Fantasia e Avesso
Uma das coisas boas da minha vida de leitora é a possibilidade (o direito, segundo Pennac) de reler. Se alguém me perguntar por que reler algo se tantas novidades há ao nosso alcance, eu direi que releio o que de fato gosto e quero relembrar algum aspecto, algum detalhe na escrita que me marcou ou chamou a atenção.
Minutos antes de dormir e vou ler ou reler alguma coisa, hábito bom dos tempos insones. A mão passeia pela estante, juntamente com olhar e o estado da alma para escolher a companhia. A leveza é o critério principal e pensando nisso escolhi por esses dias Fantasia e Avesso, livro maravilhoso de Arriete Vilela, escritora premiadíssima e minha conterrânea, prosa poética da melhor qualidade.
Fantasia e Avesso é ele todo poesia em prosa. Aliás, voltei no tempo e me vi lendo Para Além do Avesso da Corda, o primeiro livro da autora. Aos 17 anos, me perguntei: “-É possível se escrever assim?”
Vi que era quando li outros. Aprendo sempre e muito quando leio seus escritos e não raro, fragmentos de seus poemas ou de alguma prosa poética são epígrafes dos meus textos. Arriete brinca com as palavras e com elas esculpe na imaginação de cada leitor e leitora luminosas imagens.
Na prosa e na poesia de Arriete a palavra jorra plena, sedutora. Especialmente em Fantasia e Avesso, a palavra parece sangrar de tão viva, parece amolecer, de tão suave, parece salivar, de tão doce.
O primeiro texto de Fantasia e Avesso diz bem o que nos espera ao longo de todo o livro.
Fantasia e Avesso (I) - Arriete Vilela
Amar é mudar a alma de casa- Mário Quintana
A fantasia, amor. O avesso dos fatos, a realidade fibrosa, a palavra à espera. A saudade enovelando o coração, o mesmo segredo, semente viva. Os olhos no mar cheio de pedras, o clímax e a dor do desejo. A harmonia em todos os caminhos, mesmo os tortuosos. A fantasia, amor, não te esqueças de que quero ser a tua fantasia, a outra dimensão, o avesso do teu cotidiano. A paixão é um dom e nos privilegia - e eu te amo porque tua alma é claricíclica e és paixão feito rochedo submerso e feito artemísia e feito flocos de algodão e feito bolero. O mundo e as coisas, borboleta e presságio, abelha caída no vermelho da flor. A palavra, despojada e oculta, transmudando o castanho da vida; a palavra, atitude permanente, ímpeto precioso e desordenado, gracioso e alegre. A palavra: gangorra e fantasia, significação na tessitura da alma. A palavra, amor, na noite sem estrelas, na solidão fingindo-se distraída, no vôo despretensioso da gaivota cantada no violão da amiga vinda das rendas. A palavra intuitiva, assim como todas as minhas deduções, que nunca foram lógicas. A ternura no abraço de todos os santos baianos, dos anjos barrocos, dos nômades e dos vulneráveis. Alguma coisa minha que já se colou à tua vida, estampa no teu coração, figurinha no álbum. O instante agora é amplo e potente: crio um mundo, que é meu e teu, granítico e atravessado de eucaliptos. A fantasia, amor. O avesso da palavra que crepita e que é êxtase silencioso e secreto. O avesso do pensamento que estranha toda a espécie humana feita à imagem e semelhança de Deus. O avesso, amor, das minhas próprias incoerências e das tuas grandes compreensões. Tenho estado na plenitude lúcida da felicidade, que me surpreende como se fora um milagre. O avesso do teu olho boiando na tarde dourada, boiando no mar que tu me deste, etcétera e tal. O avesso da flor, da raiz, das nuances e do vazio. A fantasia e o avesso. Hemorrágica, essa minha paixão. Excedente, voraz, orgânica, genial e geniosa. Uma tela branca, todo dia. Tu me escreves poemas na alma e não sabes a tortura de se ter poemas escritos na própria alma; tu me pintas o longe e o místico nos olhos e não sabes a loucura de