– Para onde disseste que ias? Pergunta o fariseu.
– Para Jerusalém –, responde o garoto.
– Que vais fazer em Jerusalém?
– Vou á escola de José de Arimatéia estudar. Quero ser um rabino.
José de Arimatéia! É impossível ao fariseu não pensar no irmão que há muito tempo não vê. “ Esse, certamente escolheu a melhor parte”, pensa Judas, lembrando-se do irmão que preferiu ficar em Jerusalém e tornar-se um Rabban famoso, ao invés de pegar em armas para defender a independência de seu povo.
– Por que tu queres ser um rabino? Não seria melhor ser um soldado e lutar pela liberdade de Israel? Pergunta o fariseu.
– Não –, responde o garoto, desta vez com convicção.
– Por quê? – Desprezas os que lutam pela liberdade do teu povo?
– Não. É que eu não creio que Israel possa ser libertado pela espada e pelo sangue do nosso povo.
– Como esperas que a nossa liberdade possa ser conquista-da?
– De qual liberdade estás falando? Do corpo ou da alma?
– Como consegues diferençar uma da outra?
– A liberdade do corpo pode ser comprada com dinheiro ou conquistada pela espada, a da alma só Deus pode dá-la ou tirá-la.
– Israel sofre por ter que pagar tributo a potências estrangeiras, por não poder escolher seu próprio destino, por não poder viver segundo suas próprias leis. Não é essa a liberdade que mais importa defender?
– Acho que devemos busca primeiro a liberdade do espíri-to. O resto virá como conseqüência ─ diz o garoto.
– Por que dizes isso?
– Por que penso que há mais grilhões no espírito do povo de Israel do que nos seus pés. Libertemo-lo primeiro dessas a-marras.
– Que grilhões são esses de que falas? ─ pergunta, surpre-so, o fariseu.
– Os atos que Deus nos ensinou com forma de comunica-ção com Ele se tornaram serviços prestados por uma casta sa-cerdotal que cobra caro por eles. Hoje, as obrigações que o Templo nos impõe são mais pesadas que os tributos que os ro-manos exigem de nós
– Achas então que deveríamos abolir o Templo?
─O que é mais importante? O templo ou a divindade a quem ele é erigido?
─Como se pode adorar a Deus sem um Templo?
– Deus é espírito e quem quiser adorá-lo deve fazê-lo em espírito. Não há necessidade de templos nem de rituais ou ofe-rendas. Mais de misericórdia do nosso coração se agrada Ele do que do sangue e da gordura dos animais imolados no altar dos sacrifícios.
– A religião dos nossos pais nos ensina a santidade dos rituais e dos sacrifícios. Estás a negar isso?
– O homem que trabalha para ganhar honestamente a sua vida; que cria a sua família no respeito às leis e no temor ao Senhor; que procura amar ao próximo na forma que ama a si mesmo e aos seus, faz maior sacrifício que aquele que dá ofertas no Templo, pois uma existência de virtude vale mais do que o sangue dos animais que se derrama no altar.
– Não têm valor também aqueles que sacrificam suas vidas por amor à sua pátria e seu Deus?
– Tens certeza que te sacrificas pela pátria e por Deus? Não será apenas por tu mesmo que lutas?
– Eu sei que luto por Deus e pela pátria, e que esse é um grande sacrifício.
– Ainda que esse seja maior do que um sacrifício oferecido no altar do Templo, ele é menor do que aquele que dedica a sua vida ao serviço do próximo e da felicidade humana.
– Quem é o meu próximo?
– Aquele que precisa de ti.
– Não são os nossos filhos, parentes, amigos e compatrio-tas, os nossos próximos?
– Esses e todos os outros que batem à tua porta.
– Mesmo os romanos, os samaritanos, os gentios de toda espécie, os ímpios que não conhecem o nosso Deus nem respei-tam as nossas crenças?
– Se amarmos somente os nossos amigos e parentes, que diferença haverá entre nós e os gentios? Pois isso eles também fazem. Se quisermos ser diferentes deles, temos que viver e fazer as coisas de modo diferente.
– Que queres dizer com isso?
– Que não resistais ao mal. Tudo que tomares pela força serás forçado a entregar para alguém mais forte. A aplicação da força gera sempre uma resistência que exige força maior para suprimi-la. A verdadeira conquista só pode ser feita pelo amor.
– Devemos então amar aos nossos inimigos?
– Sim. Ama o teu inimigo, ora para o seu bem. E então não o verás mais como inimigo, mas como irmão e amigo.
