Multiverso - Resenha da graphic novel "Mr. Punch", de Neil Gaiman
Mister Punch foi apresentado a mim pela graphic novel de Neil Gaiman e Dave McKean, chamada "A comédia trágica ou a tragédia cômica de Mr. Punch", publicada no Brasil em 2010, pela editora Conrad. Na verdade, nem mesmo fomos apresentados, logo nas primeiras páginas já fui espectador do primeiro crime do espertalhão Mister Punch. A estranheza e a bizarrice quase nos faz fechar o livro e considerá-lo inapropriado para nossa idade, mas é impossível não confiar em Neil Gaiman. Ao longo da história, contada pela voz de um garoto-homem, o pequeno espetáculo de fantoches funciona como uma linha que costura as recordações que borbulham desordenadamente. Lembranças que ganham novos significados a partir do presente de nosso personagem e que estão sujeitas aos sentimentos e vontades da criança que ele era e do homem que se tornou.
As cenas protagonizadas por Mister Punch trespassam a infância do garoto e são apresentadas como elos para as reflexões que indiretamente conectam as peripécias dos fantoches à vida do garoto. Aos poucos e à medida que o protagonista percorre suas próprias lembranças, percebemos o quanto a perda persiste em preencher a vida dos homens. A efemeridade é o sentimento que nos acompanha durante a leitura e o único elemento que escapa a ela é o Mister Punch. Isso nos leva a pensar sobre o incontrolável poder de criação do homem, que mesmo sendo assolado pela finitude de sua vida, é capaz de criar algo que sobrevive a morte de seu criador e se torna maior do que ele. Os "professores", aqueles que manipulam os fantoches do show do Mister Punch, parecem ceder um pouco de suas próprias vidas para que o personagem continue vivendo. É interessante questionar se os "professores" fazem isso de boa vontade, porque depois de conhecer as artimanhas do Mister Punch, é possível imaginar que ele está por traz disso tudo, como se ele obrigasse aos "professores" a lhe emprestar alguma vida.
Nas primeiras páginas e como cúmplice do quase abandono da graphic novel, está a estranheza da arte de Dave McKean. É impossível resistir ao mundo desconjuntado e desconexo da graphic novel. Suas imagens parecem tentar emular uma mistura de lembranças de épocas e pessoas diferentes ou mesmo representar as várias vidas cedidas, pelos inúmeros "professores", ao Mister Punch. Todos os quadros, cada um dos elementos deles, parecem ter vindo de um universo diferente. Há um contraste permanente entre fotografias e desenhos. Contudo, ao mergulharmos um pouco mais e ultrapassarmos a estranheza superficial, enxergamos a maestria de um grande artista. McKean consegue harmonizar elementos gráficos de categorias bastante diferentes em uma narrativa visual estonteante e complexa. Tudo parece vivo e pulsante, como se estivéssemos assistindo às recordações do protagonista saltando de sua memória. Ao ler a última página, percebe-se que Mister Punch não existiria de outra forma, senão pelas palavras de Gaiman e pelas imagens de McKean.