numéricas e astrológicas que os antigos magos caldeus criaram e os rabinos judeus desenvolveram na grande Tradição da Cabala. Dessa forma, a idade de Adão, por exemplo, que foi de 930 anos, resulta da conta 1000 – 70 ( 1.000 o número de Deus, segundo o Salmo 90,4, menos 70, o número da perfeição). Significa que Deus tirou de Adão, por seu pecado, a qualidade da perfeição.
Todas essas relações numéricas e cabalistas foi bem analisada no interessante trabalho do Pe. Ariel Alvarez Valdéz, já citado. Escreve esse autor:
“Cainã, o 4º da lista pré-diluvianos (5,12) gerou seu filho aos 70 anos (nº. da perfeição). E viveu ainda outros 840 anos, quantidade que equivale a 3 (nº. da Trindade) multiplicado por 7 (nº. perfeito) multiplicado por 40 (nº. muito usado na Bíblia na Bíblia e que representa o tempo de uma geração). - HENOC, o 7º da lista, viveu 365 anos, cifra pequena, porém perfeita, pois corresponde aos dias do ano que são eternamente repetidos. Por isso Henoc é o único da lista do qual não se menciona a morte. E só se faz esta surpreendente afirmação: "andou com Deus e desapareceu porque Deus o levou" (Gênesis 5,24). Por isso, também ocupa o 7º lugar na lista, (ou seja o lugar do número) perfeito. Lamec, o 9º, foi pai aos 182 anos, ou seja 7 multiplicado por 26 semanas (que são exatamente a metade de um ano solar). E viveu um total de 777 anos. "[3]
E dessa forma, todas as informações sobre a idade dos patriarcas e suas histórias de vida são simbólicas e podem ser encontradas nessas estranhas relações que os antigos deduziam dos números e das suas observações astrológicas. Assim, Noé, o patriarca que sobreviveu ao dilúvio e deu início á nova civilização através dos seus 3 filhos(número cabalístico representativo da trindade), pode ser interpretado da seguinte forma. Ele tinha 600 anos quando Deus mandou o dilúvio sobre a terra. Esse número resulta do 10 multiplicado por 60. 10, como já se disse, é o número perfeito e 60 representa a divisibilidade máxima (por 2, 3, 4, 5, 6) que sintetiza a base do sistema sexagonal e decimal, segundo o qual a mística antiga acreditava que o universo estivesse fundamentado.
Assim, que os autores bíblicos tinham um sistema de pensamento por trás das estranhas informações que eles veicularam acerca das origens e do desenvolvimento da humanidade, parece não haver dúvida. A maioria das idéias que informam esse sistema de pensamento ainda não foi explicada a contento pelos estudiosos e talvez nunca venha a ser, pois o fundamental da Cabala judaica, entendida somente por um seleto grupo de rabinos ainda hoje, é um dos códigos mais secretos que a humanidade jamais criou. Assim, é bem possível que os intrincados jogos numéricos que eles usaram para veicular as mensagens mais provocantes da fé que Israel propagou pelo mundo deve ter algum outro sentido que nós ainda não sabemos.
Nem se exclui aqui a possibilidade que existam mesmo, nessas mensagens, alguns segredos arcanos de verdadeira base científica que Deus tenha revelado aos sábios rabinos judeus. Alguns deles, inclusive, têm sido detectados pelos cientistas da física e da astronomia, que vêem nas metáforas cabalísticas e nas estranhas visões dos místicos antigos, verdades científicas que só agora os modernos aparelhos estão desvelando.
