Que segredos ainda guarda o Dom Casmurro de Machado de Assis?
“Olhar de cigana oblíqua e dissimulada...” Esta é a comparação que marca e define a personagem mais conhecida das Artes Literárias, Capitu. Criação do maior escritor brasileiro, Machado de Assis, a sedutora personagem transita por décadas pelas páginas do romance Dom Casmurro, impassível as especulações de gerações de leitores acerca de sua suposta traição.
O enredo do clássico literário retrata a história de amor entre os personagens, Bento Santiago e Capitu. Romance que se inicia na infância e se concretiza na maturidade com o enlace do casal e o nascimento do primeiro filho, Ezequiel.
A partir do nascimento do primogênito, começam a pairar na mente inquieta de Bentinho as primeiras dúvidas quanto à paternidade do menino. Isto porque transitava em meio à família, a presença sedutora do amigo de infância do casal, Escobar.
E é pela similaridade entre o olhar de Ezequiel e Escobar, percebida pela visão enciumada de Bentinho, que se instala a dúvida sobre a fidelidade de Capitu. Essa dúvida vai acompanhar tragicamente a história dos personagens até o último capítulo e, saltar das páginas ficcionais para as salas de aulas, mesas de bares e outros tantos círculos de estudos e bate-papo.
Isso se deve, obviamente, à maestria de Machado na escolha do personagem Bentinho para portador e narrador das memórias do triângulo mais famoso da literatura brasileira.
Ao escolher a perspectiva de Bentinho para desenvolver o enredo, Machado cria o contexto inóspito que desestabilizará quaisquer tentativas de resolver definitivamente a dúvida sobre a suposta traição de Capitu.
Esta impossibilidade deve-se, principalmente, a natureza ambígua, instável e insegura de Bentinho, características que lançarão dúvidas sobre a veracidade de suas percepções e, conseqüentemente, de seus relatos, que transitarão entre fato e ficção, sendo esta última, conseqüência indiscutível do ciúme doentio que carrega.
Diante das inúmeras leituras feitas sobre Dom Casmurro, não cabe mais seguir pelo terreno da obviedade, tentando decifrar o enigma da traição. Hoje o romance oferece outros elementos de análise que o transformam em precursor da literatura pós-moderna.
Isto é facilmente observável na construção da narrativa que transgride uma perspectiva linear, permitindo uma leitura atemporal e passível a ressignificação de sentidos. Está presente também na escolha da temática do enredo, visto que Dom Casmurro está mais para um tratado sobre o ciúme que um reles romance romântico. E para falar categoricamente sobre o assunto, Machado opta por seguir o viés da prosa em detrimento do discurso monocromático e científico.
Outro elemento pós-moderno se evidencia quando o autor evoca a subjetividade humana, representada pela dúvida, como a verdadeira protagonista do enredo e desloca Bento e Capitu para um segundo plano colaborativo, como receptáculos da essência humana.
Tais estratégias transcendem as ultrapassadas fórmulas de criar que estereotipam os personagens e os distanciam da natureza complexa dos seres de carne e osso. Bentinho, por exemplo, como um casmurro qualquer, é atormentado pelas mazelas próprias da existência e tem seu psiquismo perturbado, o que o leva a cambalear para a compreensão insana da realidade.
Figura do anti-herói, do anti-galã, Bento é a concretização do anti-maniqueísmo, assim como os demais personagens que não se afiguram nas polarizações do bem ou mal, perspectiva comum utilizada na época por outros autores.
Outro aspecto importante a ser agregado ao caráter pós-moderno de Machado, diz respeito à constituição dada a personagem feminina. Capitu é o contraponto de Bento e, ressalte-se, criada e descrita por um homem e narrada pela persona de outro. Uma mulher extremamente atraente. Muito mais pela inteligência e esperteza que propriamente por sua beleza, como sugerem algumas descrições da personagem. Aos olhos de Machado, ela extrapola a perspectiva de mulher etérea e frágil, idealizada pelo Romantismo.
Já o discurso de Machado é permeado de ironia, senso de humor e sarcasmo. Além disso, o autor “prende” a atenção do leitor por meio de intervenções que o instigam a permanecer ligado à narrativa.
No entanto, Machado vai além do que possa imaginar a nossa limitada capacidade de leitura.
Em Dom Casmurro, Machado propõe um diálogo com outro clássico da literatura universal, Otelo, de Willian Shakespeare. Essa intertextualidade acontece por meio da temática, o ciúme, que destrói em ambas as histórias os supostos triângulos amorosos. Em Otelo, Desdêmona é morta por Otelo tomado por violento surto de ciúme. Ciúme este, provocado por Iago, seu 2º tenente. Iago era a encarnação do mal, representado pela inveja e o próprio ciúme. Já o triangulo de amor e amizade formado por Bento, Capitu e Escobar é destruído também pelo ciúme de Bento e, possivelmente, pela inveja sentida por ele da relação de amizade de sua mulher com Escobar e a semelhança deste com seu filho Ezequiel. Mas fica uma pergunta, quase enigma: onde está o Iago em Dom Casmurro? Dentro do próprio Bento Sant IAGO. Surpreendente, não?
Mas, as surpresas de Machado não param por aí, ainda em relação aos nomes, parece que o autor gostava de brincar com nomes e transformá-los em receptáculos de sentidos. Veja o que ele faz com o nome da protagonista de Dom Casmurro. Capitu vem do latim, capitolium, relativa a capitólio, que em Roma era o lugar onde ficava o templo de Júpiter e outros deuses que tinham, por meio da arte e astúcia, o poder de cegar, ensurdecer e encantar.
Qualquer semelhança com a personagem de Machado é mera coincidência. Ou não.