A casa de vidro
Miguel Sanches Neto lê mais do que escreve – e não escreve uma coisa só, mas, como Leminski, pratica todos os gêneros provincianos. Entre eles, a crônica, publicada semanalmente em um jornal de Curitiba. É o único gênero em que Sanches não precisa alcançar um estado de indignação para poder escrever. Quando escreve um romance ou um conto, a sua literatura nunca se realiza em temperatura morna. Mas a crônica segue uma periodicidade que independe da disposição de seu autor. E, ainda assim, o gênero tem a preferência de Sanches. “A crônica é o espaço literário mais saboroso. É o gênero em que me sinto melhor”, admite.
Para o escritor, não existe distanciamento entre vida e literatura na crônica. A cumplicidade entre escritor e leitor também aumenta. “Na crônica, minha casa se torna de vidro. Todos conseguem enxergar lá dentro”. E o que eles enxergam? Aquilo que normalmente se espera de uma crônica: os assuntos aparentemente irrelevantes do cotidiano, “os pequenos nadas”, que passariam despercebidos se não fosse a ação do cronista. No caso específico de Sanches, a sua família fornece grande parte dos assuntos que aborda. O escritor, ao procurar assuntos que, semanalmente, deve transformar em crônica, lança um olhar mais intenso para a sua própria realidade. E, ao publicar seu texto, ela passa a fazer parte também da vida de seus leitores – a tal ponto que muitas pessoas lhe perguntam sobre seus filhos e sua esposa, pessoas que não conhecem senão pelas suas crônicas.
Mas apesar de abordar temas próximos e que envolvem pessoas reais, a crônica de Sanches não é livre de certas artimanhas ficcionais. “Eu não abro mão da mentira. A minha crônica tem que funcionar como literatura, e não biografia”. Embora o sentido de muitas histórias seja verdadeiro, o escritor usa a imaginação para preencher alguns detalhes daquilo que está contando. O leitor se vê confuso e não sabe mais até que ponto acreditar no que lê. E, às vezes, o cronista conduz o leitor de tal maneira que ele só descobre ao final do texto que se trata de uma mentira – como em uma crônica sobre uma casa de praia… em Ponta Grossa. Em outras vezes, no entanto, Sanches escolhe utilizar a terceira pessoa na narrativa, para mostrar abertamente que o assunto é ficcional, e não biográfico.
Pois assim foram sendo feitas as crônicas de Sanches, até que um dia – aproveitando que já havia publicado romances, e que então podia ser aceito pelo mercado editorial em outros gêneros – decidiu reuni-las sob a forma de um livro – transição geralmente problemática. “Existem crônicas que envelhecem uma semana depois de publicadas”, reconhece. Por isso, o cronista se mantém atento e seleciona para a sua coletânea apenas aqueles textos que, na sua ótica, não possuam assuntos excessivamente datados. Muitas vezes, é apenas depois de publicar o livro que o escritor percebe se fez a escolha correta. Sanches escreveu uma crônica na época das denúncias sobre o leite adulterado. Gostou do resultado e quis que fosse registrada em livro. Só depois se deu conta do equívoco: seria preciso uma nota de rodapé com pelo menos cinco linhas para poder situar o leitor.
As crônicas escolhidas são, portanto, aquelas com temática menos factual. Aquelas que falam de coisas que Sanches observa na vida reclusa que leva em Ponta Grossa. Coisas que dizem respeito à sua própria família, mas que, depois de publicadas, são vistas pelo mundo. E o mundo então se torna íntimo:
- E a família, como vai? A Juliana? A Karine? E o pequeno Antônio? Aprendeu mais alguma palavra?