CAPÍTULO I-  A ORIGEM DAS FRATERNIDADES  
                                                              
O equilíbrio universal
 
A tradição hermética sustenta que houve uma época na vida da humanidade em que todos os homens tinham consciência da unidade do universo e sabiam que o céu e a terra eram complementos um do outro. Ambos refletiam a Consciência maior que os havia pensado. Era um mundo unificado por dentro e por fora, onde tudo estava em tudo, o que estava dentro era igual ao que estava fora, o que estava em baixo era igual ao estava em cima e dessa forma, o universo se mantinha em equilíbrio constante.
Essa concepção, cosmológica em sua origem, religiosa em sua prática, evoluiu mais tarde para o plano social e ético, dando fundamento a elementos culturais importantes, que moldaram comportamentos e inspiraram crenças que ainda hoje informam boa parte da nossa vida espiritual.
Esse equilíbrio era mantido por uma relação de estreita reciprocidade entre homens e deuses. Os primeiros lhes prestavam culto e os segundos controlavam a natureza para que esta sempre lhes aparecesse sobre uma forma amigável. Daí o fato de as primeiras religiões desenvolvidas povos antigos ter um caráter animista, ou seja, uma religião fundamentada em fatos da natureza, onde os deuses eram identificados com as forças que nela atuam.[1] 
Já antes dos tempos históricos essa noção podia ser observada na cultura religiosa dos povos do Nilo. Vem do antigo Egito, anterior aos faraós, a noção de que esse equilíbrio era realizado pela deusa Maat, a qual agia como uma intermediária entre os homens e os deuses, recolhendo na terra os influxos das boas ações praticadas pela humanidade e levando-os para o céu, como alimento para as divindades; e deles ela trazia para a terra as benesses concedidas pelos deuses como contra prestação das ações humanas, realizadas em sua homenagem.
Assim, o equilíbrio universal era mantido pela prática da Maat, ou seja, o viver de forma virtuosa, praticando a verdadeira justiça, garantindo a benevolência divina. Dessa forma, a ética, a ecologia e a responsabilidade social estavam solidamente vinculadas ao espírito religioso, e este, por sua vez, refletia no sistema jurídico formando um todo harmonioso que dava vida à sociedade, regulando as relações do homem para com a divindade e entre eles próprios. Destarte, a pátria e o povo era a noção ampliada da família do rei-sacerdote, a quem incumbia a mediação dessa relação entre o profano e o sagrado, que se realizava através dos ritos apropriados, instituídos pelos próprios deuses.[2]
 
As cidades antigas
 
Entre os gregos a noção de estabilidade social estava estreitamente ligada à idéia de fraternidade. Os grupos familiares eram chamados de fratrias. Esses grupos congregavam as pessoas da família e todos os agregados que de alguma forma tivessem relação de parentesco com o chefe da família, ou qualquer ligação profissional, social ou legal, com o núcleo familial. Dessa conformação, em princípio moldada por vínculos de sangue e depois por interesses sociais, religiosos, políticos e econômicos, evoluiu a noção de clã ─ a família ampliada ─ e da reunião de clãs formou-se, mais tarde, a pólis, que era a comunidade circunscrita à uma urbe.
Foi esta última que deu origem às cidades-estado da Grécia antiga e da península itálica. Praticamente, todas as cidades do Ocidente clássico evoluíram a partir desses núcleos familiares. Iremos encontrá-los também em Roma, na estrutura do patriciado, assim chamados os núcleos familiares que deram origem ao povo romano e foram responsáveis por uma estrutura social que sobreviveu por muitos séculos.[3]
Fustel de Coulanges, em sua obra clássica, conta como essa evolução se processou: “Assim, a cidade-estado surgiu como resultado deste tipo de organização familiar. A cidade era uma grande família. Família, frátria, tribo, cidade são, portanto, sociedades perfeitamente análogas e nascidas umas das outras por uma série de federações. No mundo antigo era o culto que constituía o vínculo unificador de toda e qualquer sociedade. Cada cidade tinha seus deuses, assim como a família. O sacerdote máximo da cidade era chamado rei, como era o pai dentro da família. E, aquele que era da “família” chamada cidade era o cidadão; portanto era cidadão todo homem que tomava parte no culto da cidade e estrangeiro aquele que não compartilhava do mesmo culto. A cidade nos seus primeiros tempos nada mais era do que a reunião dos chefes de família (...), escreve aquele autor. [4]

Isso nos mostra como a organização social se constrói e se apóia na perenidade de certos arquétipos cultivados pela mente humana e nos permite deduzir que quando essas estruturas arquetípicas são esquecidas e relegadas a um segundo plano na vida das sociedades, elas declinam e acabam por desaparecer, como também registra Gibbons em sua obra clássica.[5]
Por esse prisma se pode perceber também que a liga que mantinha a unidade primordial das antigas sociedades estava principalmente no compartilhamento da religião. Esse era o principal elemento constitutivo da família antiga. E a família como vimos, não se constituía só por conta de ligações afetivas ou condições de nascimento, mas tinha como principal fundamento o poder do pai como sacerdote do lar. Ele, como patriarca, era o centro no qual girava todo o núcleo familial. Destarte, a família não era constituída apenas pelos ascendentes e descendentes do núcleo principal ─ o pater famílias, o patriarca, ─ mas por todo o grupo de pessoas a quem a religião permitia partilhar o mesmo lar e oferecer respaldo fúnebre aos antepassados comuns. Em razão dessa tradição, a primeira instituição estabelecida pela religião doméstica foi o casamento, pois este era considerado praticamente um novo nascimento, já que por ele se instituía um lar, onde se mantinha o vínculo dos descendentes com os seus ancestrais e o culto aos mesmos deuses lares, da mesma forma que se compartilhava a terra onde os túmulos dos ancestrais se encontravam. É aqui que se identifica a origem da sacralidade do casamento e a instituição da monogamia.[6]
Da mesma forma, a instituição da propriedade privada como direito de família também teria origem na crença de que os mortos precisam ter um pedaço de terra para continuar suas vidas após a morte. Pessoa sem túmulo conhecido, além de ser uma alma sem direito a repouso no mundo dos desencarnados, era também um fracassado que não legara aos seus descen-dentes uma base de continuidade para o seu núcleo familial.
Foi dessa forma que os povos da Grécia e da Itália desenvolveram o instituto da propriedade privada, derivando-a da própria tradição religiosa, pois o solo onde repousavam os mortos constituía, por força dessa crença, uma propriedade inalienável e imprescritível que não podia ser perdida sob pena de destruição do próprio núcleo familial. Assim, o direito de propriedade, fundamentado na prática de um culto hereditário, não acabava com a morte de um único indivíduo, porque a propriedade não pertencia a ele, mas à família[7]
Com essa prática se mantinha a estreita ligação entre o mundo dos homens e o mundo dos deuses, representada pelo respeito que as fratrias dedicavam às suas divindades e na tradição mantida por elas, de honrar seus ancestrais falecidos como intermediários entre os vivos e os mortos.[8]
 
