Resmungando, os rudes indivíduos procuram no escuro da caverna, cada qual um cantinho para se aboletar. Judas Galileu – pois a esta altura o leitor já adivinhou que é ele mesmo o fariseu a quem os guerrilheiros reconhecem como líder –, também se acoita num canto.
Deita, mas seus olhos continuam abertos, fitando a penumbra da caverna, iluminada apenas pela luz mortiça de algu-mas lâmpadas de azeite. Pensa nas palavras do rapazinho. Estranhas, extraordinárias, proféticas, mas ainda assim, bem providas de sentido. Perturbadoras, também, mais ainda porque saídas da boca de um jovem que mal começara a viver.
Como podia uma mente tão imatura, como a daquele garo-to, fazer tais juízos acerca das intrincadas relações de Israel com seu Deus? E de onde extraíra as conseqüências políticas e reli-giosas que desse estranho relacionamento advinham? E como as expunha com clareza e autoridade, como se as estivesse vendo acontecer! Afinal, nem ele mesmo, mestre reconhecido e respei-tado, doutor da lei e líder em Israel, tinha muita certeza do que Jeová queria para o seu povo. Quem seria esse menino que aparentava tanta autoridade em seus discursos, que até a ele, Judas, filho de Jacó, neto de Matã, descendente de Davi e candidato a Messias do seu povo, conseguia mover com suas palavras?
Sua cabeça, atropelada por um tropel de idéias confusas, não consegue dar curso seguro aos pensamentos. As idéias vagueiam como um peregrino no deserto. Ora crê que a sua luta será abençoada por Jeová, ora pensa que Ele o abandonou, ou que nunca o apoiou. Sua mente passeia entre as promessas dos profetas e as palavras do rapazinho.
Recorda-se do que lhe dizia seu irmão, José de Arimatéia. Dizia ele que o Messias judeu e o Christos grego eram o mesmo personagem, esperado em todas as partes do mundo e não apenas em Israel. Tratava-se de um conceito mundial que tinha muito mais a ver com uma revolução espiritual do que com uma realização política. Assim, ele não viria para restaurar o antigo reino de Israel, mas para renovar o espírito da terra. E embalado nessa crença escolhera ser um rabino, para preparar soldados para outro tipo de ação, ao invés de uma guerra. Destarte, tornara-se eclesiástico ao invés de soldado. Sua luta era com as palavras, com o convencimento, com a negociação, com as idéias. Para isso fundara uma sociedade que se reunia em segredo, com o objetivo de preparar uma liderança que os pudesse guiar para esse objetivo. Essa sociedade, conhecida como Irmandade do Novo Convênio, era dirigida por ele, José de Arimatéia, com o título de Kochab, o Estudante da Lei. Dela faziam parte Nicodemos, Gamaliel, Eleazar e outros famosos rabinos de seu tempo. Era composta de setenta membros, os quais viajavam por todo o império, divulgando a nova doutrina. Dessa forma, José de Arimatéia e os Irmãos do Novo Convênio acreditavam que Israel venceria Roma pelo espírito, impondo ao mundo uma nova ordem baseada na virtude da sua religião.
– Pura utopia, sonho de filósofo, pois tuas leituras já te fizeram mais grego que judeu – disse Judas ao irmão.
– Só pela espada e pelo sangue Israel poderá ser libertado –, completou. E daí saíra para fazer o seu discurso ao povo na-quela fatídica manhã em que iniciara a sua revolta.

Mas Judas não pode deixar de pensar agora que Roma talvez pudesse ser conquistada pelo espírito, já que pela espada isso parece ser impossível. Já descobriu – depois de tantos anos de guerra –, que a luta armada não libertará Israel. Nunca liber-tou. Todas as vezes que Israel foi a campo para lutar, desde os tempos de Saul e Davi – que derrotaram os filisteus, os amorreus, os moabitas, os amonitas e todos os povos que oprimiam a nação –, mesmo vencendo, nunca a liberdade durara mais do que algumas gerações. Sobrevivia enquanto durava a vida dos líderes que ganhavam as batalhas. Mortos estes, eis que vinham novamente os opressores, cada vez mais fortes e mais cruéis e com eles, sofrimentos redobrados. Egípcios, cananeus, filisteus, assírios, caldeus, persas, partas, gregos, sírios, romanos, eis uma sucessão de povos a pisar a sagrada terra que Jeová lhes dera; e depois, mesmo que uma improvável vitória sobre estes últimos pudesse acontecer um dia, qual seria o próximo invasor que viria para oprimi-los?