– Então não devemos odiar e matar os romanos, que nos escravizam, roubam e matam?
– Cada árvore dá o fruto da sua espécie. Não podem nascer figos de amendoeiras nem amêndoas de figueiras. A violência gera a violência, da mesma forma que a paz gera a paz.
– Então devemos tolerar os romanos em nossa terra e acei-tar o seu jugo?
– Se concertares com teu adversário enquanto estás a cami-nho do tribunal ou do lugar da peleja, evitarás ser condenado ou morto.
– Aconselhas a negociação ao invés da guerra?
– A guerra não acabará com a guerra, pois o vitorioso nunca se contenta com a vitória, nem o vencido jamais se conforma com a derrota.
– Quem vos ensinou essas coisas?
– O Pai, que está nos céus, me ensinou.
– Quem é esse Pai de quem falas?
– O que fez o mundo e todas as coisas que há nele. E pôs na natureza a única sabedoria que vale a pena aprender.
– De que sabedoria falas?
– Não vês tu que a árvore que resiste à tempestade mais violenta é aquela que mais consegue se vergar? Não sabes tu que para assaltar a casa de um valente é preciso primeiro entrar nela e manietar o valente? Não viste ainda que para conduzir alguém pelo teu caminho é preciso que primeiro aprendamos a a-companhá-lo por uma boa parte do caminho dele?
– Falas por parábolas. Explica isso claramente, para que eu possa entender-te.
– Se vês que teu adversário é mais forte, não é melhor con-sertares com ele ao invés de pelejares? Já viste um adversário mais forte que tu tornar-se teu amigo?
– Quem pode ser mais forte que o Deus de Israel, que nos escolheu para o seu favor?
– Crês mesmo nisso? A vida ainda não vos ensinou coisa diferente?
– Que queres dizer? Que Israel não é o povo de Deus?
– De que Deus falas?
– Do Deus de Israel.
– Não é o Deus de Israel também dos gregos e dos roma-nos?
– Estás a dividir com os gentios o nosso Deus?
– Deus não é propriedade de nenhum povo em especial. To-dos os povos pertencem a Ele.
– Mas Israel é o povo que Ele escolheu entre todos. Tu, sen-do judeu, negas isso?
– Não. Todo pai tem um filho primogênito, ou um predileto, a quem ele coloca como gestor da sua herança. E por isso, dele espera mais do que dos outros, pois o preparou para que servisse de amparo para a família e exemplo para os demais. Mas isso não significa que Ele o ame mais que aos demais filhos que gerou.
–Talvez exista verdade no que dizes, mas isso significa que devemos entregar nosso país aos nossos inimigos?
–Não dizem os Livros Sagrados que o Senhor nos dará um novo reino e uma nova ordem e que nela todos terão o lugar que merecem?
– Falas do reino do Messias?
─ Falo do reino que um dia existirá no coração dos homens.
─ Como será esse reino? A quem pertencerá? Quem o go-vernará?
– Não será um reino com um território, um povo, uma lín-gua, uma religião. Ele não terá dono nem governo, pois não será de ninguém, mas de todos. Será um reino da consciência.
– Nesse reino de que falas, terão lugar também os gentios, que não crêem em nosso Deus?
– Israel é uma idéia na mente do Senhor. Uma idéia de nação que deveria servir de modelo para a Sua criação. Todos os povos se guiariam pelo seu exemplo. Para isso Ele lhes deu a Sua lei. Mas seus líderes fizeram dela uma justificativa para o privilégio de poucos. A nação que hoje temos é um reino de hipócritas, parasitas, mentirosos e onzenários, governado por pessoas que fazem leis em benefício próprio e jogam sobre os ombros do povo fardos pesados que nem com um dedo querem levantar. Não foi essa a nação que o Senhor escolheu para a sua glória.
– Não és muito jovem para fazer tal julgamento? Que sabes tu das leis de Israel e daqueles que a interpretam e aplicam? Julgas entender mais que os anciãos das assembléias e os sacer-dotes do Templo?