Outra explicação do porque os cronistas bíblicos atribuírem aos antigos patriarcas vivências tão longas talvez seja o fato de que, na antiga teologia do povo de Israel não havia uma idéia bem desenvolvida de vida após a morte, como havia no Egito, por exemplo. Assim, se não se tinha a certeza de que o indivíduo sobreviveria após a morte, ele, quando fosse bom, e vivesse de acordo com os preceitos divinos, seria melhor que ele fosse recompensado com uma vida longa. Os patriarcas de Israel seriam, pois, um modelo dessa virtude que deveria ser premiada com longas vivências. Essa idéia está desenvolvida, por exemplo, na história de Jó, na qual se discute essa estranha questão. Curiosamente seria exatamente Jesus Cristo que iria mudar radicalmente essa idéia, substituindo o conceito de uma longa e bem aventurada vida na terra por uma recompensa no outro mundo. Depois de Cristo, que aliás, morreu com 33 anos, morrer jovem passou a ser uma virtude e uma longa vida já não mais constituía prêmio digno de ser obtido. Era o favor de Deus, conquistado pela virtude dos seus atos, que conferia o prêmio da vida eterna, e a vida na terra passava a ser de somenos importância, e se ela fosse sofrida, melhor até. Essa era, como já observaram vários estudiosos, uma tese muito em voga na época de Jesus, pois a ela aderiu a famosa escola dos estóicos, filósofos que desprezavam os bens do mundo e se concentravam na beleza da vida espiritual.
Assim, é de bom alvitre considerar que as informações sobre a longevidade dos patriarcas bíblicos e suas histórias de vida não podem ser consideradas meramente como lendas sem o menor sentido. Elas contém, na verdade, mensagens interpretativas de um pensamento que está na origem das crenças mais antigas da humanidade. E se por trás dele podemos identificar uma clara intenção ideológica doutrinária, também podemos ver nesse monumental trabalho literário que os cronistas israelenses nos legaram uma forma muito particular de ver a vida e a história da humanidade.
Nem se discute aqui se isso deve ser tratado como artigo de fé ou mera curiosidade literária. O que importa é verificar que, na produção do pensamento humano há sempre uma referência que o precede e que nenhuma imaginação, por mais fértil que pareça, trabalha no vazio. Assim se houve ou não indivíduos que viveram vidas longas no passado, passa a ser de somenos importância. Importa a mensagem que ela passa e a utilização que dela fazemos. É nisso que está a utilidade e também o perigo.
“E toda a vida de Matusalém foi de novecentos e sessenta e nove anos, e morreu.”Gênesis , 5;27
Nos antigos tempos não havia a ciência
E as pessoas viviam de maneira discreta.
O homem alcançava comprida vivência,
Todos eles morriam em idade provecta.
Assim foi Adão com a sua posteridade;
Esses centenários patriarcas prolíficos,
Que filhos geravam em avançada idade.
Nem precisavam de recursos científicos.
Esses patriarcas eram homens de valor,
Viviam em Deus, que por isso lhes deu,
Existência tão longa com saúde e vigor.
Quase mil anos durou o tal Matusalém,
O homem mais velho que um dia viveu.
E a maioria de nós sequer chega a cem.
Comentário:
A idade dos patriarcas bíblicos que viveram antes do dilúvio sempre foi uma questão polêmica que nunca foi resolvida a contento pelos comentadores da Bíblia. Segundo os cronistas bíblicos Adão viveu novecentos e trinta anos, e seu filho Set, novecentos e doze. Os descendentes de Set, até Nóe, todos eles viveram vidas várias vezes centenárias, sendo que Matusalém, da oitava geração de Adão, foi o patriarca que mais tempo viveu. A Bíblia registra que ele morreu com novecentos e sessenta e nove anos!
Há quem interprete essa metáfora da longevidade dos patriarcas ante diluvianos como uma verdade literal mesmo, afirmando que a pureza do clima, a frugalidade da alimentação e a vontade que Deus tinha de propagar rapidamente a espécie humana foram as principais causas dessa longevidade.
É claro que a ciência moderna não agasalha essa tese. Afinal, não há qualquer indicação de que o clima, naqueles tempos fosse melhor do que é hoje, nem que a alimentação daqueles antigos povos fosse mais saudável do que é agora. Na verdade, as informações que se pode levantar até agora, oriunda de fósseis recenseados das eras referidas, mostram exatamente o contrário. A expectativa de vida de um indivíduo, nos tempos em que se supõe tenham vivido os patriarcas, mal passava dos trinta anos.