se ter o desconhecido nos próprios olhos. Tu, amor, colhes-me o sangue e o bebes com a inocência de uma criança que toma leite. Pois tu não avalias o quanto a oferenda que sou te pulsa na breve história que és. Porque somos todos uma breve história – e quanto mais avessada, melhor. A fantasia, não te esqueças. A terra humosa, o ritual do incenso posto ao lado, as bolinhas no lençol de águas brancas com que te brinco e te cubro. O chão, animais entorpecidos de tanto amar. O desperdício das horas em que és ouro-sol para outras expectativas. Yo te quiero siempre. No tango, o salão iluminado de muitos olhos; na taberna e no delírio que me causa o Bolero de Ravel. Yo te quiero, amor, mesmo quando és ianque, os braços cheios de promessas vindas da floricultura. O avesso e a fantasia. O grito que é sussurro, gozo e conquista, gozo e sangue, águas calmas desembocando na fúria dos sete mares. O avesso da contemplação de tudo isso. O avesso da opacidade dos outros, dos golpes dados à toa, das ondulações na angústia que me toma toda vez que falo secretas andanças. O avesso da bolha de sabão seguida pelos olhos miúdos e gananciosos de toda a gente que é atraída pelas honrarias, submetida à tirania das pessoas mais fortes: um avesso que fatalmente espocará inchado feito um cogumelo doente. O avesso do feio, do sórdido, do coração endurecido e vampiresco. O fio da meada, amor, sempre perdido e sempre retomado. O sabor de mel nas coisas quando estás por perto. A nota musical caindo na leveza da manhã e, remotamente, no rio em que banhava os meus sonhos de menina. Eu já te intuía e tudo o que foi escrito já era teu. Aliás: eu inteira sou tua, no avesso e na fantasia da vida...
(In: FANTASIA E AVESSO)
Mais da autora
ARRIETE VILELA
Alagoana, de Marechal Deodoro. Mestra em Literatura Brasileira. Professora da UFAL aposentada. Publicou Para além do avesso da corda (1980), Farpa (1988), A rede do anjo (1992), Fantasia e avesso (1994), O ócio dos anjos ignorados (1995), Dos destroços, o resgate (1999) e Vadios afetos (1999), entre outros.
Visitem o blog da autora:
http://apoesianasentrelinhasdavida.blogspot.com/
Nos encontramos várias vezes nos corredores da Bienal Alagoana do Livro de 2011
No relançamento de várias de suas obras na Bienal
Uma das coisas boas da minha vida de leitora é a possibilidade (o direito, segundo Pennac) de reler. Se alguém me perguntar por que reler algo se tantas novidades há ao nosso alcance, eu direi que releio o que de fato gosto e quero relembrar algum aspecto, algum detalhe na escrita que me marcou ou chamou a atenção.
Minutos antes de dormir e vou ler ou reler alguma coisa, hábito bom dos tempos insones. A mão passeia pela estante, juntamente com olhar e o estado da alma para escolher a companhia. A leveza é o critério principal e pensando nisso escolhi por esses dias Fantasia e Avesso, livro maravilhoso de Arriete Vilela, escritora premiadíssima e minha conterrânea, prosa poética da melhor qualidade.
Fantasia e Avesso é ele todo poesia em prosa. Aliás, voltei no tempo e me vi lendo Para Além do Avesso da Corda, o primeiro livro da autora. Aos 17 anos, me perguntei: “-É possível se escrever assim?”
Vi que era quando li outros. Aprendo sempre e muito quando leio seus escritos e não raro, fragmentos de seus poemas ou de alguma prosa poética são epígrafes dos meus textos. Arriete brinca com as palavras e com elas esculpe na imaginação de cada leitor e leitora luminosas imagens.
Na prosa e na poesia de Arriete a palavra jorra plena, sedutora. Especialmente em Fantasia e Avesso, a palavra parece sangrar de tão viva, parece amolecer, de tão suave, parece salivar, de tão doce.
O primeiro texto de Fantasia e Avesso diz bem o que nos espera ao longo de todo o livro.