Aconteceria mesmo, uma redenção, através de um Libertador? E se essa promessa de redenção não fosse um novo reino para os filhos de Israel, uma renovação da aliança deles com Jeová, mas sim uma mudança de direção na vontade Dele, que ao invés de preparar um povo para a sua Glória, resolvera, de fato, oferecer a toda a humanidade – e não apenas aos judeus –, uma promessa de vida, através de uma nova forma de pensar e de viver?
“ Bendito és Tu, Senhor do Universo, que às vezes ocultas dos grandes a Tua Verdade, e a revela pelas bocas dos pequeni-nos”, orou, em silêncio o fariseu, lembrando-se das palavras do rapazinho que dormia ao seu lado. E se fosse isso mesmo, se o reino que Ele prometeu pela boca dos profetas constituísse, de fato, uma nova era para a humanidade e não apenas uma pro-messa de redenção para o povo de Israel, pelo quê, exatamente, ele estaria lutando? Por uma pátria que já não existia? Por uma lei já derrogada? Por um reino que ninguém sequer sabia definir o que seria?
Uma dúvida real e substantiva brotou no seu espírito. Afi-nal, sempre acreditara que o Deus de Israel fosse o único e verdadeiro Senhor do universo. Se assim era, então todos os povos do mundo seriam fruto da sua criação. Porque só os filhos de Israel teriam direito ao Seu favor?
Era a primeira vez que ele admitia a possibilidade de seu irmão estar certo. Ele nunca concordara com aquela rebelião, por isso se recusara a tomar parte dela, rompendo mesmo com a família por causa disso. O velho Jacó morrera maldizendo o filho mais velho, que ele considerava covarde, por não ter se envolvido na luta. E seu irmão sempre justificara sua posição dizendo que Judas não estava realizando, como pensavam ele e o pai, a obra de Jeová. Uma guerra sem esperança, sem nenhuma possibilidade de vitória, dizia ele, não podia ser a vontade do Senhor, pois não tinha o menor sentido imaginar que Ele pudesse querer a extinção do seu povo.

Judas tem agora em suas mãos o conteúdo do alforje do jovem filho de Maria. Um pouco de pão duro, algumas cebolas, um pedaço de queijo, um velho par de sandálias embrulhado em um pano e uma caixinha de couro contendo alguns mimos de ouro. Encontra também alguns bastõezinhos de incenso, um pequeno frasco de mirra e uma carta endereçada ao seu irmão José de Arimatéia. Reluta entre a vontade de quebrar o selo e a ética pregada pela lei, que proíbe a invasão da intimidade alheia. Algo se mexe dentro da sua mente mais profunda e lhe trás ago-ra lembranças bem nítidas. Mas não consegue concatenar seus pensamentos. Tudo ainda lhe parece muito confuso, improvável, inacreditável. Sabe que tudo que ouviu dos lábios do garoto, tudo que viu no seu alforje, tudo que sente naquele momento tem algo a ver com ele e com a sua própria vida, seus pensamentos e seus atos. Apenas os liames lógicos que o fariam en-tender o que está acontecendo naquele momento não se estabe-lecem, não se aclaram, não se identificam.
Ele medita e no transe que o acomete, não sabe se sonha ou tem uma visão. Na penumbra que envolve a caverna, centenas de homens, mulheres e crianças surgem apontando os dedos em sua direção. E na frente do cortejo, se adiantam Abraão, Isaque, Jacó, o patriarca, José, o carpinteiro, e Jacó, seu velho pai. Junto com eles vem aquele jovem que palavras tão estranhas proferira. Eles não falam, mas em seus olhos o fariseu guerreiro pode ver o que parece ser uma muda acusação. – Te apropriaste do que não era teu. Levaste a guerra e a desgraça ao teu povo, dizem os mudos personagens.
Ele sai do seu torpor e olha para o rapazinho que ressona fundo, em seu sono povoado de sonhos. De repente, novo torpor se apossa de sua mente e outra visão o acomete: nela, ele vê cruzes e mais cruzes sendo erguidas sobre um monte, e em cada uma delas um homem pendurado; vê multidões sangrando e soldados marchando; escuta tropel de cavalos e soar de trombetas, e ao fundo de tudo isso, a cidade de Jerusalém sendo quei-mada até as cinzas; em seguida a vê sendo reconstruída e quei-mada novamente; e depois tudo acontecendo outra vez e outra vez, vezes sem conta, até que o silêncio e a sombra se abatem sobre ele como uma mortalha que o cobre.

