TÍTULO DO LIVRO: CAIN
AUTOR: JOSÉ SARAMAGO
ED. COMPANHIA DAS LETRAS- 2009
Sinopse
Eis de novo o polêmico José Saramago reconstruindo, ao seu modo, as histórias bíblicas, para desespero dos fundamentalistas, que interpretam a Bíblia literalmente e não admitem visões diferentes da suas. Neste novo trabalho, o português marxista-ateu, como gostam de chamá-lo os seus inimigos, revela uma outra face que na minha opinião, ainda não havia se manifestado, de forma tão explícita, em seus livros iconoclastas anteriores. É a sua face anti semita. Aqui ele faz o amaldiçoado Cain percorrer uma boa parte da saga descrita no Velho Testamento, para mostrar que Deus, na verdade, é um inimigo da humanidade, que a vê como um erro, e cheio de culpa por tê-lo cometido, a submete a um calvário de guerras, sofrimentos, angústias e armadilhas, sendo uma delas, a mais perigosa de todas, a religião. Através de Cain, Saramago faz o julgamento de Deus e da religião fundamentada na Bíblia, taxando-a, como ele a definiu em uma entrevista dada à Folha de São Paulo, como resultado da “infinita dimensão da estupidez humana.”
***
Que Saramago era ateu e marxista todo mundo sabe. Isso ele mesmo admitia, embora não gostasse do termo marxista, por que achava que não se deve atribuir uma rotulagem intelectual a uma pessoa só pelo fato de ela acreditar que o mundo é construído de determinado modo. Não importa se Marx acreditava nisso e se Darwin também tivesse defendido idéia semelhante. Esses conceitos eram, na verdade, universais, e não deviam ser atribuídos a uma pessoa em particular.
Essas idéias eu o ouvi manifestar uma vez em uma entrevista, por isso a estou referindo. Mas voltando a Cain, eu li o livro neste fim de semana e vi nele, além do já conhecido sarcasmo com que o Saramago trata a religião judaico-cristã em especial, (as outras ele disse que não o interessavam, porque não faziam parte da sua cultura), uma espécie de anti semitismo que eu não havia identificado em outros trabalhos seus.
Neste, Cain e Abel me aparecem como tipo e antítipo de uma ideologia que se costumou chamar de sionista, pois que reflete claramente a base da cultura que o ocidente herdou dos israelitas, através da Bíblia. Que os cronistas hebreus sabiam manipular a literatura com grande maestria para criar argumentos em defesa de sua ideologia, essa é uma coisa fácil de constatar. A maioria das histórias do Velho Testamento é uma prova inconteste disso. Nelas, Israel sempre aparece como o “filho dileto de Deus” e o resto é resto. Todos os vizinhos são maus, idólatras, promíscuos, bárbaros e outras coisas mais. Essa disposição de “demonizar” os adversários aparece claramente na história de Lot e suas filhas, as quais embriagam o velho patriarca e fazem sexo com ele, gerando, em conseqüência, os vizinhos bastardos, amonitas e moabitas. Há outras histórias com intenções mais explicitas, como a de Sansão (uma clara condenação á mistura do sangue israelita com sangue dos seus vizinhos), a de Jefté, cujo castigo( sacrificar a própria filha) parece estar claramente ligado a um culto naturalista, as lutas de Elias e Eliseu , contra os deuses pagãos(dos vizinhos) etc., mas o viés racista da Bíblia é bem tipificado na história de Lot e suas filhas.
A Bíblia, segundo Saramago, é “ um manual de maus costumes. "Não conheço nenhum outro livro em que se mate tanto, em que a crueldade seja norma de comportamento e ato quase natural,” disse ele em sua entrevista à Folha de São Paulo". E em seu romance Cain, ele parece querer demonstrar isso ao descrever o ambiente bíblico do Velho Testamento (o povo de Israel) como uma cultura tipicamente patriarcal, de base fundamentalmente pastoril, que emerge de um meio onde os povos vizinhos já começavam a criar núcleos urbanos bastante desenvolvidos).
Jeová, o Deus de Israel, é o deus dos pastores, e de certo não gostaria de ver a agricultura se expandir e superar o pastoreio, como base da economia das nações que se formavam. Dai Ele recusar a oferta do agricultor Cain e aceitar as do pastor Abel. Cain, na sua ira, mata Abel.
