Leitura hipnotizante e arrebatadora
A obra “A suave anomalia”, de Márcio Matos, editada pela Casarão do Verbo, em 2010, chegou-me às mãos num gesto de gentileza do autor, no dia 20 de outubro de 2012, durante recital do coletivo Prosa & Poesia, na Casa Pouso da Palavra, em Cachoeira-BA. Muito sintomática a circunstância, por se tratar de um momento em que o próprio Márcio era convidado especial do evento, juntamente com outro poeta, o Ruy Mascarenhas. O grupo é formado por Kátia Borges, Mariana Paiva (damas primeiro), Fábio Haendel e Nilson Galvão. Casa cheia, concorrendo com palestra de José Eduardo Agualusa e Uzodinma Iweala, no Convento do Carmo, que faziam parte da programação da Festa Literária Internacional de Cachoeira 2012.
Falar de quem se conhece é chover no molhado e coloca sob suspeita quem fala e o que se fala. Fazer leitura ou releitura de textos, analisando sob a ótica de outros, é discursar com o discurso do outro, é falar pela boca alheia. Talvez a falta de profundidade de críticos literários ou de curiosos, como eu, não seja de todo um mal. Somente para não fugir das normas técnicas, cito Ruy Espinheira Filho, conhecido e renomado poeta baiano, cuja fala me chegou aos ouvidos durante uma das edições do Vão das Letras, feira literária que acontecia no Teatro Castro Alves e que, hoje, acontece no Campo Grande. Segundo Ruy, muitos dos seus colegas professores da Universidade Federal da Bahia se indispunham com ele porque, ao invés de pedir aos alunos que fizessem resenhas de livros com base em teóricos, solicitava que os estudantes executassem os trabalhos baseados nas suas próprias impressões.
Bem, agora é minha vez. Depois do nariz de cera já devidamente escrito, aqui vou eu, para as vias de fato. Comecei a ler o livro em questão ainda no templo da poesia, em Cachoeira, através da leitura que o próprio Márcio fez de trechos inéditos de outra obra e de um fragmento que localizei na página 48 de “A suave anomalia”: “Amar demais é não amar ninguém em plenitude. A picardia do amor volúvel é indivisível e não tolera a doação; quer sentir um bem solitário e excluir as vicissitudes do outro. Por isso, toda vez que precisava confirmar o seu amor, Marina corria para a cisterna do quintal. A negação da sua demasia era um poço represado”. Esta e outras frações expostas a público estremeceram as emoções dos ouvintes, inclusive as minhas. Emocionado, registrei no microfone o que sentira.
O presente
Sem a pressão que uma amizade muito próxima pudesse fazer para que eu lesse logo o livro, recebi com carinho a obra, li a contracapa e guardei. Em casa, já no domingo à noite, dei uma olhada na orelha, folheei para admirar o projeto gráfico e guardei o exemplar no topo da pilha que aguarda leitura faz tempo. Segunda-feira à tarde, após um estafante dia de trabalho, comecei a ler o mais novo exemplar. Os outros podiam esperar. O que mais me chamou à atenção, foi a forma da escrita de Márcio. Uma das frases ainda martelam minha mente: “O amor é como uma (estrela) anã branca (...). Suga o outro até exauri-lo. E, cheio demais, (...) acaba explodindo” (pág. 71). O escritor é clássico, sem parecer pedante, sutil, recatado, profundo. A obra denota vasto conhecimento do universo da língua portuguesa, da qual o autor pinça um vocabulário sofisticado, refinado. Ele retrata coisas e fatos absolutamente banais, com uma maestria poética como este: “Os cabelos grisalhos emolduravam as bochechas salientes, que se precipitavam pela órbita da face, apresentando ao mundo o ônus da gula” (pág. 82).
Com um alto domínio da língua portuguesa, como já citado, o autor-texto arrasta-nos para a narrativa, que transforma passagens triviais da vida em imagens belíssimas que hipnotizam o leitor. Este é, a meu ver, a principal característica do livro: retratar a “vida besta” de uma forma tão mágica que nos prende nos fios das palavras e nos torna quase coparticipantes da narrativa.
Fonte: http://www.iteia.org.br/jornal/leitura-hipnotizante-e-arrebatadora
Falar de quem se conhece é chover no molhado e coloca sob suspeita quem fala e o que se fala. Fazer leitura ou releitura de textos, analisando sob a ótica de outros, é discursar com o discurso do outro, é falar pela boca alheia. Talvez a falta de profundidade de críticos literários ou de curiosos, como eu, não seja de todo um mal. Somente para não fugir das normas técnicas, cito Ruy Espinheira Filho, conhecido e renomado poeta baiano, cuja fala me chegou aos ouvidos durante uma das edições do Vão das Letras, feira literária que acontecia no Teatro Castro Alves e que, hoje, acontece no Campo Grande. Segundo Ruy, muitos dos seus colegas professores da Universidade Federal da Bahia se indispunham com ele porque, ao invés de pedir aos alunos que fizessem resenhas de livros com base em teóricos, solicitava que os estudantes executassem os trabalhos baseados nas suas próprias impressões.
Bem, agora é minha vez. Depois do nariz de cera já devidamente escrito, aqui vou eu, para as vias de fato. Comecei a ler o livro em questão ainda no templo da poesia, em Cachoeira, através da leitura que o próprio Márcio fez de trechos inéditos de outra obra e de um fragmento que localizei na página 48 de “A suave anomalia”: “Amar demais é não amar ninguém em plenitude. A picardia do amor volúvel é indivisível e não tolera a doação; quer sentir um bem solitário e excluir as vicissitudes do outro. Por isso, toda vez que precisava confirmar o seu amor, Marina corria para a cisterna do quintal. A negação da sua demasia era um poço represado”. Esta e outras frações expostas a público estremeceram as emoções dos ouvintes, inclusive as minhas. Emocionado, registrei no microfone o que sentira.
O presente
Sem a pressão que uma amizade muito próxima pudesse fazer para que eu lesse logo o livro, recebi com carinho a obra, li a contracapa e guardei. Em casa, já no domingo à noite, dei uma olhada na orelha, folheei para admirar o projeto gráfico e guardei o exemplar no topo da pilha que aguarda leitura faz tempo. Segunda-feira à tarde, após um estafante dia de trabalho, comecei a ler o mais novo exemplar. Os outros podiam esperar. O que mais me chamou à atenção, foi a forma da escrita de Márcio. Uma das frases ainda martelam minha mente: “O amor é como uma (estrela) anã branca (...). Suga o outro até exauri-lo. E, cheio demais, (...) acaba explodindo” (pág. 71). O escritor é clássico, sem parecer pedante, sutil, recatado, profundo. A obra denota vasto conhecimento do universo da língua portuguesa, da qual o autor pinça um vocabulário sofisticado, refinado. Ele retrata coisas e fatos absolutamente banais, com uma maestria poética como este: “Os cabelos grisalhos emolduravam as bochechas salientes, que se precipitavam pela órbita da face, apresentando ao mundo o ônus da gula” (pág. 82).
Com um alto domínio da língua portuguesa, como já citado, o autor-texto arrasta-nos para a narrativa, que transforma passagens triviais da vida em imagens belíssimas que hipnotizam o leitor. Este é, a meu ver, a principal característica do livro: retratar a “vida besta” de uma forma tão mágica que nos prende nos fios das palavras e nos torna quase coparticipantes da narrativa.
Fonte: http://www.iteia.org.br/jornal/leitura-hipnotizante-e-arrebatadora