O romancista fora do lugar
Um único stand em toda a Bienal do Livro de Curitiba ofereceu João Gilberto Noll para os 45 mil leitores que por lá passaram em 2009. Seus livros “Harmada” e “Hotel Atlântico” podiam ser comprados por míseros R$ 7 – praticamente nada perto dos quase R$ 50 cobrados pelas obras de Ruy Castro e Arnaldo Bloch, que também estiveram presentes na Bienal. Escolhi “Harmada” antes de descobrir que a obra está na lista de 100 Livros Essenciais da Literatura Brasileira, elaborada pela Bravo. E, mesmo sem ter começado a ler, fui ao Café Literário com o autor.
O Café estava cheio – de gente comprando comida. Gente que fazia barulho e que não sabia quem era Noll e o que ele estava fazendo ali. Embora tenha Prêmios Jabutis na carreira, o escritor não dispunha da mesma fama de um Cristóvão Tezza ou, digamos, de uma Marília Pêra. Mas pelo menos sete pessoas estavam atentas e prestavam atenção ao que ele dizia. Para elas, Noll recitou, ou declamou, ou mesmo cantou trechos de uma de suas prosas – o que deve ter aumentado o estranhamento de quem estava lá apenas para matar a fome. E quem prestava atenção e ainda não havia lido seus livros achava curioso quando Noll explicava que era um escritor da linguagem, e não do enredo. E, embora notassem sua inteligência, talvez tenham-no achado ligeiramente irritadiço – impressão que seria desfeita na mesa-redonda do dia seguinte.
Nela, Noll se uniu a Tezza e Raimundo Carrero para discutir as fronteiras entre realidade e ficção. Enquanto o debate não começava, era possível enxergar alguns livros do escritor circulando pela plateia – dessa vez bem mais numerosa. Quando perguntei a Noll sobre o tema da mesa-redonda, alguns dias antes, não entendi a sua resposta. Falava em "materialidade da língua ficcional, seu aspecto sonoro e sua sintaxe". A reinvenção do real estaria nessas características, e não na trama de seus livros. Agora eu lia “Harmada” e começava a ter uma ideia do que o escritor dizia. “Em mim, o grande pico estilístico está na sintaxe, pois ela é a pauta para se viver a musicalidade do texto, seu ritmo, andamento, seus torneios”. Tudo isso agora se tornava absurdamente claro.
Noll está tranquilo. Mantém uma expressão serena e ouve com atenção a fala de Tezza e Carrero. O público gargalha diante de piadas feitas pelos dois escritores. O semblante de Noll, no máximo, se transforma em um sorriso de boca fechada. E, quando chega a sua vez, o escritor fala como escreve: suas palavras se transformam em rebuscada e envolvente prosa poética. O roteiro não tem tanta importância como a linguagem. E, aos poucos, em frases pausadas e gestuais, ela vai relevando o estilo de Noll, um romancista que prefere ler poesia.
“Sou um romancista fora do lugar”, admite. Escreve sem saber onde vai chegar – compara a parte narrativa dos seus textos com a linguagem do cinema. Ao terminar de escrever um livro, refaz todo o seu início, pois, fatalmente, estará com linguagem diversa do restante da obra. Recentemente, descobriu que os protagonistas de seus livros são a mesma pessoa – e ela não é o autor, mas alguém cuja sobrevivência dentro de Noll é vital. Ultimamente, os períodos em seus livros estão mais longos, como se quisessem dizer tudo em um único fôlego. “É como se eu adiasse o fim do ponto gráfico, e fosse montando frases construtoras de simultaneidades”. Esse é o desejo de uma modernidade que, para Noll, idolatra a pressa e a urgência.
Mas o mundo teve calma para ouvi-lo e, ao final, parece ter gostado do resultado. A mesa-redonda foi encerrada e um Noll simpático e com poucas palavras começou a distribuir autógrafos para aqueles que o conheciam. Os outros saíram, mas pude encontrar alguns deles conversando. “Gostei do segundo. Ele falou coisas que fazem a gente pensar. João Gilberto Noll. Vou pesquisar sobre esse cara na internet”.
O romancista estava no lugar certo.