Vidas Cinzas
Romance de Milton Hatoum nos mostra o sofrimento do ser humano que quer ser livre.
“Mundo mundo vasto mundo/se eu me chamasse Raimundo/seria uma rima, não seria uma solução.”
E certamente não seria mesmo uma solução, ou pelo menos assim nos mostra o escritor manauara Milton Hatoum em seu romance Cinzas do Norte, publicado em 2005. Ambientado em sua maior parte na Manaus da ditadura militar, mas também utilizando-se de passagens pelas cidades do Rio de Janeiro, Berlim e Londres, nos é contada a história de Raimundo, o Mundo, que, ao contrário daquele do poema de Drummond, não é assim tão vasto.
A história de Mundo, garoto de família rica, que cultiva problemas com o pai ao invés de amizades, não nos é contada pelo protagonista, mas sim por Olavo, único amigo que o menino possui. Ao contrário do primeiro, Lavo é órfão e mora com os tios, Ramira e Ranulfo, num bairro pobre do centro de Manaus. A história é contada como relato, um testemunho dos acontecimentos do passado que é relembrado por um Olavo já adulto e com uma carreira jurídica consolidada. Apesar do grande amor fraternal que nutre pelo protagonista, ele mesmo sempre foi mais um expectador de toda a história, sempre aparecendo como observador privilegiado das disputas familiares dos Mattosos, mas nunca tomando partidos, contentando-se apenas em se fazer presente.
Já no começo da narrativa Mundo nos é apresentado como um personagem complexamente simples, quando, em um postal enviado da Europa, diz a seu amigo que, no convívio familiar, era “Ou a obediência estúpida, ou a revolta”, onde, como artista que sempre acreditou ser, optou pelo caminho da revolta. Revolta essa que não era muito bem compreendida por seu amigo, que, apesar de apoiá-lo sem pestanejar, nunca tomava verdadeiro partido, em alguns momentos nos deixando a impressão de que Mundo era um tipo de “rebelde sem causa” e, em outros, de que o amigo tinha toda razão em se revoltar. Essa dualidade dos fatos condiz com o narrador nos estar contando uma história que não é a dele, mas sim uma história que ele parte presenciou, parte lhe foi contado por terceiros. Ao mesmo tempo que se ganha credibilidade pela situação de conflito estar sendo retratada por alguém de fora do mesmo, perde-se pelo fato de muitas vezes não sabermos ao certo onde se encontra a raiz do problema.
Usando uma técnica de narração metalinguística, onde a própria história é um livro em si, Lavo nos conta os principais acontecimentos da vida de Mundo desde que ambos se conheceram no colégio, além de tentar mostrar como as atitudes daqueles que o rodeavam o influenciavam na sua revolta: a viagem que fizeram juntos para a Vila Amazônica; o amor de Alicia, mãe de Mundo, por Ranulfo, e seu descaso pelo velho Trajano; a forte ligação entre Jano e seu cachorro Fogo, quem ele parecia amar mais do que o filho (relação essa que muitas vezes nos lembra a existente entre Fabiano e Baleia em Vidas Secas); a amizade proibida entre Mundo e o artista-trambiqueiro Arana; os anos no Colégio Militar; a execução da maior obra-de-arte do garoto na Vila Amazônica; tudo sendo mostrado como fatores que levam à morte lenta e prematura do jovem artista num quarto de hospital no Rio de Janeiro.
Assim como sugere o título, o romance tenciona nos mostrar o processo de deterioração das personagens e de suas relações, até o ponto em que elas simplesmente deixam de existir. Tendo seu ponto máximo na obra-prima do menino na Vila Amazônica, logo vemos que nãos apenas as cruzes entre as casas sem infra-estrutura do bairro pobre nas redondezas de Parintins se tornaram cinzas, mas que esse foi um processo contínuo: a relação de mundo com o pai e com Arana; de Alicia com Ranulfo; de Ramira com Jano. Toda a base do romance se deteriora ante à narração lenta e estafante do escritor manauara, que espera até o último momento para nos fazer uma chocante revelação, até transmutar-se ela mesma em cinzas.
Cinzas que, talvez infelizmente, não sejam privilégio do norte.