DIAS CONTADOS - Livro de Contos de EUNICE ARRUDA
Por Zuleika dos Reis
Após muitos anos de trabalho consagrado como poeta, Eunice Arruda publica, em 2009, "Dias Contados", pela R.G. Editores, seu primeiro livro de contos.
Dias contados: dias narrados. Dias contados: dias de seres sentenciados, a caminho da própria extinção.
Já no título, um dos eixos do livro: a morte. O outro eixo: a perda da identidade. Eixos entrelaçados, indissoluvelmente.
Doze contos e me parece que não por acaso. Vejamos algo da simbologia do número 12:
- 12 são os meses do ano.
- 12 são os Apóstolos.
- 12 são os signos do Zodíaco.
- Do número 3, símbolo da Trindade, multiplicado pelo número 4, símbolo da Manifestação, surge o número 12.
- O número 12, muitas vezes, indica o ciclo completo de um acontecimento.
Dos doze contos, cinco narrados por personagens mortos, sete por personagens vivos, vivos em permanente condição de perda, de um braço amputado à perda da própria imagem física, para si mesmo e para os outros; da perda da liberdade à cisão permanente entre corpo e alma, sendo que o traço comum entre todos é a percepção da perda da própria identidade.
Lendo os contos de Eunice Arruda me veio a expressão "ser-para-a-morte", de Heidegger, já que a morte é o denominador comum, a sempre presença no universo de cada um dos personagens.
O outro nome que me veio à mente foi Golem, nome na tradição judaica, da Kábala, no durante da leitura de “Nem as gotas de chuva", para mim, de todos, o conto mais instigante. Nele, um homem volta do reino dos mortos com o próprio nome apagado da testa, o que me levou, imediatamente, ao mito do Golem.
No mito, o Golem inicial teria sido o próprio primeiro Adão, quando ainda recém-criado da terra, antes da alma lhe ter sido soprada pelo Deus. O Golem posterior seria um simulacro de ser humano, criado pelo homem, simulacro a quem é dado vida ao lhe ser escrita na testa a palavra Emeth, que significa Verdade. Se for retirada desta palavra a primeira letra surge Meth, que significa Está Morto, o que faz o Golem cair por terra. Segundo a Kábala, a letra é a emanação do poder divino; é também a "assinatura" das coisas.
No conto "Nem as gotas de chuva" o homem que volta do reino dos mortos, sem nome na testa, é um morto-vivo, um ser sem nenhuma identidade.
Contos estáticos, em sua maioria; contos de atmosfera, não de ação. As ações são mostradas de forma embrionária, que o que realmente importa são os estados do ser.
Em grande parte do tempo, presentes a estranheza, o insólito, o fantástico, talvez alguns elementos surrealistas, tudo através de uma linguagem límpida e enxuta como a da própria Eunice em seus poemas, e à semelhança da linguagem de Kafka. A se falar nos elementos de surrealismo presentes, eu diria que muito mais à Magritte (para usar exemplo da pintura) do que à Salvador Dalí. Há um quadro de Magritte chamado "As afinidades eletivas" que ilustra, a meu ver, com muita propriedade, o modo como se apresenta o surrealismo nos contos de Eunice Arruda. No quadro referido aparece uma gaiola dentro da qual está um ovo que lhe ocupa todo o interior. Uma interpretação plausível dirá que os pássaros já estão, desde antes do nascimento, predestinados à ausência de liberdade, à escravidão. Voltando aos contos, penso que não se possa defini-los como fantásticos, ou surrealistas, ou de realismo mágico, ou kafkianos, ainda que apresentem várias características destas linguagens.
A autora é uma das nossas grandes poetas; segundo ela mesma, é essencialmente poeta, e tal condição vem inscrita também em seus contos, da linguagem à estrutura circular, uma das características fundamentais da Poesia. Contos via de regra alineares, que não seguem linha temporal definida, de um ponto no presente em direção ao futuro, do futuro a um ponto do passado, ou da alternância entre ambos. Como na Poesia, o centro dos contos de Eunice Arruda está em todos os pontos, imantando tudo, todo o círculo, tornando tudo ponto de partida e ponto de chegada. O círculo: a poesia mágico-agônica da roda onde gira a vida-morte, em incessante intercâmbio.
Publicação na revista LINGUAGEM VIVA, edição de outubro de 2010; republicação no Recanto na manhã de 10 de outubro de 2011.