Na tradição luciferina que então se formou a partir do chamado fratricídio praticado contra Abel (Israel), a Bíblia diz que Cain se tornou amaldiçoado e da sua prole saíram os construtores de cidades, os descobridores da metalurgia, o povo beduíno, o criador da música e assim por diante. Enfim, tudo que significa ciência, técnica, arte, liberdade. Assim, Cain e Abel nos aparece aqui como uma metáfora que opõe a cultura israelita, patriarcal, pastoral, misógina e chauvinista, aos costumes desenvolvidos pelos seus vizinhos cananeus, egípcios, amonitas, e outros, que disputavam com os israelitas os locais habitáveis da região do Levante. É o conflito entre a civilização e o campo.
É claro que isso hoje mudou. Israel passou para o outro lado e os vizinhos é que são a contra-cultura incivilizada. Pelo menos é assim se mostra o atual ambiente daqueles territórios.
Quanto á historia bíblica, a demonização de Cain e sua prole, sugerindo os dois caminhos que os arquétipos Abel - o querido de Deus, que é Israel - e Cain, o amaldiçoado, o assassino,(os inimigos de Israel) seguirão na vida, isso é claramente uma metáfora político-ideológica. Abel é suprimido pelo crime, pela força, pela violência, como os vizinhos sempre fizeram com Israel (a história de Israel é um contínuo de ascensões e quedas). Mas o povo israelita sempre reviverá, pois Deus está com ele. Daí Ele dar a Adão um novo filho,Set, para substituir Abel. E assim será por toda a história de Israel. A cada queda, Deus suscitará a Israel um novo filho para restaurar a sua grandeza. É nesse sentido que pode ser entendida a saga de Abraão, Jacó, Moisés, Josué, Sansão, Davi, Salomão, Elias, os Macabeus e por aí diante.
Até Jesus entra neste contexto. Mas este, na verdade, para Israel, foi um novo Cain...Isso Saramago não disse, mas deixou patente no “Evangelho Segundo Jesus Cristo.
O que fica claro em "Cain" é a idéia de que Saramago vê o Deus do Velho Testamento como um patriarca senil que vive submetendo sua família à mais severa disciplina para garantir a sua autoridade. É como um pai que conserva a sua autoridade na base do castigo.
Algo, que para as mentalidades modernas soa como pura barbárie, mas que ainda é muito atraente para algumas pessoas. Naquele tempo não haviam os defensores dos direitos humanos, a delegacia da mulher, o movimento gay, os Conselhos Tutelares, etc.
Talvez por isso, como ele diz, Saramago tenha sido praticamente expulso de Portugal e ido viver na ilha espanhola de Lanzarote, onde morreu.
Bom. Não é preciso concordar com Saramago em suas diatribes contra a religião, nem aceitar seus pontos de vista a respeito da Bíblia. Aliás, eu não concordo com ele que a Biblia seja um livro pernicioso, “que não se poderia deixar nas mãos de um inocente, pois só conteria maus conselhos, assassinatos, incestos", fomentador de guerras e ódios raciais, como ele diz. Na verdade, eu a vejo como uma fonte de arquétipos, modelados nos mais puros e legítimos instintos humanos. Nada do se descreve ali pode ser interpretado como maldade, ignorância, barbárie, injustiça e obsessão pela violência, como ele afirmou em sua entrevista à Folha, explicando o enredo de Cain. Até porque tudo isso faz parte do instinto humano e a sua rotulação como bem ou mal depende da valoração que damos a cada ação humana praticada na defesa do seu legitimo direito de sobrevivência. É claro que ela reflete a ideologia do povo que a escreveu e da hierarquia que a inspirou. Mas isso também é normal. Assim também é o Alcorão ou os Vedas, ou qualquer outro Livro Sagrado que a humanidade já conheceu. Todos foram inspirados pelos deuses que cada povo cultuava, ou seja, a classe dominante.
De qualquer modo, para quem não está amarrado pelos nós do fundamentalismo religioso, ler Cain é uma aventura intelectual interessante. A par da visão luciferina que Saramago nos coloca nesse seu romance, e que é também ideológica, fica sempre a idéia de que, mais perigosa do que a pessoa que não lê livro nenhum é aquele que só leu um único livro.