Dizer que foi a vontade de Deus - embora se reconheça que ela tudo pode-, agindo para que a espécie humana se propagasse com rapidez, que fez com que esses homens vivessem tanto tempo, soa como uma simplificação, senão ingênua, bizarra demais para ser levada a sério. No entanto, ela se prestou á várias interpretações, algumas inclusive atribuídas a personagens importantes como Lutero, o desencadeador da Reforma Protestante, e do Bispo Anglicano James Usher, erudito e grande estudioso da Bíblia, que no ano de 1654 divulgou a curiosa informação de que o mundo fora criado no dia 6 de outubro do ano 4.004 a.C, às 9 horas da manhã, quando Deus disse: "Faça-se a Luz". Essa interessante descoberta do Bispo Usher foi feita computando-se as idades dos patriarcas ante diluvianos e pós diluvianos que a Bíblia cita, os quais perfazem uma soma de 2000 anos desde Adão até Abraão e mais 2000 anos de Abrão até Jesus Cristo, perfazendo o total de 4004 anos antes de Cristo (pois segundo ele Jesus teria nascido no ano 4 a era cristã). Assim o nosso universo seria hoje um simpático velhinho de 6012 anos! E se ele morrer em 21 de dezembro de 2012, como os adeptos do apocalipse dizem, ele morrerá mais jovem do que o povo que construiu o sitio de Gobekli Tepe, na Turquia, a quem os arqueólogos atribuem mais de 10.000 anos.
Bom. Sabemos que o conflito entre os cientistas e os que interpretam literalmente a Bíblia é uma coisa irreconciliável, tanto quanto o conflito entre Israel e os povos palestinos. Aliás, um e outro têm muito a ver. Aliás, não de hoje que os primeiros vêm denunciando o caráter ideológico e propagandístico da Bíblia em favor de uma hegemonia de Israel naqueles territórios e, com base nessas conclusões, propondo interpretações outras para as histórias, metáforas e mitos que compõem o livro sagrado, especialmente aqueles que se referem ao mito da criação e aos primeiros tempos da humanidade.
É evidente que os cientistas não poderiam mesmo concordar com aqueles que defendem a literalidade da Bíblia nessa questão, porquanto a ciência afirma que a presença do "homo sapiens" sobre a terra pode ser recenseada até uns 500 mil anos atrás ou muito mais, se quisermos incluir na espécie humana o chamado "homo Habilis", cuja existência talvez possa ser detectada a dois milhões e meio de anos. Ainda que tais afirmações possam ser contestadas, é fato comprovado que a presença do homem sobre a terra, tal qual o conhecemos hoje, é muito mais antiga do que os escassos seis mil anos que lhe atribuem os seguidores do inefável Bispo Usher.
Quanto á notável longevidade dos patriarcas bíblicos convém notar que hoje, mesmo com todos os avanços da ciência, ela pouco excede os setenta anos, e entre as civilizações menos desenvolvidas, como algumas tribos da África e do Oriente, ela mal chega a quarenta. Considerando as condições de vida em que viviam os povos antigos, pouco diferentes em relação às tribos ainda hoje vivendo em algumas regiões do Oriente Médio, é difícil imaginar que em algum momento, anterior aos tempos históricos, elas tenham sido melhores do que hoje.
Para os cronistas bíblicos, a civilização, em termos de qualidade de vida, não avançou, mas sim retrocedeu violentamente, pois se antes do dilúvio um homem podia alcançar quase mil anos de vida, como Matusalém, um pouco antes de Deus afogar a antiga civilização, a expectativa de vida caiu para cento e vinte anos (Gênesis, 6.3), por conta do próprio decreto divino, que resolveu, dessa forma, punir o gênero humano por seus pecados.
Então como ler essas conflitantes informações que a Bíblia nos dá acerca da longevidade dos patriarcas? Em primeiro lugar é preciso assinalar que tais personagens são citados única e exclusivamente para identificar a árvore genealógica do povo de Israel, e constituem muito mais uma fonte de referência para a construção de uma tese do que uma verdade histórica mesmo. Isso quer dizer que os cronistas bíblicos usaram a história dos patriarcas longevos para justificar a pretensão do povo de Israel como povo eleito de Deus, da mesma forma que um jurista usaria a árvore genealógica de uma família para justificar a reivindicação de um direito de família num tribunal.
