O reino de enteléquia


Através dos tempos, os sábios têm procurado nos transmitir a idéia de que todos os seres se formam a partir de dentro de si mesmos. Isso implica em dizer que no interior dos organismos vivos há uma força, uma energia que age para que eles possam atingir um grau de perfeito acabamento, que funciona como um processo, em diversas etapas, constituindo a longa cadeia evolutiva das espécies.
A existência dessa força, essa energia, já havia sido intuída por Aristóteles, que a chamou de enteléquia (entélékhéia). Para o grande filósofo, enteléquia era o termo que designava a qualidade que possuem todos os seres vivos de realizarem seu próprio desenvolvimento. Era, grosso modo, o que hoje nós podemos chamar de DNA, ou seja, a informação primordial que identifica cada espécie, e dá a cada organismo a sua própria marca dentro do grande mercado da vida.
Entéléquia age no corpo para dar-lhe a devida forma; age também na alma desenvolvendo o aparelho psíquico. Para a moderna Gnose, essa energia é a informação original que toda célula recebe ao ser formada. Numa perspectiva religiosa, é a marca de Deus, dada ao organismo que dela surgirá. Cientificamente, podemos dizer que é o seu software, cujo programa nele implantado permite a interação com o ambiente e possibilita o desenvolvimento de outros programas, absolutamente originais e independentes de seu desenho primitivo, garantindo as adaptações e as inovações que aparecem ao longo da vida das espécies.
Desde a aurora dos tempos as pessoas mais sensíveis já haviam intuído a existência desse princípio construtor e regenerador de coisas e seres no universo. Esse princípio é o mesmo que permite a existência de vida na natureza, alimentando seus eternos ciclos evolutivos. É a vida se alimentando da morte, e vice versa, num processo de eterna reposição, trazendo o novo a partir do velho.

Enteléquia está presente em todos os seres e objetos como potência a ser desenvolvida, como energia a ser capturada e dirigida para a ativação, manutenção e melhora constante do produto resultante desse processo.
Foi o iniciado Rabelais, em seu romance clássico, As Aventuras de Gargantua e Pantagruel, que cunhou o simbolismo “penetrar no reino de Enteléquia”, como significado do homem que atinge a iluminação final. Rabelais utilizou essa alegoria para simbolizar o alquimista ou o filósofo que conseguia, enfim, depois de uma longa e penosa labuta, sintetizar a pedra filosofal, ou obter a Gnose através das atividades operativas, especulativas ou iniciáticas.
O trabalho do alquimista consistia em despertar a energia presente na matéria, dominá-la e orientá-la para que ela, numa interação com sua consciência, lhe revelasse a suprema sabedoria. Essa sabedoria consistia em saber como os elementos da natureza eram formados, ou seja, o processo segundo o qual ela os organizava, e como poderiam ser manipulados. E como, entendiam eles, a matéria bruta e a matéria orgânica eram organizadas segundo processos semelhantes, aquele que dominasse esse processo dominaria também o segredo da vida e como mantê-la com saúde e por longo tempo.

Penetrar no reino da enteléquia adquiriu, pois, dois sentidos diversos e convergentes, conforme se estivesse tratando de questões físicas ou espirituais. Fisicamente se referia ao trabalho do alquimista tentando sintetizar o processo que o levaria à pedra filosofal, composto químico que lhe permitiria transmutar metais comuns em ouro; espiritualmente significava liberar a luz que habita dentro do ser humano, para que sua mente transcendesse a esfera da matéria e penetrasse no mundo sutil das realidades do espírito.
Tratava-se, portanto, de uma alegoria de origem alquímica que tinha como objetivo o mesmo que, nas antigas iniciações, levava o iniciado a realizar diversas provas e cumprir um extenso catecismo ritual. Daí essa alegoria ser incorporada á tradição gnóstica, especialmente entre aqueles influenciados pelo pitagorismo. Foi uma alegoria de fácil adaptação, pois como os alquimistas, os gnósticos também acreditavam que o espírito humano era um território luminoso onde habitava a verdadeira sabedoria.
Se para os adeptos da arte de Hermes essa sabedoria podia ser sintetizada numa pedra, a pedra filosofal, para os gnósticos ela era a iluminação. Assim, quem possuísse esse artefato maravilhoso( a pedra filosofal ou a sabedoria do iluminado), seria capaz de realizar verdadeiro milagres, fosse no ambiente material em que vivia o operador alquímico, ou no próprio ambiente em que operava o mago.

O objetivo perseguido pelos alquimistas e pelos filósofos gnósticos é também o objetivo perseguido pela Maçonaria na sua face espiritualista. Por isso é que se diz que a elevação ao mestrado maçônico é a coroação de uma jornada que o neófito empreende em busca da luz. É sua forma de penetrar no reino da Enteléquia.
Todas as práticas esotéricas que visam a transformação do espírito humano, buscando a sua purificação, tem em comum esse objetivo. Os rituais praticados pelos antigos egípcios nos Mistérios de Ìsis e Osiris, por exemplo, tinham como meta reproduzir o processo pelo qual a deusa Ísis conseguiu realizar a recomposição do corpo dilacerado de seu esposo e irmão Osíris; Essa também era a simbologia desenvolvida nos Mistérios de Elêusis. Da mesma forma, a doutrina da regeneração espiritual em Cristo, desenvolvida pelos teólogos do Cristianismo, incorporou a idéia de morte e ressurreição psíquica como passo necessário á salvação do homem.
Essas concepções em nada diferem das teses gnósticas e hermetistas, que pregam a construção do ser a partir da libertação da luz que existe dentro de cada homem. E se quisermos ir um pouco mais longe, veremos que também a moderna psicologia reconhece a importância do individuo procurar o conhecimento de si mesmo como elemento indispensável á sua saúde psíquica, e a partir desse conhecimento, desenvolver suas potencialidades. Esse é o moderno conceito que temos da idéia inserta na metáfora “penetrar no reino de Enteléquia”.
Assim, em todos os tempos, a máxima sabedoria ainda pode ser resumida na frase de Sócrates: “conhece-te a ti mesmo”.

Conscientes da dificuldade que toda analogia apresenta, podemos situar a prática maçônica como promotora do mesmo tipo de condicionamento espiritual que a Alquimia, a Gnose e os Antigos Mistérios promoviam. Ela se destina a “ativar” a força que existe no interior de todo homem, força essa que, bem orientada, o fará crescer em todos os sentidos. Da mesma forma que a prática alquímica e os rituais gnósticos eram uma forma operativa de “penetrar no reino de enteléquia”, a Maçonaria também fornece aos seus iniciados uma maneira de realizar esse objetivo. Ontem essa fórmula era desenvolvida através do trabalho de construção de edifícios, hoje ela se consuma no desenvolvimento de uma filosofia que busca formar um caráter justo e perfeito, na medida certa para a construção de uma sociedade também justa e perfeita.
Esse é o paralelo que vemos entre a Maçonaria e a filosofia aristotélica, no sentido de que ambos tem como meta levar seus praticantes ao reino mágico da Enteléquia.

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DO LIVRO "CONHECENDO A ARTE REAL" - MADRAS, SÃO PAULO, 2007


João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 25/06/2011
Reeditado em 27/06/2011
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