FÉDON

Li este texto de Platão há vinte e cinco anos, na verdade um trabalho para apresentar na disciplina “Introdução à Filosofia I”. Pois é, meu curso ainda teria “Introdução II” e “Introdução III”. Em outros cursos não há tanta introdução. Estudei direito, por exemplo, e tive uma disciplina chamada “Introdução ao Direito” no primeiro semestre e só. Talvez porque Filosofia seja a mais ambiciosa das ciências. Quer ser a ciência das ciências, o que, convenhamos, é muita pretensão. Mas gosto dela exatamente por ser assim tão pretensiosa.

“Fédon” é um dos mais marcantes textos do primeiro grande filósofo pós-socrático. Tão importante quanto, por exemplo, “A República”, que remete à forma como Platão vê a política, ou “O Banquete”, texto imperdível para quem quer saber como os gregos viam o amor. O Diálogo agora comentado fala sobre a morte e tem, como em quase todos os textos de Platão, no papel protagonista, seu velho mestre Sócrates. Este grande sábio morreu sem deixar escritos, e tudo o que sabemos dele vem de seus discípulos. Por isto é que é tão difícil separar o que é de Platão e o que é de Sócrates, preferindo muitos se referir a esta filosofia como socrático-platônica. Mas Antiseri e Reale conseguem fazer uma razoável distinção entre ambos em sua monumental “História da Filosofia”.

A história começa quando dois discípulos do velho filósofo se encontram, tendo um deles presenciado a morte de Sócrates por ingestão de cicuta, como havia sido condenado após ser acusado de corromper a juventude e ridicularizar a crença oficial dos atenienses. Mas o que interessa ao outro é saber do último discurso de Sócrates, feito na prisão, rodeado pelos seus admiradores. Logo de cara sabemos que o filósofo mandou expulsar sua esposa, Xantipa, do lugar, pois ela fazia escândalo em virtude da condenação do marido. O resto do texto reproduz os diálogos do velho mestre com seus alunos sobre o que seria o fato da morte para o homem que foi considerado o mais “sábio” de sua época, segundo o Oráculo de Delfos.

Sócrates não demonstra qualquer preocupação com sua despedida deste mundo. Pelo contrário, segundo ele, ser filósofo é “preparar-se para a morte”. Deveria ser, portanto, um grande momento de alegria para quem passou a vida esmerilhando a alma para quando chegasse este momento. Então o pensador explica o que espera encontrar do lado de lá. E expõe sua grande teoria sobre o infinito cortejo das almas perante Deus. Na verdade, esta visão da vida após a morte e da imortalidade da alma já se exprimia em uma espécie de religião privada que era praticada há tempos pelos gregos, pois tal preocupação sempre existiu, em todas as culturas.

Mas, segundo o filósofo, o destino das almas não seria igual para todos. Cada um, segundo a forma como viveu, seguiria uma caminho diferente. Na verdade, seria uma espécie de metempsicose em que a alma habitaria corpos diversos conforme os hábitos de sua vida. Alguns reencarnariam como escravos, por exemplo. Ou mesmo sob a forma de animais e plantas, de acordo com seus vícios e sua escravidão aos desejos mundanos de prazer. Apenas um deles não retornaria a este mundo e ficaria eternamente ao lado de Deus: o filósofo.

A visão socrática da vida filosófica é a de uma existência que tenha como único parâmetro a verdade, e nada mais. Por isto ele não tentou escapar da morte quando fora julgado pelos seus pares. Poderia ter sido facilmente absolvido se negasse as acusações que lhe imputavam. Todavia, para ele, um filósofo desmentir-se seria um enorme absurdo, e que lhe custaria a eternidade. De nada adiantaria viver uma vida sábia, desvencilhando-se cada vez mais dos problemas da vida mundana se, na última hora, resolvesse voltar atrás

Desta visão da morte como a revelação de todas as verdades da vida, durante o já citado “cortejo das almas perante Deus” é que viria uma espécie de teoria do conhecimento socrático-platônica. Todos nós sabemos a verdade das coisas. Mas esquecemos de tudo no processo de nascimento. Por isto, aprender é recordar-se do que está escondido em nossa alma. Sócrates arranjou muitos inimigos em Atenas por causa de seu método de trazer a verdade à tona por meio de perguntas que desconcertavam muitos que se achavam sábios. Esta era a sua maiêutica, o parto da verdade.

No fim da exposição, pouco antes de tomar o veneno mortal, Sócrates soltaria uma frase que seria motivo de grande deboche cerca de 2.300 anos depois, por outro pensador. É quando ele pede um favor a um de seus discípulos: “estou devendo um galo a Asclépío”. Nietzsche vê em tal frase um desmentido de tudo o que o filósofo grego dissera antes a respeito das coisas do mundo. “Ele se preocupava!”, escreveu o alemão, para quem Sócrates não representou mais do que o fim da era de ouro da filosofia e o introdutor da moralidade, da idéia de bem e de mal, no coração dos atenienses. E desta forma exposta por Sócrates de ver o mundo nasceria o cristianismo, quatro séculos depois, o qual Nietzsche chamaria de “platonismo para o povo”.