Uma poética das águas
(Resenha do livro homônimo de Socorro Santiago)
No livro Uma poética das águas, Santiago (1986) mostra que a presença do rio Amazonas na vida dos habitantes de suas margens converte-se em marcante influência sobre esses grupos humanos, como evidenciam os textos de poetas que desenvolveram com intimidade temática do rio e esboçaram o perfil sociocultural do homem ribeirinho em imagens poéticas bem elaboradas. Entre esses poetas, a autora destaca especialmente quatro figuras: Jorge Tufic, Thiago de Melo, Elson Farias e Luiz Bacelar.
Segunda a autora, ao homem típico da Amazônia, resultante da mistura do branco com o índio, convencionou-se chamar de caboclo. Não o homem da cidade, que tem seus hábitos marcantemente influenciados pelo ritmo de vida urbano, mas o homem ribeirinho caçador, pescador, explorador da floresta. O caboclo tem sua vida delimitada por dois infinitos: o rio e a floresta, de onde retira a sua sobrevivência e onde constrói sua teia de mitos e crenças.
Por viver na beira do rio, o caboclo ribeirinho locomove-se em canoas e sente que, para ele, o ano se divide em um período alegre (a vazante) e outro triste (a enchente). A vazante representa a época da fartura, enquanto a enchente traz consigo um rastro de destruição, fome, miséria e perigos de morte. Assim é que há, numa constância admirável, uma extraordinária “simbiose” entre o homem e o rio. A vida do ribeirinho amazonense, como costuma acontecer com qualquer ribeirinho, é determinada pelo regime das águas do grande rio e seus (também grandes) afluentes.
Consequentemente, as relações interpessoais são vividas em conjunto com o rio. Desde criança, as pessoas aprendem a conviver com o rio e acabam tendo uma maneira peculiar de ser. Os meninos, por exemplo, geralmente sabem os espaços e as relações a partir do rio.
Estudando a poesia de Elson Farias e Jorge Tufic, Santiago (1986) percebeu que:
a) Esses poetas aludem com frequência, em seus poemas, a uma das características marcantes do caboclo, a pavulagem termo regional que designa o prazer em contar vantagens. Para ela, contar histórias seria um traço comportamental do ribeirinho, produto da adaptação de sua psique ao meio geográfico imenso e cheio de mistérios;
b) Em seus textos há uma nítida predominância do espaço-tempo “noite”. Dessa forma, as imagens noturnas são recorrentes na representação dos flagrantes da vida ribeirinha;
c) Nas reuniões em família, sem os recursos da tecnologia moderna, há sempre um tio velho que conta histórias, geralmente de vantagens, às quais pouca gente dá crédito.
As relações sociais entre os povos ribeirinhos da Amazônia se fazem pela mediação do rio ora facilitando, ora dificultando ora participando. A agricultura de várzea, por exemplo, tem que obedecer rigorosamente ao movimento de fluxo e refluxo das águas. Planta-se na vazante para se colher antes da enchente. Por isso, criou-se o “ajuri” ou “putirum”, uma espécie de festa social de trabalho (como um mutirão) onde todos, parentes a amigos, ajudam a plantar e colher – conforme a época do ano – sempre obedecendo ao ciclo das águas, para que nada se perca. É um dos momentos em que o exercício da solidariedade chega a um grau extraordinário nas relações sociais do caboclo.
A imagem do rio, segundo a autora, pode ainda ser estudada em três momentos muito importantes da vida social: o aniversário, o casamento e a morte. Os aniversários são reuniões mais frequentes na região e obedecem às imposições do rio, sendo constituídos de danças, comidas e bebidas; os casamentos, mais raros, são registrados como festas com toda a conotação de acontecimentos fora do comum. Sempre traduzindo grandes festividades, os casamentos são bem adequados a uma poesia erótica, como a terra fértil, o sol e o rio; já a morte tem como causas mais frequentes de ocorrência a doença, o afogamento e o naufrágio. Em relação à morte, as águas que separam são as mesmas que unem. Num velório o ajuntamento de amigos e parentes para assistir à hora derradeira de um moribundo tem um certo ar de festa. Canoas trazem os condolentes, que “comungam” da mesma situação: escuridão, mágoas e miséria.
Outro aspecto digno de nota na poesia sobre a vida ribeirinha é a imagem do peixe, por ser ela responsável por grande parte da formação simbólica do amazônida. E não poderia ser diferente, já que para o nativo a pesca é, ao mesmo tempo, atividade de sobrevivência e recreação. Daí a constância da lexia “peixe” na poética amazonense, ora estilizada como uma exortação à preservação, ora como símbolo de ação erótica.