Fantasia e Avesso (I) - Arriete Vilela
Amar é mudar a alma de casa- Mário Quintana
A fantasia, amor. O avesso dos fatos, a realidade fibrosa, a palavra à espera. A saudade enovelando o coração, o mesmo segredo, semente viva. Os olhos no mar cheio de pedras, o clímax e a dor do desejo. A harmonia em todos os caminhos, mesmo os tortuosos. A fantasia, amor, não te esqueças de que quero ser a tua fantasia, a outra dimensão, o avesso do teu cotidiano. A paixão é um dom e nos privilegia - e eu te amo porque tua alma é claricíclica e és paixão feito rochedo submerso e feito artemísia e feito flocos de algodão e feito bolero. O mundo e as coisas, borboleta e presságio, abelha caída no vermelho da flor. A palavra, despojada e oculta, transmudando o castanho da vida; a palavra, atitude permanente, ímpeto precioso e desordenado, gracioso e alegre. A palavra: gangorra e fantasia, significação na tessitura da alma. A palavra, amor, na noite sem estrelas, na solidão fingindo-se distraída, no vôo despretensioso da gaivota cantada no violão da amiga vinda das rendas. A palavra intuitiva, assim como todas as minhas deduções, que nunca foram lógicas. A ternura no abraço de todos os santos baianos, dos anjos barrocos, dos nômades e dos vulneráveis. Alguma coisa minha que já se colou à tua vida, estampa no teu coração, figurinha no álbum. O instante agora é amplo e potente: crio um mundo, que é meu e teu, granítico e atravessado de eucaliptos. A fantasia, amor. O avesso da palavra que crepita e que é êxtase silencioso e secreto. O avesso do pensamento que estranha toda a espécie humana feita à imagem e semelhança de Deus. O avesso, amor, das minhas próprias incoerências e das tuas grandes compreensões. Tenho estado na plenitude lúcida da felicidade, que me surpreende como se fora um milagre. O avesso do teu olho boiando na tarde dourada, boiando no mar que tu me deste, etcétera e tal. O avesso da flor, da raiz, das nuances e do vazio. A fantasia e o avesso. Hemorrágica, essa minha paixão. Excedente, voraz, orgânica, genial e geniosa. Uma tela branca, todo dia. Tu me escreves poemas na alma e não sabes a tortura de se ter poemas escritos na própria alma; tu me pintas o longe e o místico nos olhos e não sabes a loucura de se ter o desconhecido nos próprios olhos. Tu, amor, colhes-me o sangue e o bebes com a inocência de uma criança que toma leite. Pois tu não avalias o quanto a oferenda que sou te pulsa na breve história que és. Porque somos todos uma breve história – e quanto mais avessada, melhor. A fantasia, não te esqueças. A terra humosa, o ritual do incenso posto ao lado, as bolinhas no lençol de águas brancas com que te brinco e te cubro. O chão, animais entorpecidos de tanto amar. O desperdício das horas em que és ouro-sol para outras expectativas. Yo te quiero siempre. No tango, o salão iluminado de muitos olhos; na taberna e no delírio que me causa o Bolero de Ravel. Yo te quiero, amor, mesmo quando és ianque, os braços cheios de promessas vindas da floricultura. O avesso e a fantasia. O grito que é sussurro, gozo e conquista, gozo e sangue, águas calmas desembocando na fúria dos sete mares. O avesso da contemplação de tudo isso. O avesso da opacidade dos outros, dos golpes dados à toa, das ondulações na angústia que me toma toda vez que falo secretas andanças. O avesso da bolha de sabão seguida pelos olhos miúdos e gananciosos de toda a gente que é atraída pelas honrarias, submetida à tirania das pessoas mais fortes: um avesso que fatalmente espocará inchado feito um cogumelo doente. O avesso do feio, do sórdido, do coração endurecido e vampiresco. O fio da meada, amor, sempre perdido e sempre retomado. O sabor de mel nas coisas quando estás por perto. A nota musical caindo na leveza da manhã e, remotamente, no rio em que banhava os meus sonhos de menina. Eu já te intuía e tudo o que foi escrito já era teu. Aliás: eu inteira sou tua, no avesso e na fantasia da vida...
(In: FANTASIA E AVESSO)
Mais da autora
ARRIETE VILELA
Alagoana, de Marechal Deodoro. Mestra em Literatura Brasileira. Professora da UFAL aposentada. Publicou Para além do avesso da corda (1980), Farpa (1988), A rede do anjo (1992), Fantasia e avesso (1994), O ócio dos anjos ignorados (1995), Dos destroços, o resgate (1999) e Vadios afetos (1999), entre outros.
Visitem o blog da autora:
http://apoesianasentrelinhasdavida.blogspot.com/
Nos encontramos várias vezes nos corredores da Bienal Alagoana do Livro de 2011
No relançamento de várias de suas obras na Bienal