“ E o Senhor Deus o lançou fora do paraíso de delícias, para que cultivasse a terra, de que tinha sido tomado.” Gênesis, 3;24
 
 
Deus fez o homem num ato de Amor,
E prometeu que se tivesse bom juízo,
Por todo sempre ele teria o seu favor,
E de herança lhe entregaria o Paraíso.

                               
Porém o homem e a sua companheira,
Não deram valor a esse lindo presente,
E foram logo fazendo a maior besteira:
Dar trela ao diabo vestido de serpente.



Por isso Deus ficou muito aborrecido;
E viu que eles não tinham mesmo siso,
Para gerir balneário tão aconchegante.



Eis assim esse par de mal-agradecidos,
Sendo despejado do adorável paraíso,
E sua raça se tornou eterno ser errante.

 
                                         
Comentário.
 
Em Gênesis, 3: 23, lemos que o casal terrestre, após ter descoberto a sabedoria que fez deles um ser igual aos deuses, foi expulso do paraíso, pois Deus temia que eles, além de agora ter o conhecimento do bem e do mal, também adquirissem a imortalidade comendo o fruto  da Árvore da Vida.

Como castigo lhes foi dado a obrigação de ganhar o pão de cada dia com o suor do próprio rosto, e à mulher, agente ativa dessa rebelião, o parto com dor. E para que os dois filhos desobedientes não voltassem, á sotaina, ao paraíso, e comessem o fruto que lhes daria imortalidade, Deus colocou na porta do sagrado balneário, um Querubim portando uma espada de fogo.
  
Mito bizarro, mas no fundo grandioso, pois ele retrata, numa sugestiva metáfora, o momento em que o ser humano deu o chamado passo da reflexão, ou seja, desenvolveu, em seu cérebro animal, a capacidade de refletir e comunicar ao seu próximo o seu pensamento.
Com efeito, talvez não houvesse problema nenhum no fato de o homem aprender a pensar se ele não fosse capaz de fazer os outros pensarem como ele, ou seja, se ele não fosse capaz de convencer outros homens a segui-lo em seus desejos e pretensões, e com isso, geralmente, subverter a ordem vigente.
O mito da expulsão do homem do paraíso de delícias talvez não tenha nada a ver com as origens da raça humana, mas certamente tem muito a ver com os primórdios da atividade política e da luta pelo poder nas sociedades primitivas, onde a própria natureza fornecia aos homens o sustento sem que eles precisassem fazer mais que o esforço físico de caçar e colher na floresta os frutos naturais. Pois assim viveu a humanidade nos seus primórdios, tendo como atividade a caça, a pesca e coleta pura e simples dos frutos da terra, sem necessidade de plantar, colher, armazenar ou criar os animais.
 
Mas a partir de um certo momento, provavelmente em virtude do aumento da população, começaram os conflitos, por que a terra já não produzia frutos suficientes para alimentar tanta gente.
A Bíblia atribui à mulher os primeiros fumos de rebeldia e o primeiro ato de desobediência a essa ordem vigente. É bem possível que essa seja a verdade, pois como bem viu Bachofen em seu trabalho clássico, a mulher foi a primeira organizadora e sacerdotisa do lar, sendo ela, provavelmente, que no início da sociedade humana, assumiu a tarefa de organizar e governar as relações sociais e políticas que surgiram a partir do momento em que os grupos humanos começaram a organizar-se.[1] Daí o fato de as mais antigas memórias do ser humano se referirem à deusas e não a deuses masculinos, como patronas do conhecimento e mães da humanidade.
Deus, aqui, é o patriarca da antiga sociedade, que detinha sobre seu clã um poder de vida e morte. Eva pode ter sido uma filha, uma nora, uma agregada ou qualquer outra mulher que tenha, um dia, se insurgido contra a autoridade patriarcal e rompido o padrão organizacional vigente e com ela tenha arrastado seu marido, ou mesmo parte do grupo submetido ao poder do patriarca.
As crônicas do Gênesis bíblico foram escritas por rabinos judeus e reflete, em todas as suas linhas, o pensamento da antiga sociedade israelense, que era regida pelo princípio do patriarcado. Até a idéia que eles veicularam de Deus coincide com a imagem do velho patriarca tribal, austero e inflexível na guarda e no cumprimento de seus costumes e tradições. [2. Nesse sistema, a mulher sempre foi uma fonte de preocupações e de desconfiança, pois a ela sempre coube a última palavra no sentido de conservar a pureza do sangue familiar, pois somente a mulher pode garantir a origem do descendente. São fartas as referências bíblicas sobre essa condição atribuída à mulher. Veja-se, por exemplo, o episódio em que Rebeca se propõe a enganar o moribundo Isaque, para que este dê ao filho mais jovem, Jacó, a sua benção, ao invés de dá-la ao filho mais velho Esaú, como seria de direito. Na antiga sociedade patriarcal quem herdava o nome e os bens da família era o primogênito. Talvez a curiosa história de Jacó e Esaú seja uma metáfora que reflita o fato de Israel ser um “filho mais novo” na complicada família palestina e precisar justificar sua pretensão á herança na terra prometida, da mesma forma que a história de Abel e Cain se refere ao fato de Israel(Abel) ser um povo exclusivamente pastoril e os demais povos palestinos(Cain) constituírem grupos já praticantes da agricultura quando os israelenses chegaram à Palestina..
 
