Dom Quixote de La Mancha
A Arte da viajosidade tenta (em vão) resenhar um dos maiores livros do mundo. Litera e Emblematicamente. Espero que aproveitem, e aviso, contém alguns spoilers.
"Morreu são e ainda vive louco"
Por Dija Darkdija
"Morreu são e Viveu louco", diz o epitáfio de um fidalgo. Mas não um fidalgo qualquer, e sim um que foi a "triste figura" mais engraçada que já se viu na terra. Alonso Quijana, fidalgo viciado por livros de cavalarias lê demais e "enlouquece", resolvendo armar-se cavaleiro andante e sair pelo mundo "em busca de tortos para endireitar, agravos para desfazer, damas para honrar e feitos para mostrar o valor de seu forte braço". Assim o fidalgo torna-se o "nunca suficientemente elogiado Dom Quixote de La Mancha" chamado também o cavaleiro da Triste Figura e posteriormente dos Leões. Esse não é um livro para "chegar a um fim". É uma viagem sem rumo, assim como a do próprio protagonista. Então recomendo que continue andando um pouco e não esqueça de apreciar a paisagem. Uma paisagem idealizada por uma mente dotada de uma agudez enorme para todo tipo de assunto (de poesia à justiça) e uma loucura ainda maior para os assuntos da cavalaria, recheada por ditados, discussões e falas do gracioso Sancho Pança, escudeiro de Quixote. O livro é um labirinto, e caso o leitor não mergulhe de cabeça e queira procurar alguma saída (coisa que não achará, o que é justamente a proposta do livro a meu ver), provavelmente não vai gostar, pois verá apenas um louco praticando loucuras, um são mais louco que o segue e espectadores mais loucos ainda que riem de ambos e por vezes até os incentivam. Se Dom Quixote soubesse disso, diria mais uma vez que é "culpa dos encantadores".
O autor foi genial em seu embasamento e nos elementos postos pra manter a coerência de um livro tão cheio de loucuras e coisas racionalmente ilógicas. Primeiro aparece um narrador que conta os feitos de nosso cavaleiro, e de repente, quando tudo parece interessantemente bom, na iminência de um golpe final de uma grande batalha...PUFF. A narrativa para. É onde aparece um novo narrador: um historiador mouro, artifício para poder dizer de consciência limpa: "qualquer loucura que aqui se encontre aqui não é culpa minha, meus caros leitores, apenas transcrevo e repasso o que está escrito". Genial, mas não acaba por aí. Em 1605 é lançado o primeiro volume de Dom Quixote, o que podemos chamar de "primeiro best-seller", republicado e traduzido para francês, italiano e outras línguas rapidamente. Em 1614 aparece uma continuação não autorizada por um autor de pseudônimo desconhecido.
O que você faria se escrevessem uma continuação não autorizada de seu livro, que por sinal está fazendo o maior sucesso pelo mundo? Processar, xingar, mandar matar? Não foi o que fez Miguel de Cervantes Saavedra. Ele foi mais que genial: usou uma obra pobre literariamente, que não chegava aos pés do original para enriquecer a segunda parte original. E assim, no ano de 1615 eis que surge o segundo tomo: "O engenhoso cavaleiro Dom Quixote de La Mancha" é ainda mais labiríntico. Ainda mais genial. Dom Quixote se depara com um livro que saiu impresso contando suas primeiras aventuras. Pouco a pouco o foco muda. O cavaleiro passa mais tempo em casas de pessoas principais, Sancho fica mais falante, porém mais inteligente e agudo, e ainda mais cheio de ditados. Então eis que surge um choque ainda maior: um autor desconhecido publica uma "segunda parte" de suas aventuras, rejeitada pelo próprio Dom Quixote original e tomada por falsa, fato reconhecido por nós e por personagens-leitores. Não para por aí a "tapa de luva de pelica" no autor do falso Quixote. Nem os demônios do inferno querem o livro falso, e ainda dizem que nem eles fariam pior se quisessem. O Labirinto se torna complexo, cada vez mais complexo e a Triste Figura, ainda mais triste em sua viagem sem volta. Derrotada, porém não menos louca, ainda dizendo seus disparates, apesar de extremamente melancólico. Em casa, na cama, morreu são e viveu louco Alonjo Quijana o Bom, mundialmente conhecido por ser o Engenhoso Cavaleiro Dom Quixote de La Mancha. Morre são e revive cada vez mais louco a cada leitura e releitura desse que é um dos livros mais geniais já criados em toda a história literária.