Cem anos de solidão - um livro sem fim.
Resenha do livro “Cem anos de solidão” de Gabriel García Márquez. Editora Sudamérica, 1967. Colômbia
Ler três vezes Cem anos de solidão não é suficiente para compreender a grandeza desse livro. Mesmo sendo leitora voraz do “Gabo”, tenho dificuldades em traduzir em palavras as impressões que a obra dele traz. Viagens incríveis por mundos desconhecidos e jamais imaginados, para dizer o mínimo. De longe o melhor escritor (de prosa) latino-americano de todos os tempos, o que o consagrou e foi por ele consagrado, foi o inconfundível “realismo mágico” ou “realismo fantástico”, aderido por outros autores latino-americanos e é reconhecido no mundo inteiro pelo fascínio que provoca nos leitores.
Gabriel García Marquez nasceu em Aracataca, pequena aldeia Colômbia e se formou inicialmente em Jornalismo, vindo a trabalhar como redator no jornal El Universal, um jornal de Cartagena de Índias, em 1946, El Heraldo, em Barranquilla entre 1946 e 1952 e de El Espectador, em Bogotá, a partir de 1952. O jornalista e escritor trabalhou também na agência de notícias cubana La Prensa, na Colômbia, em Havana, em Nova Iorque e em Paris. Estava com quarenta anos quando escreveu Cem anos de Solidão e o escreveu em dois anos.
Recém-chegado ao México, atravessava dificuldades financeiras e seu plano de fazer cinema não foi bem sucedido, ao contrário do livro, que, logo na sua primeira tiragem, de 8.000 exemplares, em 30 de maio de 1967, esgotou-se em 15 dias. Inicialmente despretensioso, hoje traduzido para mais de 35 idiomas, é, sem dúvidas, o melhor representante da melhor Literatura latina.
Devido a suas idéias esquerdistas, se opôs ao ditador Laureano Gómes e ao seu sucessor, o general Gustavo Rojas Pinilla e, por isso, teve de passar as décadas de sessenta e setenta num exílio voluntario no México e Espanha.
Usualmente costumam atribuir sua principal influência literária ao romancista americano Willian Falkner, mas outras influências também são notadas, como Kafka e outros. Segundo o próprio autor, seu realismo mágico surgiu da influência de sua avó e da maneira encantadora como ela lhe contava as estórias, fazendo com que parecessem verdade, como também recebeu influência de seu tempo de repórter correspondente do El Espectador em Nova Iorque, Roma e Paris. Nota-se mesmo um encadeamento, objetividade textual, clareza e simplicidade que são características dos textos jornalísticos, percebidos especialmente em suas crônicas.
Para surpresa do próprio, em 21 de outubro de 1982, García Márquez recebe o maior reconhecimento por sua obra literária, o Prêmio Nobel de Literatura, sendo depois, convidado formalmente pelo governo de seu País a regressar com todas as honrarias. Seu realismo fantástico, sobretudo em Cem anos de solidão, mistura de realidade e fantasia, o fez conhecido no mundo inteiro como um “fazedor de ilusórios”, mas esses ilusórios sempre têm uma inspiração real e ligada a seu país, seu povo sofrido e suas próprias experiências. Impossível dissociar a obra de García Marquez de seu ambiente, de suas ideias e de seu contexto político-social, característica comum na Literatura latina, a exemplo de Pablo Neruda, que foi um grande militante político através de seus textos, chegando a ser senador no Chile.
A cidade imaginária de Macondo é o cenário de Cem Anos de Solidão, que conta a história de seus fundadores liderados pela família Buendia-Iguaran. José Arcadio Buendía é o patriarca da família e Úrsula Iguarán a matriarca. Trata-se de um casal de primos, que se casaram assustados pelo mito de que o casamento entre familiares poderia gerar filhos com rabos de porco. Este temor cria situações divertidas no início do relacionamento, mas também situações trágicas, e será, o causador da mudança de cidade do casal para fundar Macondo.
O nome Macondo aparece em Cem anos de Solidão sem nenhuma grande explicação. José Arcadio Buendía, durante a sua viagem de saída da cidade natal, tem um sonho de uma cidade cujas construções têm paredes de espelhos e cujo nome é Macondo, mas esse nome não tem nenhum significado aparente ou explícito no livro, nem conhecido até hoje.
O casal tem três filhos: José Arcadio, Aureliano Buendía e Renata Buendía. Depois chega Rebeca. A cidade de Macondo é fundada por algumas famílias que acompanharam os Buendía durante a sua viagem.
A história de Cem anos de solidão passa a girar em torno da família Buendía por diversas gerações. São mostrados os encontros e desencontros ocorridos nas vidas de seus membros por diversos anos, até que o último Buendía vivo consegue decifrar as escrituras que prediziam o futuro da família. A história termina com o sumiço da aldeia, deixando o leitor suspenso, fascinado e querendo mais.
Dono de um estilo único, o seu realismo mágico transporta o leitor para além do tempo da própria narrativa. Leva-nos a um outro plano; onde tudo é possível.
A primeira impressão que o livro nos deixa é de que ele trata de toda a vida humana, de todos os seus conflitos e experiências possíveis. Nele vemos amor, paixão, morte, ódio, resignação, revoluções, doenças, injustiças, luta pelo poder, vingança, exploração, coisas sobrenaturais, sonhos, ilusões, patriotismo, morte, superação, inexplicável.
