O ESPAÇO EM AMOR DE PERDIÇÃO, DE CAMILO CASTELO BRANCO
O Romantismo teve suas primeiras manifestações por volta da metade do século XVIII, sob influência dos ideias revolucionários advindos dos princípios iluministas. A racionalidade resgatada pela escola árcade é negada e o movimento romântico retoma o predomínio de emoção, instaurando a valorização dos sentimentos no fazer artístico. Dentre os expoentes dessa literatura figura Camilo Castelo Branco, pertencente à segunda geração romântica, o Ultra-Romantismo. Camilo é dono de uma vasta produção literária, que abarca diversas instâncias da realidade, manifestadas sob varias formas de expressão. Na ficção, sua obra é numerosa e diversificada. A novela passional Amor de Perdição é campo fértil para se detectar as características fundamentais da escola romântica.
Obra que principia o Ultra-Romantismo português, Amor de Perdição foi publicado em 1862, cuja aceitação do público leitor e da critica seria eufórica. Vista como um Romeu e Julieta lusitano, a obra camiliana ganhou respaldo e projeção consideráveis na literatura portuguesa, tornando-se um clássico da literatura universal. Nela, o autor aborda o tratamento do amor indomável, absoluto, entre jovens que enfrentam todos os obstáculos por suas paixões. Ao resistir o irrevogável destino, buscam a felicidade a todo o custo, mas segue, para a desgraça que, quase sempre, leva à morte.
A temática da novela camiliana trata do amor desgarrado entre os jovens Simão Botelho e Teresa de Albuquerque, das famílias rivais da cidade de Viseu. Conscientes da impossibilidade desse amor, os jovens lutam com todas as forças para viverem com plenitude o sentimento que nutrem um pelo outro. Ao não se terem como objeto da paixão, os dois confirmam seu destino trágico e refugiam-se na morte, salvação e concretude plena desse amor. É interessante observar que o elemento espaço assume importância considerável no desenvolver da trama, ora comungando da essência dos personagens, ora como empecilho e libertação.
O espaço, em uma narrativa, é definido como sendo o lugar onde se passa a ação. Se os eventos são marcados por estados que se transformam na camada temporal, estes acontecem em algum lugar. Cardoso expõe que “o espaço é também aspecto intrínseco do texto narrativo, visto que nele se situam os eventos e os personagens” (CARDOSO, 2001, p. 40). Gancho ainda vai além e complementa:
O espaço tem como funções principais situar as ações dos personagens e estabelecer com eles uma interação, quer influenciando suas atitudes, pensamentos ou emoções, quer sofrendo eventuais transformações provocadas pelos personagens.
Assim como os personagens, o espaço pode ser caracterizado mais detalhadamente em textos descritivos, ou as referências espaciais podem estar diluídas na narração. De qualquer maneira é possível identificar-lhe as características, por exemplo, espaço fechado ou aberto, espaço urbano ou rural, e assim por diante. (GANCHO, 2001, p. 23)
De acordo com Antonio Dimas (1985, p. 5), “o espaço pode alcançar estatuto tão importante quanto outros componentes da narrativa”. O espaço pode articular-se com os personagens de tal forma que pode se instaurar uma estreita relação entre eles. Mais do que mero cenário decorativo, o espaço é “um laço palpável entre o ambiente e o ser” (DIMAS, 1985, p. 15). O espaço pode estar tão associado, ou até mesmo integrado aos personagens que sua descrição pode alcançar dimensão simbólica revelar traços expressivos dos personagens.
Analisando o espaço físico da obra camiliana, observa-se que a narração se processa em diversas cidades: Vila Real, Coimbra (local onde Simão estudava), Viseu (onde residiam os pais dos jovens e de João da Cruz e também onde se localizava o Convento de Viseu), Porto (onde se situavam a prisão para a qual Simão fora levado e o Convento de Monchique onde estava Teresa). O espaço físico apresenta gradativo afunilamento, à medida que ação trágica se avoluma até chegar ao clímax, seguindo para o desfecho. De um espaço exterior, amplo, no qual os personagens principais movimentam-se livremente, a cidade (liberdade para o amor), passa-se para um espaço fechado e reduzido, onde as personagens se encontram encarceradas. Enquanto o espaço se fecha, aumenta a distância entre as personagens, aumenta a incomunicabilidade, o que faz do próprio espaço um elemento intensificador de tragédia. O local onde Simão e Teresa se encontram nos lances finais da narrativa simboliza o aprisionamento tanto físico quanto da suas vidas, pois estão enclausurados nas dimensões de sua própria tragédia. O lançamento do cadáver de Simão ao mar funciona como o retorno aos grandes espaços, à imensidão que o amor exigia dele, sem limites.
