Clarice ao rés-do-chão
Passei as últimas duas semanas trancado no quarto com Clarice. Estava decidido a só sair de lá depois que resolvêssemos todas as nossas desavenças. Sabia que não sairíamos nos amando, mas me consideraria satisfeito se nascesse uma suave afeição. Resolvi que começaria com aquilo que temos em comum. Eu gosto de crônicas. Leio crônicas, escrevo crônicas e, como se não bastasse, pesquiso sobre crônicas e tenho minhas próprias teorias sobre elas. Pois Clarice também fez crônicas – ainda que ela negue. Peguei então um dos seus livros de crônicas. E deixei que ela falasse.
Tive, é verdade, a péssima ideia de ler a orelha do livro. Quase estragou tudo. Dizia que não era um livro de crônicas – imagine, Clarice fazendo simples crônicas! Ao contrário, ela estaria rompendo com o modelo tradicional do gênero – uma ou outra, talvez fosse crônica mesmo. A orelha, muito abelhuda, também alertava: não era por ter escrito em jornal que Clarice perdia a sua majestade. Depois de uma ligeira crise de urticária, consegui virar as páginas até a primeira crônica – ou seja lá o que for.
Li as cinco primeiras. Eram todas crônicas. E fui surpreendido: eram todas belíssimas. Clarice descrevia episódios singelos de sua infância no Recife através de cenários muito vivos. Era impossível não simpatizar com ela. Refeito do choque, continuei a leitura. Não demorou, no entanto, para eu enxergar aquilo que me desagrada em Clarice – as indagações existencialistas. Mas elas se revezavam com momentos de leitura muito agradável. Clarice conversava com taxistas, com os filhos, com amigas e com empregadas. Falava sobre a natureza. Descrevia viagens. Citava coisas que leu e viu. Narrava episódios. Tudo em um tom leve, como exige o jornal. Clarice não rompeu com o modelo tradicional da crônica pelo simples fato de que não há um modelo tradicional. Ela não deixou, no entanto, de encostar na maior parte das características esperadas para o gênero.
Talvez ela tenha, no máximo, rompido consigo mesma – a ponto de leitores acharem que, em jornal, ela não era verdadeira. Clarice não queria, mas foi impossível fazer crônicas sem ser pessoal. Ela estava exposta. E, na sua intimidade, Clarice era frágil. E tinha fome de uma liberdade tão grande que mal aceitava ser chamada de escritora, quanto mais de cronista ou colunista – o que não a impede de ter sido. Fazia crônicas com tudo que tinha direito, incluindo responder carta de leitor. E, em geral, gostei do que li, embora tenha pulado a maior parte dos textos que a própria Clarice pularia se não houvesse escrito – ela não gostava de ler textos pouco objetivos ou que pudessem ser acusados de herméticos.
Acho maléfica a tentativa de colocar Clarice no pedestal de um gênero que, em essência, é feito ao rés-do-chão. É preciso deixar que a Clarice cronista seja simplesmente a Clarice cronista – é justamente quando ela se sai melhor. Deixem Clarice longe das revoluções. Parem de louvar a densidade em um gênero que – ela sabe – deve ser superficial. Percebam a beleza da sua fragilidade e deixem que ela corra solta. Em jornal mesmo. Ela não precisa que a tentem deixar mais bonita – em geral, estraga.
Os gêneros não interessam mais a Clarice e é por isso mesmo que ela deve ser bem recebida na crônica – que, como lembra José Castello, é o fracasso dos gêneros.