Mãos de Cavalo

A obra de Daniel Galera, Mãos de cavalo, revela fascínio ao conciliar e apresentar de maneira intercalada e harmônica três fases da vida do personagem principal. Essas etapas consistem em três fios que entrelaçam e constituem um tecido denso, previamente articulado (como o próprio autor já revelou em entrevistas) para revelar o aspecto psicológico do personagem Hermano.

Mãos de Cavalo põe em discussão as construções e desconstruções por que passa um indivíduo em formação. As experiências vividas explicam e constroem o caráter do ser humano. Isso se dá visto que nenhum relato das fases de criança e adolescente, privilegiado pelo narrador (em 3ª pessoa), ficou sem elo no tempo presente do personagem.

O personagem Hermano, quando apresentado (ainda criança) logo no primeiro capítulo, sofre um acidente de bicicleta enquanto o autor materializa com descrições minuciosas os percalços da cidade, as trilhas urbanas nas quais os garotos normalmente andam. Essa descrição não é gratuita, porque o personagem, ao longo da instigante narrativa, é muitas vezes, submetido voluntariamente a situações que expõem sua integridade física. Hermano demonstra gosto por decidas em ladeiras, brigas, auto-mutilação e até na sua primeira experiência sexual há realce de sangue, quando vê escorrer o filete de sangue e a estranha sensação de prazer. Assim, o personagem demonstra que dor e sangue não o desestabilizam. Seriam esses alguns itens determinantes para sua escolha profissional. Ele se torna médico.

A linguagem privilegiada ao longo da narrativa é objetiva, confere dinamismo e demarca o período histórico instaurado: contemporaneidade. Isso se dá pela fidelidade da informalidade da língua na voz de alguns personagens que se relacionam diretamente com a trama central.

Vale ressaltar que a partir dos três primeiros capítulos, os eventos (memórias) de Hermano são para o leitor, visto que o personagem não tem consciência dos fatos relatados e para o personagem trata-se da sua constituição como sujeito, exemplo disso está nos capítulos “Bonobo”, “Clareira”, etc. As reflexões introspectivas surgem já no tempo presente, mas o narrador antecipa, ao leitor, as experiências vividas por ele na adolescência, denotando convergência entre as duas realidades as quais culminam na construção da identidade do personagem Hermano como indivíduo atual.

Na narrativa cronológica, “ele” (assim é que o narrador se refere a Hermano, visto que não é chamado pelo nome) demonstra-se como um fracassado, apresenta fraquezas, insatisfações, instabilidades emocionais e ele quer mudar sua postura diante da vida monótona tanto na profissão quanto no casamento com Adri. Já nos feed backs, o personagem é chamado pelo nome “Hermano” e assim como os outros garotos com quem convivia. O nome confere ao personagem a identidade em formação, enquanto que na fase adulta ele é anônimo para si e para os outros e a ele resta apenas lidar com os conflitos de uma personalidade tácita da qual ele se envergonha.

Por que “Mãos de Cavalo”? Hermano recebe essa alcunha ainda na adolescência, época em que todos os amigos eram chamados por um apelido que os configurasse. O narrador apresenta descrições das mãos de Hermano, longas, frias. Demonstra a instabilidade emocional em contraste com a firme decisão: Hermano não se droga, não é ousado como a maioria dos garotos de sua idade. A partir dessas imagens e as ações do personagem aliadas à presença constante do sangue, cria-se seguramente a imagem do que seria “Mãos de... Hermano, Cavalo”. Ao ler a obra, esses são os principais fatos que, devido à importância na constituição da identidade do personagem, corroboram essa alcunha que dá título ao livro.

Trata-se de um romance urbano, pois privilegia as relações humanas com o lugar (a cidade de Porto Alegre – bairro Esplanada) como fator determinante para o desenvolvimento do enredo. Ao revisitar o seu antigo bairro, Hermano sai de sua zona de conforto e, em função dos conflitos que explodem dentro de si, estabelece nítidas relações entre sua identidade e o bairro onde viveu quando criança e adolescente.

Narrado em terceira pessoa, além de onisciente, o narrador se instaura como locutor que configura, desfia a história para contá-la com perfeita eloquência no intuito de ganhar fidelidade e o interesse do leitor. E, durante o desenvolvimento da narrativa “Mãos de Cavalo” suscita alguns temas da realidade do jovem vestibulando como a influência do mau-caráter, malandro, encrenqueiro; as indecisões numa fase extremamente determinante; o resultado de decisões adolescentes ou mesmo a falta delas, como no caso de Hermano.

Com base nisso, um importante viés contemplado em Mãos de Cavalo de Daniel Galera é: só as próprias experiências e a maneira de lidar com elas num determinado tempo e espaço realmente constroem a identidade de um ser.

Rosimeire Soares
Enviado por Rosimeire Soares em 05/09/2011
Reeditado em 08/09/2011
Código do texto: T3202394