No primeiro encontro de Simão com Teresa, o narrador afirma que “da janela de seu quarto, é que ele a vira pela primeira vez, para amá-la sempre” (BRANCO, 2007, p. 16). Note-se que Teresa está numa sacada, num plano elevado. O sentido desse espaço revela a elevação de Teresa enquanto figura feminina, idealizada, tida como santa ou mulher-anjo. A mulher inacessível tão cantada na poesia e prosa românticas, razão dos devaneios emocionais do eu-lírico.
A casa de ambos, como espaço, também apresenta um sentido. O ser abrigado sensibiliza os limites do abrigo, vivenciando a casa em sua realidade e em sua vitalidade. A casa de Teresa passa a ser seu cárcere, enquanto aguarde sua ida para o convento: “Meu pai diz que me vai encerrar num convento por tua casa” (BRANCO, 2007, p. 17). Já Simão, ao abandonar o lar de seus pais, assume uma nova casa: a de João da Cruz e Mariana, que o hospedaram durante seus encontros com Teresa. Neste momento, sente-se parte integrante daquele lugar, um membro da família.
O espaço convento, para Teresa, não é mais o espaço do sagrado, e sim o espaço do sofrimento, da solidão e da impossibilidade de realização amorosa. Da mesma forma, a cela para Simão é o prisão dos seus sentimentos, onde se condena um ser a viver sem o outro. As grades simbolizam os grilhões sociais que o condena e obriga à clausura. Os dois últimos espaços que surgem no epílogo da obra são a torre e o navio. A janela da torre do convento, de onde Teresa mirava olhar a Simão sendo degredado, reforça a elevação antes lhe atribuída. Esse espaço “aéreo” remete à ideia da mulher tipicamente romântica, santificada e inatingível. E também a impossibilidade de atingir o grande intuito de concretude do amor proibido, o isolamento imposto por sua família. A janela representa a ligação entre o interior e o exterior, conotada simbolicamente com a interioridade de Simão e Teresa e com a sociedade. Associada aos olhos, órgão de percepção, (a janela se liga à ideia de receptividade da luz exterior) que, por sua vez, são o espelho da alma. Está também associada a um aqui – espaço terreno de hostilidade – que se opõe ao além – céu, espaço de esperança e da ilusão fecundante.
O navio é símbolo da separação, do distanciar-se rumo ao desconhecido contra a própria vontade. Porém, a libertação de ambos os personagens só será atingida mediante suas mortes. O maior cárcere em que se encontraram era o próprio corpo. Ao morrer, abandona-se o corpo, matéria terrena que aprisiona a alma. Mariana, silenciosa amante de Simão, atira-se ao mar, abraçada ao corpo do jovem. Em sua roupa, levava as cartas dos jovens Simão e Teresa amarradas por fios. Os fios simbolizam a ligação eterna dos amantes, que não se desfaz após a morte ( os fios mantém as cartas dos amantes juntas, quando estas são lançadas ao mar.) O fio remete também para a ideia de destino que tem de ser cumprido. No mar, espaço de amplitude, imensidão, é possível sentir a liberdade que o amor ansiava, pois este é o local do renascimento, espelhamento o céu.
Portanto, o elemento espaço adquire significância na estrutura da narrativa camiliana, revelando sentidos intrínsecos à trama trágica.
REFERÊNCIAS
BRANCO, Camilo Castelo. Amor de Perdição. São Paulo: Ciranda Cultural, 2007.
CARDOSO, João Batista.Teoria e prática de leitura, apreensão e produção de texto. Brasília: EDUNB, 2001.
DIMAS, Antonio. Espaço e romance. São Paulo: Ática, 1994.
GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática, 2001.