AUTOR: JOSÉ SARAMAGO
ED. COMPANHIA DAS LETRAS- 2009
Sinopse
Eis de novo o polêmico José Saramago reconstruindo, ao seu modo, as histórias bíblicas, para desespero dos fundamentalistas, que interpretam a Bíblia literalmente e não admitem visões diferentes da suas. Neste novo trabalho, o português marxista-ateu, como gostam de chamá-lo os seus inimigos, revela uma outra face que na minha opinião, ainda não havia se manifestado, de forma tão explícita, em seus livros iconoclastas anteriores. É a sua face anti semita. Aqui ele faz o amaldiçoado Cain percorrer uma boa parte da saga descrita no Velho Testamento, para mostrar que Deus, na verdade, é um inimigo da humanidade, que a vê como um erro, e cheio de culpa por tê-lo cometido, a submete a um calvário de guerras, sofrimentos, angústias e armadilhas, sendo uma delas, a mais perigosa de todas, a religião. Através de Cain, Saramago faz o julgamento de Deus e da religião fundamentada na Bíblia, taxando-a, como ele a definiu em uma entrevista dada à Folha de São Paulo, como resultado da “infinita dimensão da estupidez humana.”
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Que Saramago era ateu e marxista todo mundo sabe. Isso ele mesmo admitia, embora não gostasse do termo marxista, por que achava que não se deve atribuir uma rotulagem intelectual a uma pessoa só pelo fato de ela acreditar que o mundo é construído de determinado modo. Não importa se Marx acreditava nisso e se Darwin também tivesse defendido idéia semelhante. Esses conceitos eram, na verdade, universais, e não deviam ser atribuídos a uma pessoa em particular.
Essas idéias eu o ouvi manifestar uma vez em uma entrevista, por isso a estou referindo. Mas voltando a Cain, eu li o livro neste fim de semana e vi nele, além do já conhecido sarcasmo com que o Saramago trata a religião judaico-cristã em especial, (as outras ele disse que não o interessavam, porque não faziam parte da sua cultura), uma espécie de anti semitismo que eu não havia identificado em outros trabalhos seus.
Neste, Cain e Abel me aparecem como tipo e antítipo de uma ideologia que se costumou chamar de sionista, pois que reflete claramente a base da cultura que o ocidente herdou dos israelitas, através da Bíblia. Que os cronistas hebreus sabiam manipular a literatura com grande maestria para criar argumentos em defesa de sua ideologia, essa é uma coisa fácil de constatar. A maioria das histórias do Velho Testamento é uma prova inconteste disso. Nelas, Israel sempre aparece como o “filho dileto de Deus” e o resto é resto. Todos os vizinhos são maus, idólatras, promíscuos, bárbaros e outras coisas mais. Essa disposição de “demonizar” os adversários aparece claramente na história de Lot e suas filhas, as quais embriagam o velho patriarca e fazem sexo com ele, gerando, em conseqüência, os vizinhos bastardos, amonitas e moabitas. Há outras histórias com intenções mais explicitas, como a de Sansão (uma clara condenação á mistura do sangue israelita com sangue dos seus vizinhos), a de Jefté, cujo castigo( sacrificar a própria filha) parece estar claramente ligado a um culto naturalista, as lutas de Elias e Eliseu , contra os deuses pagãos(dos vizinhos) etc., mas o viés racista da Bíblia é bem tipificado na história de Lot e suas filhas.
A Bíblia, segundo Saramago, é “ um manual de maus costumes. "Não conheço nenhum outro livro em que se mate tanto, em que a crueldade seja norma de comportamento e ato quase natural,” disse ele em sua entrevista à Folha de São Paulo". E em seu romance Cain, ele parece querer demonstrar isso ao descrever o ambiente bíblico do Velho Testamento (o povo de Israel) como uma cultura tipicamente patriarcal, de base fundamentalmente pastoril, que emerge de um meio onde os povos vizinhos já começavam a criar núcleos urbanos bastante desenvolvidos).
Jeová, o Deus de Israel, é o deus dos pastores, e de certo não gostaria de ver a agricultura se expandir e superar o pastoreio, como base da economia das nações que se formavam. Dai Ele recusar a oferta do agricultor Cain e aceitar as do pastor Abel. Cain, na sua ira, mata Abel.
