O LIVRO DE CESÁRIO VERDE
Numa espécie de limbo literário estão alguns poetas que partiram cedo. No plano da infinita existência residem, resistindo ao tempo, as obras por eles deixadas. Para Cesário Verde a velha máxima de que pela obra se conhece o autor, tem mais verdade. Entre os poetas sensíveis à estética realista-parnasiana ele se configura pós morte, quando lhe fora publicada a obra cujo talento poucos em vida, e ao seu tempo, conheceram.
Coube a Silva Pinto, fiel e devotado amigo de Cesário, a publicação das poesias coligidas em 1901, em cuja obra, por ele magnífica e emocionalmente prefaciada, acresce uma não menos bela dedicatória a Jorge Verde, irmão do poeta.
Aqui deponho em suas mãos e debaixo dos meus lábios o livro de seu irmão. A minha "obra" no dia em que ele saiu da nossa doce amizade para a nossa terrível amargura: morri, meu querido Jorge – deixe-me chamar assim ao irmão do meu querido Cesário; - morri para as alegrias do trabalho, para as esperanças nos enganos doces! O desmoronamento fez-se, a um tempo, no espírito e no coração! Dos restos do passado deixe-me oferecer-lhe a dedicação extremada; peça-me o sacrifício; e, quando no decorrer da vida, se lembrar de nós, tenha este pensamento consolador: - A grande alma do meu irmão soube impor-se a um coração endurecido; e tenha estoutro pensamento: - Mas não estava de todo endurecido o coração que soube amá-la.
Adeus, meu querido Jorge.
S. P.
Prefácio e dedicatória constituem preâmbulos à parte. Mas de tão rara beleza quanto íntimo o sentimento de perda neles externado. Impossível não envolver-se o leitor com aquelas páginas e a elas não voltar seguidamente, já a certa altura dos poemas de Cesário. Silva Pinto o acompanhou desde o Curso de Letras. E a vida que os uniu é, nesse prólogo do eterno amigo, a síntese de um sofrimento pela morte que os separou. Único é o livro de Cesário Verde, obra com a qual o seu compilador Silva Pinto, ao prestar-lhe a última homenagem, deu-lhe também o nome do amigo autor: O Livro de Cesário Verde.
Não subestimaria o leitor julgando-o nada conhecer de Cesário. No entanto, por ser obra rara, não por ser única, mas especial e literariamente valiosa, quem dele algo conhece tem a minha reverência. E se alguém não o leu, um pouco aqui vai também como prólogo à leitura d' O Livro de Cesário Verde:
CONTRARIEDADES
(Fragmentos)
Eu hoje estou cruel, frenético exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
Consecutivamente.
Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente os ácidos, os gumes
E os ângulos agudos.
HEROÍSMOS
Eu temo muito o mar, o mar enorme,
Solene, enraivecido, turbulento,
Erguido em vagalhões, rugindo ao vento;
O mar sublime, o mar que nunca dorme.
Eu temo o largo mar rebelde, informe,
De vítimas famélico, sedento,
E creio ouvir em cada seu lamento
Os ruídos dum túmulo disforme.
Contudo, num barquinho transparente,
No seu dorso feroz vou blasonar,
Tufada a vela e n'água quase assente,
E ouvindo muito ao perto o seu bramar,
Eu rindo, sem cuidados, simplesmente,
Escarro, com desdém, no grande mar!
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José Joaquim Cesário Verde
Lisboa, 1855.02.25 / 1886.07.19
EDITORIAL MINERVA- LISBOA.
Numa espécie de limbo literário estão alguns poetas que partiram cedo. No plano da infinita existência residem, resistindo ao tempo, as obras por eles deixadas. Para Cesário Verde a velha máxima de que pela obra se conhece o autor, tem mais verdade. Entre os poetas sensíveis à estética realista-parnasiana ele se configura pós morte, quando lhe fora publicada a obra cujo talento poucos em vida, e ao seu tempo, conheceram.
Coube a Silva Pinto, fiel e devotado amigo de Cesário, a publicação das poesias coligidas em 1901, em cuja obra, por ele magnífica e emocionalmente prefaciada, acresce uma não menos bela dedicatória a Jorge Verde, irmão do poeta.
Aqui deponho em suas mãos e debaixo dos meus lábios o livro de seu irmão. A minha "obra" no dia em que ele saiu da nossa doce amizade para a nossa terrível amargura: morri, meu querido Jorge – deixe-me chamar assim ao irmão do meu querido Cesário; - morri para as alegrias do trabalho, para as esperanças nos enganos doces! O desmoronamento fez-se, a um tempo, no espírito e no coração! Dos restos do passado deixe-me oferecer-lhe a dedicação extremada; peça-me o sacrifício; e, quando no decorrer da vida, se lembrar de nós, tenha este pensamento consolador: - A grande alma do meu irmão soube impor-se a um coração endurecido; e tenha estoutro pensamento: - Mas não estava de todo endurecido o coração que soube amá-la.
Adeus, meu querido Jorge.
S. P.
Prefácio e dedicatória constituem preâmbulos à parte. Mas de tão rara beleza quanto íntimo o sentimento de perda neles externado. Impossível não envolver-se o leitor com aquelas páginas e a elas não voltar seguidamente, já a certa altura dos poemas de Cesário. Silva Pinto o acompanhou desde o Curso de Letras. E a vida que os uniu é, nesse prólogo do eterno amigo, a síntese de um sofrimento pela morte que os separou. Único é o livro de Cesário Verde, obra com a qual o seu compilador Silva Pinto, ao prestar-lhe a última homenagem, deu-lhe também o nome do amigo autor: O Livro de Cesário Verde.
Não subestimaria o leitor julgando-o nada conhecer de Cesário. No entanto, por ser obra rara, não por ser única, mas especial e literariamente valiosa, quem dele algo conhece tem a minha reverência. E se alguém não o leu, um pouco aqui vai também como prólogo à leitura d' O Livro de Cesário Verde:
CONTRARIEDADES
(Fragmentos)
Eu hoje estou cruel, frenético exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
Consecutivamente.
Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente os ácidos, os gumes
E os ângulos agudos.
HEROÍSMOS
Eu temo muito o mar, o mar enorme,
Solene, enraivecido, turbulento,
Erguido em vagalhões, rugindo ao vento;
O mar sublime, o mar que nunca dorme.
Eu temo o largo mar rebelde, informe,
De vítimas famélico, sedento,
E creio ouvir em cada seu lamento
Os ruídos dum túmulo disforme.
Contudo, num barquinho transparente,
No seu dorso feroz vou blasonar,
Tufada a vela e n'água quase assente,
E ouvindo muito ao perto o seu bramar,
Eu rindo, sem cuidados, simplesmente,
Escarro, com desdém, no grande mar!
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José Joaquim Cesário Verde
Lisboa, 1855.02.25 / 1886.07.19
EDITORIAL MINERVA- LISBOA.