A grande sacada dos cronistas israelitas foi ter criado personagens reais (ou supostamente reais) para preencher sua árvore genealógica, enquanto os demais povos do Oriente e do Ocidente preenchiam esse espaço com personagens divinas e mitológicas. Enquanto os povos do Vale do Nilo, do Eufrates e dos grandes rios da Índia e da China invocavam deuses e outras criaturas mitológicas como antecedentes, da mesma forma que os gregos, os romanos e outros povos do Ocidente, Israel preferiu identificar seus antecessores como criaturas humanas, e mais que isso, deu-lhes nomes e criou para eles uma história de vida factível, mais compatível com gente de carne e osso. Assim, para uma humanidade que estava acostumada a preencher os vazios da sua ancestralidade com seres imaginários, a obra dos cronistas de Israel veio preencher uma gigantesca lacuna na mente consciente da humanidade. Numa história é mais fácil acreditar do que numa lenda.
Ressalta-se, desde logo, que a árvore genealógica bíblica é uma montagem urdida com muita inteligência literária. São dez patriarcas antes do dilúvio(de Adão até Noé), mais dez depois do dilúvio(de Noé até Abraão). Nada mais fácil para recordar do que listas decimais, que podem ser contadas pelos dedos das mãos.
Agora, é claro que os cronistas bíblicos não inventaram simplesmente esses patriarcas e lhes deram uma histórica de vida consentânea com as necessidades das suas teses destinadas a provar o direito hereditário de Israel como primogênito de Deus. Esses personagens já existiam nas tradições mais antigas, especialmente dos sumérios e outros povos mesopotâmicos, de onde os antecessores dos israelitas provieram. Adão, Set, Enoque, Matusalém, Lamec, Noé e outros, são arquétipos que têm seus correspondentes em quase todas as histórias dos povos antigos. Um exemplo pode ser buscado na literatura sumeriana, onde certamente os cronistas bíblicos devem ter se inspirado. Pois ali se encontra uma lista de reis ante diluvianos que teriam vivido nos primórdios da humanidade, dotados cada qual de extraordinária longevidade. Uma dessas listas, compilada por um sacerdote babilônico de nome Berosso, contém um catálogo de dez reis que teriam vivido antes do dilúvio, sendo que o décimo deles, de nome Xisutro,ou Xixoutro, é o Noé babilônico, herói citado na epopéia de Gilgamesh, como sendo sobrevivente do dilúvio e iniciador da nova raça humana. Nessa lista se informa o nome de dez reis e o tempo, em anos, de cada reinado:
1.; Aloro reinou; 36.000 anos ou 10 saros (1 saro=3600 anos)
2.; Aláparo; 10.800; 3
3.; Almelon; 46.800; 13
4.; Amenon; 43.200; 12
5.; Amegálaro; 64.800; 18
6.; Dáono; 36.000; 10
7.; Edoranco; 64.800; 18
S.; Amenfsino; 36.000; 10
9.; Otiartes; 24.800; 8
10.; Xisutro; 64.800; 18.[1]
Uma outra lista, constante de uma inscrição encontrada nas ruínas das antigas civilizações mesopotâmicas dão os nomes de dez reis que teriam reinado após o dilúvio, bem como o tempo de seus reinados. Essa lista cobriria um período que iria desde o fim do dilúvio até o ano em que ela foi compilada (cerca de 2.400 a C). Esses reis seriam:
1. Alulim, de Eridu reinou 28.800 anos ou 8 saros.
2. Alagar, de Eridu 36.000 anos,ou 10 saros.
3. En-me-en-lu-an-na, de Badtibira 43.200 anos ou 12 saros.
4. En-me-en-gal-an-na, de Badtibira 28.800 anos ou 8 saros.
5. Dumu-zy, o pastor de Badtibira 36.000 anos ou 10 saros.
6. En-sib-zi-an-na, de Larak 28.000 anos, ou 8 saros.
7. En-me-en-dur-an-na, de Sippar 21.000 anos ou 5 saros e 5 ner.
8. Ubara-du-du, de Suruppak 18.000 anos ou 5 saros e 1 ner.[2]
Em outras civilizações antigas também foram encontrados registros que citam personagens fundadores de sua civilização. No Egito, por exemplo, achou-se uma lista de dez reis que governaram o povo nos seus primórdios, começando com Osíris, o herói atlante deificado. Os Persas também conheciam seus dez Patriarcas antecessores; os Hindus enumeravam os nove descendentes de Brama, que deram geração aos povos do Vale do Indo e do Ganges.
