Do verbo carpinejar
Houve o dia em que algum crítico literário, provavelmente pensando em Rubem Braga, disse que a crônica era a poesia do cotidiano. Alguém foi mais além e reparou que havia semelhanças entre ela e o poema em prosa. Fabrício Carpinejar parece ter concordado com tudo isso, pois não deixa de ser poeta no meio das suas crônicas. Lendo "Canalha!", que ganhou até Jabuti, percebo que boa parte de suas frases, e principalmente de suas conclusões, poderiam muito bem ser versos - têm estrutura, dimensão estética e exageros suficientes para isso.
E ainda por cima têm o amor como o tema mais frequente. Carpinejar é um conselheiro sentimental, mas sem a mesma graça e humor de um Antônio Maria. Sua sinceridade não deixa muito espaço para a ironia - ingrediente tão valorizado na crônica como a poesia. Mas eis o seu mérito: ele não teme parecer infantil, sensível, romântico e sentimental - é homem, tem cérebro masculino e não esta interessado em propagar a sua virilidade. Nem por isso ele a deixa: apenas tem coragem de mostrar que também pode e gosta de se emocionar.
Há momentos em que parece um Artur da Távola de revista adolescente - pontuando, aqui e ali, verdades e sutilezas dos nossos relacionamentos, mas preferindo largamente falar sobre os romances, a vida a dois, o cotidiano de um casal. Isso, depois de um certo tempo, cansa - a mim, pelo menos. Não hesitei em pular algumas frases e parágrafos. É possível que o problema esteja comigo (não vivo hoje uma vida a dois). Mas talvez não seja apenas por isso que eu enxerguei links mais ou menos forçados no começo de algumas crônicas: episódios que estão lá apenas para introduzir uma discussão sobre relacionamento.
Às vezes lembra um Paulo Mendes Campos fazendo suas experiências formais. É um jeito literário de fazer crônica. Carpinejar vem de uma geração que já não precisa mais trabalhar em jornal para escrever seus textos. Pode mandar seus textos de casa. Não vive a redação, o ambiente do jornal. Ou seja: está naturalmente mais inclinado a fazer literatura do que jornalismo. Mas deste último, herda a realidade - não há ficção - e a velha missão de colocar em evidência coisas do dia-a-dia que passariam despercebidas sem a ação do cronista - a tampinha do leite, o guarda-sol, unhas, meias brancas, pantufas.
É curioso que Luis Fernando Veríssimo esteja lançando obras com 41 crônicas, enquanto que livros como "Canalha!" costumam contar com o triplo disso. Talvez aconteça o mesmo que Xico Sá diz, na orelha do livro, acontecer com os feios: ao invés de vencer por nocaute, tentam a vitória por pontos. Quem sabe Carpinejar não esteja fazendo calhamaços de crônicas apenas para vencer por pontos? O raio é que quase consegue. A partir da página 200, mais ou menos, ou as suas crônicas ficam melhores, e os episódios do casal mais singelos, as reflexões mais profundas, ou - bem possível - a gente se acostumou com o cronista.
Outro dia eu reparei que os meus cronistas favoritos que ainda escrevem já passaram dos 60 anos - e vários deles passaram dos 70. Carpinejar ainda está na casa dos 30. Não sei como continuará escrevendo, e também não sei como continuarei lendo o que escreve. Mas por enquanto não será ele o nome da nova geração que abraçarei como o futuro do gênero. Seu estilo provavelmente representa uma tendência na crônica, só que ela ainda não me conquistou. Carpinejar tem muitos fãs, e também tenho um certo receio de que façam com ele o mesmo que fazem com Clarice e Caio Fernando Abreu.
Não pude deixar de reparar também: é possível alguém escrever um livro chamado Canalha! sem citar Nelson Rodrigues.