– Hoje, nas cadeiras de Moisés e Aarão estão sentados os fariseus, os saduceus e os escribas. Conheces a hipocrisia deles. Oram em voz alta, para que todos escutem; mandam que se to-quem trombetas quando vão ao Templo oferecer o dízimo, para que todos vejam o quanto são zelosos. Em segredo, porém, for-nicam, mentem, dizimam a casa das viúvas, cobram por seus sacramentos muito mais do que eles valem. Buscam os primeiros lugares nos banquetes e o reconhecimento nas ruas. Cultivam a soberba e desprezam a humildade. Não é a Justiça de Deus que buscam, mas os bens do mundo e as facilidades que eles compram. Como podem esses homens arrogar o direito de serem os intérpretes da Vontade Dele? O Deus que eles proclamam será o verdadeiro Deus, ou apenas o reflexo de sua sede de poder? Não é por isso que eles dizem que ninguém pode ver o rosto de Deus? Não é por isso que eles dizem que Deus só se mostra aos homens pelas costas? Não, não é para o Rosto Dele que temem olhar, mas sim, para seus próprios rostos. Por isso inventaram a mentira de que Deus fez o homem á sua imagem e semelhança. Temem olhar para Deus face a face por só veriam os próprios rostos. Estes sim, são os podem matá-los de vergonha e não a face de Deus com a Sua Luz gloriosa.
Judas Galileu fica em silêncio por alguns instantes. Ele, que é fariseu, e um dia também compartilhou dessa camarilha que o jovem carpinteiro denuncia com tanta ênfase, não pode deixar de pensar que o rapazinho tem razão. Ainda mais por que fora justamente essa elite, essa gente que se arrogava no direito de interpretar a Vontade do Senhor que lhe voltara as costas e o chamava de bandoleiro e salteador.
– No entanto, se o Templo e as leis desaparecerem, Israel também desaparecerá ─ diz Judas, mais para si mesmo do que para responder ao ácido discurso do rapazinho.
– Não será assim–, responde com convicção o jovem. Israel viverá para sempre no concerto das nações, por que é uma idéia e uma idéia não morre. Cada pensamento emitido pelo homem é uma entidade que nasce e sobrevive eternamente, co-mo um livro posto à disposição da humanidade para ensinamen-to e reflexão. Israel, no entanto, deverá sofrer por ter se erigido como povo escolhido para representar na terra a idéia da perfei-ção e não ter conseguido realizar com sucesso essa missão. Ci-úme, ódio e inveja serão a conseqüência dessa pretensão. Israel nunca terá uma verdadeira paz. No entanto, muitas nações surgi-rão, atingirão o apogeu, como antes destes nossos dias o atingi-ram os egípcios, os hititas, os assírios, os caldeus, os persas, os gregos e agora os romanos; e desaparecerão no limbo do tempo, como esses antigos e altivos povos. Israel sobreviverá para sem-pre no conserto dos povos e na listagem das nações, como sím-bolo de um sonho longamente acalentado pelo espírito humano, mas infelizmente boicotado pela arrogância de uns poucos. Essa será a sua recompensa.
– E a liberdade longamente sonhada pelo nosso povo? E o reino prometido pelos profetas? Essas promessas não serão cumpridas, esse reino nunca virá? Pergunta Judas.
– Com liberdade poderá viver o povo de Israel num futuro distante. Mas nunca com verdadeira paz. Mas esse reino, que todos esperam, é diferente do que pensam ser.
– Como será esse reino?
– Um reino do espírito, aberto a todas as pessoas e não apenas aos filhos de Israel.
– Como será possível a existência de um reino assim?
– Esse reino já existe e está dentro de cada um de nós.
– Bem estranhas são essas tuas palavras, meu rapaz, e mais estranho ainda que saiam da boca de um rapazinho como tu.
– O Senhor, às vezes, revela aos simples aquilo que Ele oculta aos sábios.
– Fazes bem, meu rapaz, em querer ser um rabino. Mostras mais sabedoria do que muitos que já ostentam esse galardão. Porém, amargas e desesperançadas são as tuas previsões, e creio que sabes onde esse discurso te levará.
Judas fica pensativo por alguns instantes. Depois continua. – Mas talvez tenhas razão. É possível que Israel necessite mais de sábios do que de homens de guerra. Todavia, cada um deve cumprir o seu destino. Depois de desembainhada a espada, difí-cil é fazê-la voltar à bainha, e mais custoso ainda é convencer a mão que a empunha a trocá-la por outra ferramenta. Feliz de ti se não precisares jamais usá-la. Gostaria de levá-lo comigo para fazer de ti um soldado, mas vejo que Deus o guarda para outra missão. Oxalá sejas mais bem sucedido nela do que eu na minha ─ diz o fariseu, com um suspiro.
– Deixem-no dormir e não o incomodem mais – ordena o homem de chaluk listrado, para os mal encarados indivíduos que, durante todo o diálogo, não haviam pronunciado palavra.
– Descansai vós também, porque amanhã, bem cedo ata-caremos a fortaleza de Alexandrium.