Desaparecimento de Itapura / Barrageiros - do livro Vila Piloto de Jupiá

DESAPARECIMENTO DE ITAPURA

          O propósito da existência de Vila Piloto vai chegando a seu termo. A barragem de Jupiá já não demanda mão-de-obra tão numerosa. Há outras frentes de trabalho a carecerem de braços. Há estradas a serem abertas, pontes precisam ser construídas ou remodeladas, áreas devem ser desapropriadas e desmatadas, urge ultimar a edificação de prédios residenciais e públicos para a mudança da sede de um município no caminho das águas, que não tardam a subir. Já as operações para o represamento do rio foram efetuadas. Centenas de trabalhadores de todos os setores da obra e visitantes de cidades próximas plantaram-se ao longo dos aterros para presenciarem esse evento marcante. Dias antes, uma brecha tinha sido aberta na ensecadeira acima da barragem para que a água alagasse devagar a área da casa das máquinas e se tornasse íntima do concreto até então exposto ao sol tropical. Encerrado o tratamento do concreto e estabelecido o equilíbrio da pressão dentro e fora da ensecadeira, uma nova fenda foi cavada na jusante, para permitir o escoamento mínimo necessário à vida ribeirinha rio abaixo. Ao mesmo tempo, fecharam-se as comportas. O lago de Jupiá começa a nascer. As águas que descem do Rio Grande e do Rio Paranaíba, formadores do Rio Paraná, inundam metro a metro, centenas de alqueires de terra em ambas as margens, ampliando-as numa baía fenomenal. A paisagem que tinha existido até então, talvez por milhões de anos, silenciosa e definitivamente vai ganhando novos contornos. O salto de Itapura se cala. A flora submerge. Bicho tem que fugir. Gente tem que desocupar a área. Itapura vai afogar-se. Do centenário povoado, antiga colônia militar, esquecido na quietude do ângulo formado pelos rios Tietê e Paraná, só restará o velho casarão, o Palácio de Dom Pedro II, que é como os locais se referem ao histórico posto avançado do exército brasileiro. A torre da igreja teima em resistir. O campanário onde estivera o sino, permanece acima da superfície convertido em arca de pequenos animais desesperados com o fim iminente a implorarem socorro como náufragos agonizantes. Os moradores da cidade, já instalados em suas novas residências, erguidas bem acima da cota máxima do lago, acompanham na tarde derradeira, de olhos chorosos, o desaparecimento do último resquício da velha comunidade: a cruz de Cristo. Por alguns instantes o topo de sua haste vertical, marca um ponto negro no centro da enorme gema vermelha que afunda serenamente do outro lado do infindável espelho d’água.

BARRAGEIROS

          À medida que os meses do ano de sessenta e oito se consomem em milhares de horas de incessante e profícua labuta, Vila Piloto de Jupiá transforma-se paulatinamente em uma cidade dormitório. A cada manhã, hordas de operários se movimentam feito formigas-correição e se alinham ao longo das avenidas A e G, aguardando a condução para o imenso canteiro de obras que é Ilha Solteira. O deslocamento diário para construir a nova cidade e a segunda maior hidrelétrica do mundo, tornou-se rotina na dura vida dos barrageiros. Ao pôr do sol, exaustos, impacientes, os operários, portando suas sacolas puídas, novamente enfileiram-se junto às placas espetadas na terra vermelha com a indicação das cidades de Pereira Barreto, Andradina, Castilho, Três Lagoas e Vila Piloto. Aboletam-se em dezenas de caminhões e ônibus, ansiosos de seus lares e do merecido repouso. Severino, o chefe de armação, rendeu graças a Deus quando recebeu ordem de se mudar com esposa e filhos para Ilha Solteira, juntos com as primeiras vinte famílias a ocuparem o caótico acampamento, após tantas idas e vindas. Em Vila Piloto, as casas de pinho, já em péssimo estado de conservação, ainda iriam abrigar por algum tempo, gente que fora relegada às favelas formadas nas cidades circunvizinhas e que agora realizarão o sonho de morar ali, de certo modo, aliviando as prefeituras dos incômodos problemas socioeconômicos indiretamente gerados pela administração das Centrais Elétricas de São Paulo. Dentre as famílias que deixavam Vila Piloto estava também a de Jesuíno. Excepcionalmente, não rumavam para o novo núcleo habitacional. A mudança seguia para Andradina, para uma casinha modesta, semi-acabada, do lado mais pobre da linha de trem. Dos sete membros da família Souza que haviam chegado à Vila Piloto, naquele remoto sábado de março, apenas quatro deles; Domicília, Francisca, Alípio e João Deodato; iriam habitar a nova casa.

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HFigueira
Enviado por HFigueira em 18/11/2011
Reeditado em 17/12/2018
Código do texto: T3343062
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