A Guerra dos Tronos, de George R. R. Martin
O diretor J. J. Abrams confessou que tudo o que uma história precisa para cativar o público é abusar das caixas misteriosas. Não, ele não estava falando para se usar uma fábrica de embalagens como cenário universal. Ele chama as perguntas levantadas no decorrer da história de caixas misteriosas. Não importa se estas caixas serão ou não abertas no final, elas já cumpriram o seu papel: estimular a criatividade do leitor/telespectador e fazê-lo continuar a acompanhar a sequência até o final. E é exatamente isso o que faz o roteirista norte-americano George R. R. Martin em sua série de fantasia As Crônicas de Gelo e Fogo. O primeiro volume dos sete livros previstos (atualmente o escritor lançou o quinto, em inglês), intitulado A Guerra dos Tronos (Leya, 2010), traz várias caixas misteriosas, ou situações conflitantes, que pretendem ser solucionadas nas centenas de páginas que trarão os próximos volumes. Mas não pense que todos os conflitos são deixados para os volumes subsequentes, muitos se resolvem já no primeiro livro. E acabam gerando outros conflitos com isso. Afinal, uma solução para uns personagens pode não ser apreciada por outros. A vida é assim, por que na ficção também não seria? Aliás, Martin conseguiu mesclar muito bem a história real da Europa com intrigas entre nobreza, cleros e reis, estratégias militares, guerras, divergências familiares, entre outras coisas, com uma boa dose de mitologia envolvendo feiticeiros, dragões, mortos-vivos e outros seres fantásticos. Mas este último elemento aparece somente como a cereja do bolo. Apesar de ter criado um universo com elementos mitológicos, estes só são histórias contadas pelos mais antigos de épocas muito anteriores aos personagens atuais da trama. Mas são lembranças que espreitam e parecem querer ressurgir a qualquer momento.
A história é centrada na família de Eddard "Ned" Stark, senhor de Winterfell, localizado no gelado norte, contrária à família Lannister, nobres em Porto Real, a cidade do rei dos Sete Reinos. Apesar do rei atual, Robert Baratheon, ser amigo íntimo de Eddard, todos ao seu redor não compartilham dos seus sentimentos. Robert pede que Eddard o auxilie a governar, sendo o seu Mão, uma espécie de primeiro-ministro. Mas as intrigas da corte e da família Lennister não vão deixar com que isso seja tarefa fácil para Eddard e sua família. Já chegaram a citar que a inimizade entre os Stark e Lennister baseia-se na saga real dos York contra os Lancaster. A semelhança na sonoridade dos nomes não é mera coincidência. Na rede de tramas intrincadas, cada reino possui famílias com lemas, bandeiras e membros com personalidades diferentes. E cada família possui os seus próprios conflitos internos.
Um dos pontos a favor do livro é a quantidade e qualidade dos personagens complexos. Entende-se, na teoria literária, como personagem complexo aquele mais detalhado, que acaba-se conhecendo tanto as qualidades quanto os defeitos. Nos tornam íntimos deles. Alternar os capítulos sob o ponto de vista de um personagem diferente faz com que o leitor crie empatia automaticamente por alguns e passe a não gostar exatamente de quem estes não gostam. Mas isto acaba sendo conflitante quando o foco narrativo passa de um Stark para um Lannister. Porém, faz o leitor perceber que a história não é maniqueísta e que mesmo as más ações consideradas por uns, sob o ponto de vista de outros são plenamente justificáveis. No primeiro livro, os capítulos aparecem sob a narrativa de 8 personagens: as crianças Bran, Samsa, Arya, o bastardo Jon Snow, Catelyn e Eddard (da família Stark), o anão Tyrion (dos Lannister) e a princesa Daenerys (dos Targaryen). Além de mostrar pontos de vista diferentes, a mudança no foco narrativo também serve para mostrar o desenrolar da história em outros lugares.
A trama pré-história também aguça a curiosidade. Martin montou um passado tão fascinante que não surpreenderia que, após o término do sétimo livro da série, ele anunciasse outra série contando os primórdios de tudo, seguindo bem de perto o estilo Guerra nas Estrelas (Fox, 1977-2005).
As comparações com O Senhor dos Anéis (Martins Fontes, 2001) são inevitáveis. Até mapas detalhados dos principais lugares da trama (como Winterfell, a Muralha e Porto Real) aparecem da mesma forma como na série antecessora. Apesar de os fãs de J. R. R. Tolkien já amaldiçoarem aos primeiros corajosos a se aventurarem a não só comparar, mas a apontar melhorias, há de se entender que são literaturas escritas para épocas e públicos diferentes. Martin é roteirista tarimbado em Hollywood e escreve as cenas como se narrasse um filme, e agrada em cheio a geração atual. E enquanto n’O Senhor dos Anéis fica bastante evidente a luta do bem contra o mal, em Guerra dos Tronos isso não é tão fácil assim. Outro detalhe que diferencia ambas as obras é a inclusão de personagens femininas como fortes protagonistas, como se George R. R. Martin se inspirasse muito em Tolkien, mas quisesse corrigir aquilo de que não gostou.
As vendas do livro dispararam no Brasil - apesar das críticas negativas à má adaptação da tradução portuguesa - devido ao lançamento da série televisiva (HBO, 2010). Em 10 episódios muito bem produzidos, com atuações, figurino, cenário e efeitos especiais de primeira, fez com que muitos fãs migrassem da telinha para encarar as 592 páginas do livro. Incentivar a leitura de calhamaços é algo inédito em nosso país, mas mesmo que se consiga vencer o primeiro volume será apenas um aperitivo, pois os próximos só aumentam de tamanho (o segundo tem 656 e o terceiro 884 páginas). A previsão de lançamento do quarto livro no Brasil é para janeiro de 2012, na mesma época do lançamento da segunda temporada da série, baseada no segundo livro, A Fúria dos Reis.