As fraternidades
 
Assim, o termo “fraternidade”, que é aplicado a um grupo de tradições comuns, vem do grego fratria, que na antiga Atenas designava uma associação de cidadãos, unidos pela mesma cultura religiosa e compartilhante dos mesmos símbolos. Cada fratria formava uma unidade política e religiosa. A legislação de Sólon legitimou essas associações, determinando a sua composição em 30 fratrias.  
O desenvolvimento ulterior das sociedades, que de famílias se tornaram tribos, de tribos passaram a povos, de povos a nações, nações a estados, forçou a incorporação de elementos culturais estranhos à sua estrutura nuclear. A tradição antiga da fratria como núcleo fundamental da comunidade se perdeu, mas essa noção jamais deixou de existir no inconsciente coletivo da humanidade. Ela seria conservada na tradição de todos os povos através dos grupos que então se formaram para o compartilhamento de interesses comuns.(9) Esses grupos, nos quais identificamos também as corporações obreiras da antiguidade, antecessoras das guildas medievais, estão na origem de todas as sociedades, religiosas ou laicas, que buscam preservar, manter, divulgar ou cultuar determinados elementos arquetípicos compartilhado pelo grupo.
Foi dessa tradição e do que ela representa, em termos de compartilhamento de uma tradição, feita de arquétipos comuns, que evoluiu a idéia da sociedade. De uma de suas vertentes  fluiu a idéia que sustenta a moderna maçonaria, que por definição é uma fraternidade universal de homens de boa vontade, cujo objetivo é defender a liberdade de pensamento, a igualdade entre as pessoas e a fraternidade entre os povos da terra.
Essa definição é colocada tendo em vista a maçonaria especulativa, ou seja, as organizações que se formaram em algum momento na Idade Média, pela associação entre os profissionais de construção civil – conhecida como maçonaria operativa – e membros da sociedade civil (militares, intelectuais, artistas, comerciantes, cientistas, etc), tranformando as antigas corporações dos pedreiros livres em verdadeiros clubes de pessoas ilustres, com o objetivo de defender um ideal de progresso e liberdade.
É com essa noção que trabalhamos hoje o conceito de maçonaria e é com ela que desenvolveremos os temas expostos neste livro.  
 


[1] Essa característica anímica das antigas religiões transparece principalmente nas religiões egípcia e grega, onde os deuses são todos associados a fenômenos naturais e presidem, cada um deles, um aspecto da natureza.  
[2] Daí o desenvolvimento dos chamados Mistérios, rituais religiosos que visavam honrar os deuses e imitá-los nos seus processos de criação das realidades universais. 
[3] A própria fundação de Roma não escapou a essa conformação. Nesse sentido, a chamada Cúria Hostília( reunião dos chefes tribais italianos, sob o comando de Rômulo, é tida como sendo o núcleo histórico do Senado Romano e mais tarde o alicerce do Républica. Sua sede  foi construída originalmente como um templo etrusco sobre o local onde as diversas facções tribais depuseram suas armas, após elegerem Rômulo para seu rei.   ( 771–717 a.C.).
[4] Fustel de Coulanges, A Cidade Antiga, pg. 23
[5] Edward Gibbons- Ascensão e Queda do Império Romano. Esse arquétipo é construído em cima da hierarquia existente no poder do pater familias, que em sentido amplo foi depois estendido para a noção de pátria e povo.
[6] É aqui, também, que se identifica o surgimento do costume de considerar a pessoa que compartilha da mesma cultura simbólica como “iniciado, irmão”, e o que não compartilha como “profano, estrangeiro.”
[7] Ibidem, Fustel de Coulanges, op. citado, pg. 25
[8] Em Roma, esses ancestrais eram conhecidos como manes ou deuses lares, de quem se faziam pequenos bonecos de madeira que eram colocados nos aras (altares) domésticos. Na Ilíada e na Odisséia também se percebem traços distintivos dessa tradição na forma peculiar dos gregos honrarem seus ancestrais.
(9) Essa noção é mais visível na lingua alemã, por exemplo, onde a palavra Wolk designa povo, mas tem um significado mais amplo que se estende a uma comunidade tribal, ligada por laços de sangue e compartilhamento cultural.

_________________________________________

DO LIVRO "MISTÉRIOS DA ARTE REAL", TITULO PROVISÓRIO, NO PRELO.
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 13/01/2012
Reeditado em 17/01/2012
Código do texto: T3438590
Classificação de conteúdo: seguro