Assim, a literatura bíblica teve seus antecedentes, nos quais se inspiraram e os espertos cronistas israelitas não inventaram nada. Apenas adaptaram antigas tradições ás necessidades de sua tese. E á elas acrescentaram um criativo enredo, fundamentado principalmente nas fórmulas cabalísticas, por eles criadas para interpretar as crenças e mistérios da sua religião. Esse enredo, fundamentado principalmente na numerologia cabalística emprestou á narrativa bíblica a característica misteriosa que até hoje excita a imaginação de quem se propõe a estudar esse assunto. Assim, as idades dos patriarcas podem ser deduzidas dessas estranhas relações numéricas e astrológicas que os antigos magos caldeus criaram e os rabinos judeus desenvolveram na grande Tradição da Cabala. Dessa forma, a idade de Adão, por exemplo, que foi de 930 anos, resulta da conta 1000 – 70 ( 1.000 o número de Deus, segundo o Salmo 90,4, menos 70, o número da perfeição). Significa que Deus tirou de Adão, por seu pecado, a qualidade da perfeição.
Todas essas relações numéricas e cabalistas foi bem analisada no interessante trabalho do Pe. Ariel Alvarez Valdéz, já citado. Escreve esse autor:
“Cainã, o 4º da lista pré-diluvianos (5,12) gerou seu filho aos 70 anos (nº. da perfeição). E viveu ainda outros 840 anos, quantidade que equivale a 3 (nº. da Trindade) multiplicado por 7 (nº. perfeito) multiplicado por 40 (nº. muito usado na Bíblia na Bíblia e que representa o tempo de uma geração). - HENOC, o 7º da lista, viveu 365 anos, cifra pequena, porém perfeita, pois corresponde aos dias do ano que são eternamente repetidos. Por isso Henoc é o único da lista do qual não se menciona a morte. E só se faz esta surpreendente afirmação: "andou com Deus e desapareceu porque Deus o levou" (Gênesis 5,24). Por isso, também ocupa o 7º lugar na lista, (ou seja o lugar do número) perfeito. Lamec, o 9º, foi pai aos 182 anos, ou seja 7 multiplicado por 26 semanas (que são exatamente a metade de um ano solar). E viveu um total de 777 anos. "[3]
E dessa forma, todas as informações sobre a idade dos patriarcas e suas histórias de vida são simbólicas e podem ser encontradas nessas estranhas relações que os antigos deduziam dos números e das suas observações astrológicas. Assim, Noé, o patriarca que sobreviveu ao dilúvio e deu início á nova civilização através dos seus 3 filhos(número cabalístico representativo da trindade), pode ser interpretado da seguinte forma. Ele tinha 600 anos quando Deus mandou o dilúvio sobre a terra. Esse número resulta do 10 multiplicado por 60. 10, como já se disse, é o número perfeito e 60 representa a divisibilidade máxima (por 2, 3, 4, 5, 6) que sintetiza a base do sistema sexagonal e decimal, segundo o qual a mística antiga acreditava que o universo estivesse fundamentado.
Assim, que os autores bíblicos tinham um sistema de pensamento por trás das estranhas informações que eles veicularam acerca das origens e do desenvolvimento da humanidade, parece não haver dúvida. A maioria das idéias que informam esse sistema de pensamento ainda não foi explicada a contento pelos estudiosos e talvez nunca venha a ser, pois o fundamental da Cabala judaica, entendida somente por um seleto grupo de rabinos ainda hoje, é um dos códigos mais secretos que a humanidade jamais criou. Assim, é bem possível que os intrincados jogos numéricos que eles usaram para veicular as mensagens mais provocantes da fé que Israel propagou pelo mundo deve ter algum outro sentido que nós ainda não sabemos.