Ao lado de Judas Galileu, o filho de Maria dorme e sonha. O lugar onde agora está é o Monte Nebo, e ali eis que ele começa a vagar. Durante o dia caminha por entre os desérticos rochedos e à noite procura uma concavidade entre eles, para que, protegido dos lobos e dos chacais, ao abrigo do vento e do frio que enregela os ossos, possa descansar um pouco.
Ao cabo de três dias, sem comer nem beber, a sede e a fome lhe vêm cobrar do organismo exaurido o preço da forçada abstenção de alimentos. Então ele começa a delirar.
O ambiente que o cerca, no sonho, é propício para essa atividade da mente: uma solidão lunar, feita de areia e pedra, onde um calor sufocante durante o dia e um frio glacial à noite exigem do organismo as mais terríveis provas de resistência. Visões que parecem ser, ora sentinelas de pedra a observar seus movimentos, ora animais monstruosos prontos para devorá-lo, se levantam perante seus olhos,
Sua mente oscila entre a razão e o desvario. Nos momentos de lucidez sente medo. Como um iniciando numa Câmara de Reflexões, pronto para receber os Divinos Mistérios, pensa em quão longe aquele sentimento de missão a cumprir o tinha levado. Tem medo, como um neófito diante do momento crucial em que lhe será exigido o terrível juramento.
O que ele está fazendo ali? No que consiste, efetivamente, a sua missão? Ele ainda não sabe, mas tem que ser digno dela, por isso precisa suportar a fome, a sede e a tentação, para provar a si mesmo que o espírito não precisa de pão, nem de água, mas sim de uma razão que justifique a vida. E quando se tem essa razão, tudo o mais é dado por acréscimo.
E no quarto dia daquela aventura – porque o tempo do sonho não se mede pelo mesmo calendário do estado de vigília – a fome o aperta. Ele olha para as pedras no chão e cuida que sejam pães. E as pega e morde; e vendo que são pedras suplica a Jeová que as transforme em pães. E uma Voz – que ele não sabe se vem do vento ou de dentro da sua própria cabeça –, lhe diz que não só de pão vive o homem, mas que a palavra de Deus tem mais sustância do que qualquer alimento. E ela lhe recorda o motivo de ele estar ali, sofrendo fome e privação.
“ Como anunciarás ao mundo a boa nova da Providência, a negação da ambição desmedida e a confiança na justiça divina, se os cuidados com o alimento, os vestidos e as facilidades da vida o distraem? “ Como provarás a supremacia do espírito sobre a carne, se tu mesmo fores incapaz de suportar a privação? “ Se és tão fraco quanto os outros, como poderás reivindicar o direito de ser o Filho do Homem que Eu preciso para anunciar-lhes a boa nova? “ diz a Voz.
“ Sim, Eu posso transformar essas pedras em pães “, con-tinua a Vóz “, e tu poderás saciar-se com eles. “ Mas não é essa mesma saciedade e esse mesmo anseio pelo atendimento das ne-cessidades da carne que te atormenta e não foi para combatê-las que viestes a este deserto? Sê firme, portanto, e resisti ainda um pouco a esse apelo das tuas entranhas, pois já quase nada falta para venceres a tua provação. “

O filho de Maria levanta-se e mira a solidão à sua frente.
“ Sim, não só de pão vive o homem “, diz para si mesmo“, “e se a Boca de Deus me dá o alimento que vivifica o espírito, eu viverei desse alimento e nenhuma tentação me afastará desta esperança.”
