Um inimigo do povo
Foi ao Mário Quintana que um dia perguntaram – acho inclusive que foi uma professora – o que deveria se ler para entender Shakespeare. E o Mário respondeu: “Shakespeare”. Lembrei-me dessa história porque estive para pegar uma edição da peça “Um Inimigo do Povo”, de Henrik Ibsen, cujas primeiras setenta ou oitenta páginas ofereciam um estudo do Otto Maria Carpeaux sobre a obra, a vida do autor, e se duvidar até sobre o teatro escandinavo no tempo dos vikings. Pois bem. Eu estaria lendo essa introdução até agora se houvesse escolhido essa edição. Ao contrário, preferi uma outra, muito mais enxuta: um pocket – que, apesar do nome, não cabe no meu bolso.
Ora, eu não tenho nada contra estudos como o de Carpeaux. Em geral, até gosto de ler o que se fala sobre os autores dos livros que leio. Mas tenho percebido ultimamente que me sinto incomodado durante essas longas introduções. Bolas, eu quero que comece logo a história. Acho muito bacana situarem a obra no tempo e no espaço. Acho, inclusive, que é bom termos algumas informações preliminares – eu disse preliminares – sobre ela antes de começarmos a ler. Mas se eu resolvo ler todo o estudo de Carpeaux, eu estou praticamente dispensado de ler o livro propriamente dito. Depois de 80 páginas sobre uma obra, eu já sou capaz de emitir uma série de considerações sobre ela. E quando eu começar a história, tudo que posso esperar encontrar é o Carpeaux sendo confrontado.
Bom. Mas queima-te, língua! Aqui estou eu fazendo toda uma longa introdução. Eu apenas queria dizer que li o livro do Henrik Ibsen – personagem que me foi apresentado pelo Nelson Rodrigues. E digo por quê me interessou lê-lo: foi porque costumam me incomodar os conflitos entre o individual e o coletivo – e foi o que me pareceu que havia nessa peça. Aliás, não sou de ler teatro. Li Hamlet e olhe lá. Na infância, eu gostava das peças de teatro infantil publicadas na Família Cristã. E só. Mas enfim. Fui ler o Ibsen.
De início, pareceu-me que a peça havia sido escrita há umas duas semanas. Talvez inspirada na invasão da reitoria por alunos da USP. Ou até mesmo no Rafinha Bastos. Atual, de todo forma. É claro que uma peça famosa como essa já deve ter rendido um bom punhado de reflexões, e portanto eu não corro o risco de falar algo novo. Mas também eu me vi espantado com a hipocrisia dos personagens – todos bastante interessados em servir unicamente a opinião pública. Nada muito diferente de hoje: vivemos criando e descriando unanimidades de acordo com o vento da opinião pública. Infeliz é o indivíduo que tenta remar contra ela. Terá que enfrentar o poder oficial e o poder da imprensa – duas entidades que, quando querem, transformam vinho em água, um visionário em um cego.
É o tipo de livro que eu recomendaria para alunos de jornalismo – garanto que será muito mais útil do que, por exemplo, o Manual de Redação do Estado de São Paulo. Porque também os jornais lidam o tempo inteiro com a opinião pública – mais do que isso, eles a servem. E todas as artimanhas que usam ao longo do processo jornalístico não têm outro objetivo senão o de agradá-la. Tentam puxá-la para cá, virá-la pra lá, mas, ao menor sinal de sua insatisfação, os jornais recuam – dependem dela, afinal.
E eu apenas não falo mais sobre os personagens, suas contradições e as questões levantadas, porque provavelmente o Otto Maria Carpeaux já fez isso. Agora talvez eu esteja em condições de lê-lo. Ao leitor que ainda não leu “Um Inimigo do Povo”, sugiro que o faça – é um livro fino que trará algumas inquietações boas. Assim diz a opinião pública.