É sem fim a lista de conflitos e situações que García Márquez consegue representar em Cem anos de solidão. Seus personagens são construídos visceralmente, pintados de si mesmo com cores tão fortes que não podemos deixar de logo reconhecê-los exatamente como o autor queria expô-los. São inconfundíveis em suas identidades, apesar da aparente repetição por causa dos nomes, as personalidades num dado momento de distanciam, mas a idéia do autor de mostrar o ciclo é válida em toda a trama, sem jamais perder-se. Pessoas diferentes vivendo o mesmo ciclo, a solidão humana irreparável, por cem anos e muitas gerações.
Cien anos de soledad, além de inaugurar o estilo real fantástico de García Marquez, rompe com o modelo tradicional, pois não traz apenas um protagonista, mas vários que se revezam, mas seguindo sempre a mesma linha. Além da Família Buendía, alguns amigos como Melquiíades e Pilar Ternera entram na trama, esta, trazendo uma importante representação de gênero na trama. Sua constante subordinação e reaparição como amante dos homens Buendía a faz uma personagem rica de aspectos a serem estudados.
O autor constrói os seus personagens redondos, isto é, eles mudam ao longo da trama, surpreendem, são profundos. Ao mesmo tempo que são fictícios, em alguns momentos podem representar pessoas reais, mesmo não representando fidedignamente. A trama não tem uma ação única, mas vários momentos decisivos na história, como a presença de Aureliano Buendía frente ao pelotão de fuzilamento.
Quanto ao tempo da trama, temos vários; o cronológico, no qual as personagens vão sendo tecidas, o histórico, tempo onde tudo aconteceu na trama e o tempo do discurso e psicológico, onde os personagens se manifestam de acordo com seu estado psicológico. O narrador é onisciente que está dentro da mente das personagens e as manipula como quer. Além disso, o mesmo traz leveza e clareza à narrativa, que é, sobretudo, humana.
Dentre as temáticas abordadas no livro está a solidão, o isolamento em que uma família, bem como cada indivíduo dela se mantinha face ao mundo. Situação de Pilar Ternera na trama, bem como de outras mulheres, traz a questão do gênero, do machismo e da prostituição.
A temática política, sempre presente no livro na paixão patriótica de alguns persnagens, como do coronel Aureliano Buendía, nos traz um retrato das revoluções latino-americanas, onde guerrilheiros, ba maior parte dos casos saídos de lugares miseráveis como Macondo, homens simples, porém corajosos e apaixonados que seguem seus líderes cegamente, e que, em dado momento se veem diante de uma guerra perdida ou traídos por aqueles a quem seguiram. , como por exemplo, em um momento da trama o Coronel Aureliano Buendía percebe que seus correligionários deixaram de lutar pelos motivos iniciais e pela nação e passaram a lutar por poder e por seus próprios interesses. Mas não é tão simples parar os efeitos da guerra e os aliados passam a ser inimigos. Não há passado nem futuro na guerra, concluimos. Só perdas e estupidez. Mais uma lição do livro.
Outro aspecto abordado é o ciclo das coisas, a constante repetição que nos envolve ao ponto de tudo parecer perdido e parado no tempo.
O personagem que escolhi destacar foi José Arcadio Buendía, figura principal e inaugurador da trajetória de solidão dos Buendía. Logo no incício da narrativa o conhecemos levando o filho Aureliano Buendía para conhecer o gelo e travando conhecimento com os ciganos, especialmente Melquíades, cigano aparentemente enganador, aparece com seus inventos fantásticos que prometem realizar façanhas e que representam para José Arcadio “o canto da sereia”. Apesar disso, o livro mostra que, no fundo, Melquíades é um homem inofensivo e de bom coração. Suas atitudes provam ao longo da trama que ele é um bom homem, quase ingênuo e sempre bem intencionado.
O autor apresenta José Arcadio Buendía como um homem de imaginação fértil, engenhoso e empreendedor. Ao entrar em contato com os engenhos do cigano Melquíades, Arcadio Buendía fica fascinado pelas invenções fantásticas e seu uso misterioso apresentado pelo cigano. Logo adquire os inventos para tentar fazer uso deles em seus projetos mirabolantes. As experiências sempre frustrantes o tornam cada dia mais obstinado e chega a ficar doente e ser considerado louco pelas pessoas de Macondo.
Casado com Úrsula, mulher trabalhadora, racional e prática, mas ainda assim, submissa e resignada, José Arcadio Buendía sempre consegue dissuadi-la e apoiar as suas ideias mirabolantes, como quando derreteu seu último ouro para tentar multiplicá-lo, vindo a deixá-la sem um tostão.
Descrito como um homem forte, vigoroso e líder, mata um homem para defender sua honra, lidera seu povo, providencia com muita inteligência e engenho morada e alimento para todos e constrói em torno de sua família uma espécie de reino de Macondo.
Sempre perseguindo seus sonhos, o patriarca de Macondo passa a ser tratado como louco depois de suas inúmeras tentativas mirabolantes no campo da alquimia, astronomia, física e invenções de toda espécie. Seu radicalismo o leva a ser relapso quanto aos seus deveres doméstico e como pai, levando sua esposa a assumir os negócios da casa e posteriormente seus filhos. Seu fim é triste. Morre velho e louco, amarrado a uma árvore em seu quintal. José Arcadio Buendia é o retrato do idealismo.
O autor, mais do que a outro personagem, confere ao patriarca Buendía, uma alma inconfundível. A obstinação invencível e o constante desejo de mudança dos revolucionários latinos bem como de todo sonhador estão representados nele.
Definitivamente, Cem anos de solidão é um livro que todos deveriam ler antes de morrer.