Então ele recomeça a andar, e caminha e caminha, até que do alto do monte surgem os vales que se descortinam montanha abaixo; e a longa mancha verde que se estende para o norte, a-companhando o curso do Jordão é uma visão que ao mesmo tempo o consola e aterroriza. Ali, nas margens daquele rio, ele vê uma semente sendo posta na terra; ela se transforma em uma grande árvore e multidões começam a buscar a sua sombra. De repente, ela é abatida a poderosos golpes de machado. Mas do seu tronco esfacelado explodem centenas, milhares, incontáveis brotos que se transformam em galhos, cujos ramos se espalham até os limites do céu. Depois, num relance, vê as cidades e aldeias esparramadas pelas margens do Jordão e todas as povoações da sua amada Gali-léia. Gente subindo e descendo pelas ruas apinhadas, comerciantes gritando seus pregões, os pescadores puxando suas redes, com milhares de peixes pulando dentro delas; vê os carregadores seminus nos portos, os camponeses em seus hortos, vinhas e searas, os artesãos em suas oficinas e lembra-se de sua própria habilidade de carpinteiro, que seu pai lhe ensinara. Sente orgulho das obras que fabricara e da sua profissão de carpinteiro. E pensa que o Reino de Deus, pelo qual os filhos de Israel tanto anseiam, talvez não seja mesmo uma nação governada por um rei em um palácio, com um grande exército para defendê-lo e um séqüito de serviçais para administrá-lo, mas sim uma imensa oficina, onde cada um faz trabalho útil e necessário e por ele recebe a paga justa pelas obras que executa e fica feliz e vive em paz. E essa oficina é o mundo todo e não um povo ou um país em particular.
Nesse momento, sua vista se turba e ele cai no chão. Um minúsculo sol parece explodir em sua mente e sua luz se espalha em todas as direções. Dentro dela, numa velocidade vertiginosa, mas ainda assim perfeitamente percebido por seu espírito em toda sua completude, o universo desfila perante seus olhos em espirais concêntricas que parecem serpentes luminosas perseguindo a si mesmas. E dentro delas ele vê todas as cidades da Galiléia e o lago em toda sua extensão, com tudo o que nele existe; cardumes de peixes, plânctons, os juncos nas margens, as areias grossas das praias e os pescadores consertando suas redes; os portos com sua azáfama de carregadores, e mercadorias sendo levadas e tiradas das barcaças; os mercados e os vendedores gritando os preços e a excelência de suas mercadorias; vê palácios e fortalezas e nelas pessoas vestidas com sedas e brocados, devorando aves macias, nacos imensos de carne gorda e sangrenta e emborcando enormes taças de rubro vinho; vê músicos tocando seus instrumentos, can-tores cantando suas canções e dançarinas seminuas contorcendo-se freneticamente ao som de timbales, flautas e tambores; vê uma cidade, (que deve ser Tiberíades), onde um rei, gordo e faustoso, sentado sobre um trono dourado, cravejado de brilhantes, realiza uma audiência, e homens que parecem ser sacerdotes, vestidos com túnicas de uma alvura imaculada, gritam e gesticulam, exal-tados; vê também outra cidade, (Roma, talvez), onde um homem de cabelos brancos e olhos muito frios, sentado sobre um enorme trono, encimado por duas majestosas águias, com um cetro na mão, é ovacionado por uma multidão inumerável: vê palácios e-normes, com colunas imensas, de vinte côvados e mais, ornadas com magníficos capitéis, e dentro desses palácios, que também são templos e edifícios públicos, homens vestidos com togas de magistrados e túnicas de sacerdotes; e eles pronunciam julgamentos e recitam salmos; lá também estão muitos escribas com estiletes e tabuinhas de cera nas mãos, anotando cifras e registrando eventos e nomes, onde entre tantos, ele também lê o dele; e vê papiros e rolos, incontáveis rolos de escritas, que se derramam como enxurradas pelos pórticos dos edifícios e inundam as ruas.E quem os lê não os entende e quem os entende guarda para si o entendimento e apregoa coisa diferente do que realmente eles querem dizer. E ele lê todos esses livros e os compreende e sua voz quer dizer o que significam; mas ninguém o escuta porque o mun-do é um imenso teatro sem acústica, onde as pessoas discursam sem falar, escutam sem ouvir, cantam sem melodia nem tom. E ele vê depois, centenas, milhares de homens marchando, com suas armaduras de guerra e gládios pendurados na cintura. A multidão de lanças, escudos e penachos emplumados, balançando ao vento, formam uma visão ao mesmo tempo fascinante e assustadora; num relance, vê todos os reinos do mundo e os reis que os dominam, e eles estão em assembléia e clamam e erguem espadas em grande alarido; vê a sua pequena oficina de carpinteiro, solitária, escura e abandonada em Nazaré e sua mãe a derramar farinha sobre uma pedra e amassar com as mãos a massa densa do pão; e lá está também seu falecido pai, José, com a plaina a alisar uma tábua, passando nela a mão para sentir-lhe a textura, e a Voz, mais uma vez, lhe diz:
“ Este mundo é Meu e o darei a ti, se fizeres o que Vou te pedir.”


João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 18/06/2011
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