Nem se exclui aqui a possibilidade que existam mesmo, nessas mensagens, alguns segredos arcanos de verdadeira base científica que Deus tenha revelado aos sábios rabinos judeus. Alguns deles, inclusive, têm sido detectados pelos cientistas da física e da astronomia, que vêem nas metáforas cabalísticas e nas estranhas visões dos místicos antigos, verdades científicas que só agora os modernos aparelhos estão desvelando.
Outra explicação do porque os cronistas bíblicos atribuírem aos antigos patriarcas vivências tão longas talvez seja o fato de que, na antiga teologia do povo de Israel não havia uma idéia bem desenvolvida de vida após a morte, como havia no Egito, por exemplo. Assim, se não se tinha a certeza de que o indivíduo sobreviveria após a morte, ele, quando fosse bom, e vivesse de acordo com os preceitos divinos, seria melhor que ele fosse recompensado com uma vida longa. Os patriarcas de Israel seriam, pois, um modelo dessa virtude que deveria ser premiada com longas vivências. Essa idéia está desenvolvida, por exemplo, na história de Jó, na qual se discute essa estranha questão. Curiosamente seria exatamente Jesus Cristo que iria mudar radicalmente essa idéia, substituindo o conceito de uma longa e bem aventurada vida na terra por uma recompensa no outro mundo. Depois de Cristo, que aliás, morreu com 33 anos, morrer jovem passou a ser uma virtude e uma longa vida já não mais constituía prêmio digno de ser obtido. Era o favor de Deus, conquistado pela virtude dos seus atos, que conferia o prêmio da vida eterna, e a vida na terra passava a ser de somenos importância, e se ela fosse sofrida, melhor até. Essa era, como já observaram vários estudiosos, uma tese muito em voga na época de Jesus, pois a ela aderiu a famosa escola dos estóicos, filósofos que desprezavam os bens do mundo e se concentravam na beleza da vida espiritual.
Assim, é de bom alvitre considerar que as informações sobre a longevidade dos patriarcas bíblicos e suas histórias de vida não podem ser consideradas meramente como lendas sem o menor sentido. Elas contém, na verdade, mensagens interpretativas de um pensamento que está na origem das crenças mais antigas da humanidade. E se por trás dele podemos identificar uma clara intenção ideológica doutrinária, também podemos ver nesse monumental trabalho literário que os cronistas israelenses nos legaram uma forma muito particular de ver a vida e a história da humanidade.
Nem se discute aqui se isso deve ser tratado como artigo de fé ou mera curiosidade literária. O que importa é verificar que, na produção do pensamento humano há sempre uma referência que o precede e que nenhuma imaginação, por mais fértil que pareça, trabalha no vazio. Assim se houve ou não indivíduos que viveram vidas longas no passado, passa a ser de somenos importância. Importa a mensagem que ela passa e a utilização que dela fazemos. É nisso que está a utilidade e também o perigo.
[1] Pe. Ariel Alvarez Valdés Tierra Santa - janeiro e fevereiro de 94 Tradução: Mons. Nelson Rafael Fleury- Wikpédia-2009
[2] Idem Pe. Ariel Alvarez. Saros e ner são divisões de tempo. Um saro cerca de 3600 anos e um ner equivale a cerca de 600 anos. Essas divisões são resultado de cálculos feitos por astrólogos caldeus relativos ao tempo em que o planeta Nibiru/Marduk( de onde teria vindo a civilização terrestre) leva para dar uma volta sobre si mesmo(600 anos= ner ) e uma viagem em volta do sol(3600 anos= saro). A terra, segundo essa teoria, seria uma parte desse planeta que se desprendeu em virtude do choque dele com um asteróide. Sobreviveu e se incorporou á orbita solar como o 3º planeta do sistema, enquanto Nibiru foi deslocado para uma órbita superior e só pode ser detectado a cada 3600 anos, quando ele passa pelas proximaidades da terra em razão da forma elíptica da sua órbita. Seria esse fenômeno cósmico que informaria as crenças maias sobre a ocorrência de alguma catástrofe no próximo 21 de dezembro de 2012. Segundo esses cálculos, Nibiru teria passado pela órbita da terra a exatamente 3600 anos atrás e provocado o grande dilúvio de que fala a Bíblia.
[3] Idem, cf. nota anterior.