   A Bíblia, portanto, é uma extraordinária fonte de pesquisa histórica e sociológica, se quisermos ver nela algo mais do que a origem das nossas crenças religiosas. A metáfora da expulsão do casal humano do paraíso de delícias é uma memória compartilhada pela grande maioria dos povos antigos. Praticamente, todos os grupos humanos que emergiram da pré-história cultivavam mitos semelhantes a respeito de suas origens. Assim, a noção de que os primeiros homens viviam em um paraíso e deles foram expulsos um dia não é exclusiva da tradição judaico-cristã. Ela existe na mitologia de quase todos os povos da antiguidade e é compartilhada até pelos indígenas da Polinésia e os esquimós da Groenlândia. É, pois, um verdadeiro arquétipo que habita no Inconsciente Coletivo da humanidade e se manifesta como crença informativa de suas religiões. Essa noção está presente em todos os livros sagrados e nas tradições orais de antigos povos, como os maias, os astecas, os incas e os povos da Polinésia. Até entre os povos do Himalaia são encontrados resquícios dessa tradição. [3] 
 
Vários estudos têm procurado mostrar que o Velho Testamento é, na verdade, um formidável monumento literário, cuja finalidade, embora francamente ideológica, reflete, no entanto, a verdade histórica sobre o desenvolvimento dos grupos humanos que estão na origem das nossas crenças e tradições.[4] No cerne dessa formidável criação que é a Bíblia, está a idéia, sempre viva no inconsciente do homem, de que ele é um ser superior às demais espécies vivas, e que ele já viveu num paraíso de felicidade e delícias infindas (um céu), de onde ele proveio e de onde foi expulso um dia por alguma razão. Toda a saga do povo de Israel tem como finalidade a divulgação da idéia utópica de uma sociedade perfeita, quiçá organizada, governada e defendida pelo próprio Deus.
Quem vê nas histórias bíblicas apenas o fundamento das suas crenças talvez perca o que ela tem de melhor, que são as próprias bases do pensamento e da informação que estão no nosso alicerce de indivíduos e da nossa sociedade como um todo. E aquele que, por conta de um ceticismo programado vê nela apenas mitos e lendas cultivadas por povos na sua infância mental talvez precise quebrar a casca do seu próprio ovo. Ou então, como o casal humano, ser expulso do seu próprio paraíso de ignorância e desinformação. Afinal, o conhecimento dói e a fé é medicinal. Mas a dor e o prazer são os dois sentimentos fundamentais do homem. Sem experimentar um e outro não dá para dizer que somos humanos.
E quem sabe a fé e conhecimento não sejam exatamente as duas pernas que nos levarão de volta para esse paraíso de onde, um dia, fomos expulsos?



[1] Johan Jacob Bachofen- O  Matriarcado, 1919.
[2]Veja-se, a esse propósito, O Código dos Códigos, excelente trabalho de Northrop Frye, onde o autor discorre sobre a linguagem bíblica, mostrando como ela reflete as diversas fases de amadurecimento da consciência humana.
 
[3] Veja-se a propósito o curioso trabalho de Lobsang Rampa “ O Terceiro Olho”, publicado no Brasil pela Ed. Boitempo, 1968. Veja-se também Pawels e Bergier- O Despertar dos Mágicos, Ed. Bertrand Russel, 1964.
[4] Veja-se o trabalho de Israel Finkelstein e Neil Archer- A Bíblia não Tinha Razão, Ed. Boi Tempo, 2003.

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DO LIVRO "O TESOURO DOS SÁBIOS"- ED. COMENTADA- NO PRELO
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 15/11/2012
Reeditado em 27/11/2012
Código do texto: T3987285
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