Merval, o imortal
Na semana passada, o imortal Moacyr Scliar foi substituído na Academia Brasileira de Letras pelo jornalista Merval Pereira - sob protesto dos literatos e da esquerda, e sob os aplausos das Organizações Globo. Nada li do Merval. Do Scliar, li muita coisa. Cheguei a encontrá-lo duas vezes. Na primeira, autografou o meu "O Exército de um Homem Só", segunda edição, acho que de 1974, comprada em um sebo. O imortal mentiu na dedicatória: "Ao Henrique, leitor culto e simpático". Lembro de Scliar caminhando tranquilamente na Bienal do Livro em Curitiba, como um reles mortal. Entrou num stand de literatura francesa e lá ficou, olhando os livros, despercebido. Mas hoje a notícia é o Merval. Convém falar do Merval. Ou, melhor, da Academia. Ora, por que a Academia elegeu o Merval e não o Antônio Torres? O simpático Torres, que na mesma Bienal fez uma oficina de crônica que... Não, não quero falar da Bienal. O que eu queria era ver se no estatuto da ABL havia algo legitimando a eleição do Merval. E há, meus caros, há.
O estatuto assinado por Machado de Assis em 1897, ao que parece, continua em vigor - eu, pelo menos, desconheço qualquer disposição em contrário. O Artigo 1º prevê, entre outras coisas, o Rio de Janeiro como sede da Academia, o que vem sido obedecido. No primeiro parágrafo deste artigo, o estatuto estabelece que a Academia será composta de 40 membros efetivos e perpétuos, dos quais 25, pelo menos, residentes no Rio de Janeiro. Não sei aonde moram todos os imortais, mas sei que alguns deles não moram no Rio de Janeiro. O Sarney, por exemplo, mora em Brasília, no Maranhão, no Amapá, no inconsciente coletivo, em todo lugar, mas que eu saiba não no Rio de Janeiro. Nem o Marco Maciel, senador por Pernambuco. O Carlos Nejar. Alfredo Bosi. Lygia Fagundes Telles. O Suassuna, claro. E certamente outros. Existem 15 vagas para esses estrangeiros. Mas não será preciso solicitar contagem nenhuma: Merval está entre os que moram no Rio de Janeiro.
Vejamos os demais critérios para que um autor mereça entrar para a Academia: só podem ser membros efetivos os brasileiros – e Merval é brasileiro - que tenham, em qualquer dos gêneros da literatura, publicado obras de reconhecido mérito ou, fora desses gêneros, livro de valor literário. Isso significa que não precisa ser autor de literatura, mas que deve obrigatoriamente flertar com ela. Talvez Machado pensasse nos cronistas quando aprovou isso. O que ele não aprovou, e ninguém deve ter sugerido, é o que vem a ser reconhecido mérito e, principalmente, valor literário. Reparem que, no caso de não ser gênero literário, dispensa-se o reconhecido mérito. Isso abre uma margem tão grande que o delegado de Riacho Fundo, que recentemente relatou um crime em forma de versos, pode se considerar plenamente capaz de virar um imortal. Quanto mais o Merval.
Isso também significa que não é preciso ter publicado livros. Merval Pereira fez dois, e alguns dirão que foram poucos - e, imagino, sem reconhecido mérito. Mas Merval escreve para o Globo, e isso seria suficiente para torná-lo elegível, desde que encontremos em seus textos aquilo que entendemos como valor literário. E como não há critérios objetivos para definir este valor, estamos sujeitos a todo tipo de interesses influenciando a escolha. A possibilidade dos imortais não serem literatos, seja isso certo ou errado, transformou a literatura em apenas mais uma ala da Academia - e uma das mais fracas, imagino.
De toda forma, Merval é brasileiro, mora no Rio de Janeiro e escreve textos fora dos gêneros da literatura, mas que qualquer um, se assim desejar, pode alegar terem valor literário. A sua posse, portanto é legítima perante o estatuto – um estatuto que, em seu artigo 10º, prevê a possibilidade de uma reforma. Mas aí seria demais. Seria previso revisar Machado de Assis. E isso precisaria partir dos próprios imortais. A Rede Globo foi bastante clara: Merval tem a mesma profissão de Machado de Assis. Diante de tanta semelhança, reforma alguma é necessária.