Quanto à questão da “religião”, o caboclo amazônico tem uma crença eminentemente panteísta. Acredita que a natureza participa de seu destino e busca nela justificativa para os acontecimentos. O catolicismo, trazido pelos colonizadores, não foi bem assimilado, o que ocasionou o desenvolvimento de um comportamento religioso que mistura devoção e superstição. Nos textos é comum aparecerem mesclados elementos da mitologia indígena e da tradição católica. Além disso, há uma interação perfeita: os mitos específicos da água e os da terra se abraçam na tessitura poética.
O mito de Narciso adquire, na literatura amazônica, características muito próprias. Não é o homem que se contempla na água. No ambiente amazônico, é a natureza que se sente atingida pelo narcisismo: é o narcisismo cósmico, referido em inúmeros poetas. Isso talvez seja resultante do fato de que a superfície líquida é extraordinariamente extensa, havendo sempre um grande espelho a refletir o cosmo. Daí advêm requintadas imagens poéticas criadas por Elson Farias, Jorge Tufic e Thiago de Melo, por exemplo. Não raro, a imagem do cisne vincula-se à de Narciso, numa poética de reflexos.
Em Luiz Bacelar, poeta da capital, o que frequentemente aparece é o rio Negro, cujas águas pretas como tinta, escuras, pesadas, misteriosas, inspiram a lembrança da travessia fúnebre, sobre as águas, rumo aos infernos, em mitos como o de Aqueronte, Estige e Tuonela, rios constituídos ambos de águas negras e ligados à ideia de morte nos mitos universais.
Vale ressaltar ainda a forte presença da vitória-régia, como uma espécie de Ofélia regional, simbolizando pela morte a integração na água. As lendas e mitos em geral fornecem um material riquíssimo para a literatura amazonense: desfilam nas imagens poéticas o boto, a cobra grande, o curupira, a matintaperera e tantos outros seres que povoam o imaginário popular do ribeirinho.
Enfim, é inegável que, como já foi observado, na Amazônia existe uma íntima relação entre o homem e o rio. Mas é um tipo de relação impositiva, do rio para o homem. Quem “dita as normas” é o rio, deixando ao homem apenas a possibilidade de aceitar e obedecer.
(Resenha do livro homônimo de Socorro Santiago)
No livro Uma poética das águas, Santiago (1986) mostra que a presença do rio Amazonas na vida dos habitantes de suas margens converte-se em marcante influência sobre esses grupos humanos, como evidenciam os textos de poetas que desenvolveram com intimidade temática do rio e esboçaram o perfil sociocultural do homem ribeirinho em imagens poéticas bem elaboradas. Entre esses poetas, a autora destaca especialmente quatro figuras: Jorge Tufic, Thiago de Melo, Elson Farias e Luiz Bacelar.
Segunda a autora, ao homem típico da Amazônia, resultante da mistura do branco com o índio, convencionou-se chamar de caboclo. Não o homem da cidade, que tem seus hábitos marcantemente influenciados pelo ritmo de vida urbano, mas o homem ribeirinho caçador, pescador, explorador da floresta. O caboclo tem sua vida delimitada por dois infinitos: o rio e a floresta, de onde retira a sua sobrevivência e onde constrói sua teia de mitos e crenças.
Por viver na beira do rio, o caboclo ribeirinho locomove-se em canoas e sente que, para ele, o ano se divide em um período alegre (a vazante) e outro triste (a enchente). A vazante representa a época da fartura, enquanto a enchente traz consigo um rastro de destruição, fome, miséria e perigos de morte. Assim é que há, numa constância admirável, uma extraordinária “simbiose” entre o homem e o rio. A vida do ribeirinho amazonense, como costuma acontecer com qualquer ribeirinho, é determinada pelo regime das águas do grande rio e seus (também grandes) afluentes.
Consequentemente, as relações interpessoais são vividas em conjunto com o rio. Desde criança, as pessoas aprendem a conviver com o rio e acabam tendo uma maneira peculiar de ser. Os meninos, por exemplo, geralmente sabem os espaços e as relações a partir do rio.
Estudando a poesia de Elson Farias e Jorge Tufic, Santiago (1986) percebeu que:
a) Esses poetas aludem com frequência, em seus poemas, a uma das características marcantes do caboclo, a pavulagem termo regional que designa o prazer em contar vantagens. Para ela, contar histórias seria um traço comportamental do ribeirinho, produto da adaptação de sua psique ao meio geográfico imenso e cheio de mistérios;
b) Em seus textos há uma nítida predominância do espaço-tempo “noite”. Dessa forma, as imagens noturnas são recorrentes na representação dos flagrantes da vida ribeirinha;
c) Nas reuniões em família, sem os recursos da tecnologia moderna, há sempre um tio velho que conta histórias, geralmente de vantagens, às quais pouca gente dá crédito.
