Portinari: aspectos de uma biografia
Que Cândido Portinari tinha lá seus lampejos de vaidade parece não haver dúvida. Em uma reunião na casa do artista, Otto Maria Carpeaux lhe perguntou como eram a pintura e a arte na Argentina. Candinho respondeu:”- Bom, lá eles não têm um pintor como eu. Agora, os outros são muito melhores que os daqui”. Foram muitas risadas.
Que Cândido Portinari tinha lá suas humanas contradições também parece ser fato verídico. Em 1938, lecionando na Universidade do Distrito Federal, ele recomendou a seus alunos que fossem assistir a uma aula de Mário de Andrade, que ensinava história da arte. No dia seguinte, os alunos chegaram atrasados à sua sala, mas Portinari não gostou da justificativa de que estavam na aula do famoso escritor modernista. Disse ele: - Ora, história da arte. Pintura é pintar.
Que Cândido Portinari gostava de se fazer de fantasma talvez pouca gente soubesse. Mas era assim que ele, encoberto por lençóis brancos, assustava senhoras no pequeno hotel da rua du Dragon, em Paris, onde o artista fora morar após ganhar um prêmio de viagem ao estrangeiro.
Esses e muitos outros episódios da trajetória de Cândido Portinari estão nas páginas de “A vida dos grandes brasileiros”, lançamento recente da Editora Três, no volume dedicado a esse nosso gênio da pintura.
O texto, assinado por Marcos Moreira, dedica o maior de seus capítulos à infância pobre de Portinari, na pequenina Brodósqui, no interior de São Paulo, onde o artista veio ao mundo, em 29 de dezembro de 1903, em berço dos mais humildes.
Da infância pobre, Candim, o pequeno que mancava de uma perna, guardará para sempre a tristeza de ver os retirantes chegando em busca de melhores dias, que a terra do café parecia oferecer. “Todos, homens, mulheres, crianças, pareciam mais velhos do que eram e tinham o rosto curtido pela dor, pela fome e pelo sol.” Candim não entendia aquele sofrimento. E essa gente não lhe vai sair da alma. Mais de uma década depois, quando chegou de Paris, trazia conhecimento e a determinação de pintar o seu povo.
Em Brodósqui vemos seu Batista, o pai de Portinari, vendendo fiado aos que não lhe podiam pagar, confiante em que Deus pagava dobrado aos que ajudavam os irmãos. É esse pai pobre e desambicioso, que adorava Candim, o primeiro a sentir o talento especial do filho, colocando-o para receber aulas de desenho. O pai sabia que aquelas aulas não bastavam e procura encaminhar o filho ao Rio de Janeiro, para onde o menino viaja em 1918, vindo a conquistar o Brasil e o mundo com seu inesgotável talento de pintor.
O texto fluente de Marcos Moreira vai depois conduzir o leitor pela trajetória vitoriosa de Portinari, saudada nas Américas e na Europa. Em 1942, por exemplo, o vemos nos Estados Unidos, na pintura de afrescos para a Fundação Hispânica da Biblioteca do Congresso; já em 1949, pinta o mural Tiradentes para o Colégio de Cataguases. E assim Candinho foi semeando arte a mancheias.
Impressionado com a pregação de Luís Carlos Prestes, Portinari se filiou ao Partido Comunista e se candidatou a senador por São Paulo. Ele, um inconformado, que se condoía das crianças que esmolavam, abrindo-lhes o bolso, chegou a imaginar-se político. A primeira contagem de votos lhe era favorável, mas o adversário venceu, e Candinho ganhou o apelido de “senador furtado”. O biógrafo enfatiza que nunca talvez alguém, apesar de toda sua preocupação com a justiça social, tenha ficado tão feliz com uma derrota, pois a política lhe tiraria tempo à arte.
E assim o leitor vai caminhando e saboreando a vida desse grande brasileiro. Àquela reunião de que participou Carpeaux, já aqui mencionada, o tímido poeta Carlos Drummond de Andrade também esteve presente e, depois do episódio, escreve a crônica Estive em casa de Candinho, cujo desfecho se reproduz: “Como esquecer, Candinho, tua casa de Laranjeiras? E aquelas horas em que eu, calado e gauche, sentia em mim, sem confessá-lo o orgulho de ser do teu tempo, da tua companhia...” Orgulho que certamente sentiram Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Murilo Mendes e todos os demais presentes.
Orgulho que é hoje dos brasileiros na celebração do centenário do pintor de Brodósqui... O biógrafo, em oportuno desfecho, conclui lembrando que a maior homenagem a Portinari certamente será a conservação de seus murais, quadros e desenhos, preservando-os da destruição. (Texto escrito em 2004)