Na tradição luciferina que então se formou a partir do chamado fratricídio praticado contra Abel (Israel), a Bíblia diz que Cain se tornou amaldiçoado e da sua prole saíram os construtores de cidades, os descobridores da metalurgia, o povo beduíno, o criador da música e assim por diante. Enfim, tudo que significa ciência, técnica, arte, liberdade. Assim, Cain e Abel nos aparece aqui como uma metáfora que opõe a cultura israelita, patriarcal, pastoral, misógina e chauvinista, aos costumes desenvolvidos pelos seus vizinhos cananeus, egípcios, amonitas, e outros, que disputavam com os israelitas os locais habitáveis da região do Levante. É o conflito entre a civilização e o campo.
É claro que isso hoje mudou. Israel passou para o outro lado e os vizinhos é que são a contra-cultura incivilizada. Pelo menos é assim se mostra o atual ambiente daqueles territórios.
Quanto á historia bíblica, a demonização de Cain e sua prole, sugerindo os dois caminhos que os arquétipos Abel - o querido de Deus, que é Israel - e Cain, o amaldiçoado, o assassino,(os inimigos de Israel) seguirão na vida, isso é claramente uma metáfora político-ideológica. Abel é suprimido pelo crime, pela força, pela violência, como os vizinhos sempre fizeram com Israel (a história de Israel é um contínuo de ascensões e quedas). Mas o povo israelita sempre reviverá, pois Deus está com ele. Daí Ele dar a Adão um novo filho,Set, para substituir Abel. E assim será por toda a história de Israel. A cada queda, Deus suscitará a Israel um novo filho para restaurar a sua grandeza. É nesse sentido que pode ser entendida a saga de Abraão, Jacó, Moisés, Josué, Sansão, Davi, Salomão, Elias, os Macabeus e por aí diante.
Até Jesus entra neste contexto. Mas este, na verdade, para Israel, foi um novo Cain...Isso Saramago não disse, mas deixou patente no “Evangelho Segundo Jesus Cristo.
O que fica claro em "Cain" é a idéia de que Saramago vê o Deus do Velho Testamento como um patriarca senil que vive submetendo sua família à mais severa disciplina para garantir a sua autoridade. É como um pai que conserva a sua autoridade na base do castigo.
Algo, que para as mentalidades modernas soa como pura barbárie, mas que ainda é muito atraente para algumas pessoas. Naquele tempo não haviam os defensores dos direitos humanos, a delegacia da mulher, o movimento gay, os Conselhos Tutelares, etc.
Talvez por isso, como ele diz, Saramago tenha sido praticamente expulso de Portugal e ido viver na ilha espanhola de Lanzarote, onde morreu.
Bom. Não é preciso concordar com Saramago em suas diatribes contra a religião, nem aceitar seus pontos de vista a respeito da Bíblia. Aliás, eu não concordo com ele que a Biblia seja um livro pernicioso, “que não se poderia deixar nas mãos de um inocente, pois só conteria maus conselhos, assassinatos, incestos", fomentador de guerras e ódios raciais, como ele diz. Na verdade, eu a vejo como uma fonte de arquétipos, modelados nos mais puros e legítimos instintos humanos. Nada do se descreve ali pode ser interpretado como maldade, ignorância, barbárie, injustiça e obsessão pela violência, como ele afirmou em sua entrevista à Folha, explicando o enredo de Cain. Até porque tudo isso faz parte do instinto humano e a sua rotulação como bem ou mal depende da valoração que damos a cada ação humana praticada na defesa do seu legitimo direito de sobrevivência. É claro que ela reflete a ideologia do povo que a escreveu e da hierarquia que a inspirou. Mas isso também é normal. Assim também é o Alcorão ou os Vedas, ou qualquer outro Livro Sagrado que a humanidade já conheceu. Todos foram inspirados pelos deuses que cada povo cultuava, ou seja, a classe dominante.
De qualquer modo, para quem não está amarrado pelos nós do fundamentalismo religioso, ler Cain é uma aventura intelectual interessante. A par da visão luciferina que Saramago nos coloca nesse seu romance, e que é também ideológica, fica sempre a idéia de que, mais perigosa do que a pessoa que não lê livro nenhum é aquele que só leu um único livro.