As relações sociais entre os povos ribeirinhos da Amazônia se fazem pela mediação do rio ora facilitando, ora dificultando ora participando. A agricultura de várzea, por exemplo, tem que obedecer rigorosamente ao movimento de fluxo e refluxo das águas. Planta-se na vazante para se colher antes da enchente. Por isso, criou-se o “ajuri” ou “putirum”, uma espécie de festa social de trabalho (como um mutirão) onde todos, parentes a amigos, ajudam a plantar e colher – conforme a época do ano – sempre obedecendo ao ciclo das águas, para que nada se perca. É um dos momentos em que o exercício da solidariedade chega a um grau extraordinário nas relações sociais do caboclo.
A imagem do rio, segundo a autora, pode ainda ser estudada em três momentos muito importantes da vida social: o aniversário, o casamento e a morte. Os aniversários são reuniões mais frequentes na região e obedecem às imposições do rio, sendo constituídos de danças, comidas e bebidas; os casamentos, mais raros, são registrados como festas com toda a conotação de acontecimentos fora do comum. Sempre traduzindo grandes festividades, os casamentos são bem adequados a uma poesia erótica, como a terra fértil, o sol e o rio; já a morte tem como causas mais frequentes de ocorrência a doença, o afogamento e o naufrágio. Em relação à morte, as águas que separam são as mesmas que unem. Num velório o ajuntamento de amigos e parentes para assistir à hora derradeira de um moribundo tem um certo ar de festa. Canoas trazem os condolentes, que “comungam” da mesma situação: escuridão, mágoas e miséria.
Outro aspecto digno de nota na poesia sobre a vida ribeirinha é a imagem do peixe, por ser ela responsável por grande parte da formação simbólica do amazônida. E não poderia ser diferente, já que para o nativo a pesca é, ao mesmo tempo, atividade de sobrevivência e recreação. Daí a constância da lexia “peixe” na poética amazonense, ora estilizada como uma exortação à preservação, ora como símbolo de ação erótica.
Quanto à questão da “religião”, o caboclo amazônico tem uma crença eminentemente panteísta. Acredita que a natureza participa de seu destino e busca nela justificativa para os acontecimentos. O catolicismo, trazido pelos colonizadores, não foi bem assimilado, o que ocasionou o desenvolvimento de um comportamento religioso que mistura devoção e superstição. Nos textos é comum aparecerem mesclados elementos da mitologia indígena e da tradição católica. Além disso, há uma interação perfeita: os mitos específicos da água e os da terra se abraçam na tessitura poética.
O mito de Narciso adquire, na literatura amazônica, características muito próprias. Não é o homem que se contempla na água. No ambiente amazônico, é a natureza que se sente atingida pelo narcisismo: é o narcisismo cósmico, referido em inúmeros poetas. Isso talvez seja resultante do fato de que a superfície líquida é extraordinariamente extensa, havendo sempre um grande espelho a refletir o cosmo. Daí advêm requintadas imagens poéticas criadas por Elson Farias, Jorge Tufic e Thiago de Melo, por exemplo. Não raro, a imagem do cisne vincula-se à de Narciso, numa poética de reflexos.
Em Luiz Bacelar, poeta da capital, o que frequentemente aparece é o rio Negro, cujas águas pretas como tinta, escuras, pesadas, misteriosas, inspiram a lembrança da travessia fúnebre, sobre as águas, rumo aos infernos, em mitos como o de Aqueronte, Estige e Tuonela, rios constituídos ambos de águas negras e ligados à ideia de morte nos mitos universais.
Vale ressaltar ainda a forte presença da vitória-régia, como uma espécie de Ofélia regional, simbolizando pela morte a integração na água. As lendas e mitos em geral fornecem um material riquíssimo para a literatura amazonense: desfilam nas imagens poéticas o boto, a cobra grande, o curupira, a matintaperera e tantos outros seres que povoam o imaginário popular do ribeirinho.
Enfim, é inegável que, como já foi observado, na Amazônia existe uma íntima relação entre o homem e o rio. Mas é um tipo de relação impositiva, do rio para o homem. Quem “dita as normas” é o rio, deixando ao homem apenas a possibilidade de aceitar e obedecer.