Um viajante que quisesse ir de qualquer lugar da Galiléia a Jerusalém naqueles dias, certamente iria até Séforis e dali seguiria pela Via Maris no sentido de Tiberíades, junto ao lago, para em seguida pegar a estrada que acompanha o curso do Jordão até Jericó, de onde iniciaria a subida até a capital da Judéia.
Esse seria o caminho mais seguro para se chegar à cidade santuário, pois era patrulhado dia e noite por tropas romanas e bem provido de hospedarias nas numerosas aldeias que se erguiam, umas tão próximas das outras, que num único dia o via-jante podia passar por quatro ou cinco delas.
Para os que não podiam pagar pouso nas hospedarias havia os caravançais. Nesses acampamentos destinados às inúmeras caravanas que trafegavam por aquelas terras, se o viajante não se importasse com a algazarra dos caravaneiros, o fedor dos animais e os mosquitos que atormentavam a todos, homens e bestas, podia-se muito bem passar a noite nesses abrigos, em segurança, sem gastar uma única moeda.
Mas não foi o que o filho de Maria fez. Não sabemos por que artimanhas do destino, ele preferiu pegar a trilha quase deserta que descia de Nazaré pelo Vale do Esdrealon, atravessando o território da Samaria pelo lado leste, passando pelas proximidades dos montes Ebal e Gerizim. Era justamente nessa região que Judas Galileu e seus homens estavam acantonados nesses dias.
Era de se esperar, portanto, que atravessando o território da Samaria pelo caminho que escolhera para ir a Jerusalém, mais cedo ou mais tarde o filho de Maria desse de cara com os guerrilheiros do fariseu rebelde. E foi justamente o que aconteceu numa tarde, em que procurando ele um local para passar a noite, encontra uma gruta nas proximidades de Sicar, aldeia que fica na base do monte Gerizin. E quando se prepara para dormir, eis que surge uma tropa de homens a cavalo que invadem, sem mais cerimônias, o local, sem nem mesmo perceber, de pronto, que havia alguém ali. Só depois de algum tempo, acesos os archotes e preparada a pousada, é que foi percebida a presença de um intruso no local.
É possível imaginar o pavor que tomou conta do rapaz ao ver aquelas caras barbudas e coléricas desabarem sobre ele, todas ao mesmo tempo, fazendo perguntas e vociferando maldições sem conta sobre o pobre diabo que ousara invadir-lhe o esconderijo.
– Fala moleque, se não te arrancamos os colhões e damos de comer aos porcos.
– Quem és, e o que vieste fazer aqui, desgraçado?
– Fugiste da gaiola, não é, passarinho? Pois vieste ao lugar certo. Vamos dar-te o que procuras.
Perguntas, ameaças, palavrões, risos sarcásticos, olhares lôbregos, asquerosos, mãos que examinam, apalpam, revistam, e o rapaz começa a antever o cruel destino que o espera. E pede, grita, implora, suplica, mas já os gatunos o manietam e começam a despojá-lo das roupas, quando na porta da gruta assoma uma figura de homem, vestido com um chaluk de listras vermelhas bem vivas, cabeça coberta com um turbante com os mesmos naipes e as espessas barbas negras já tingidas por fímbrias brancas.
– He!, deixem o garoto em paz –, diz o homem, com voz de quem tem autoridade.
Deve ser ele um líder entre os mal-encarados sujeitos, porque os guerrilheiros obedecem imediatamente à ordem, lar-gando o rapazinho, que se esparrama pelo chão. E ali fica ele, a mirar, assustado, os sujeitos sujos e barbudos que continuam a rir, agora já com algum constrangimento, olhando fixamente para a figura do sujeito alto e forte que se colocou no meio da turba e está a encará-lo também. O dele é um olhar que se poderia classificar entre desconfiado e divertido, mas de modo algum assustador, como os dos outros sujeitos, que continuam a sorrir com seus dentes puídos, as bocas babosas e os olhares lôbregos e sarcásticos.
– Quem és e o que fazes aqui? Pergunta o homem de chaluk listrado e turbante de fariseu na cabeça, mas a sua pergunta não é feita naquele tom ameaçador que acompanhara o inquérito feito pelos outros.
– Meu nome é Jesus, sou filho de José, o carpinteiro, e venho de Nazaré. Estou a caminho de Jerusalém. Entrei nesta gruta para dormir esta noite e amanhã retomar meu caminho –, responde o rapazinho.
– Tomaste o caminho errado e escolheste mal o local para pernoitar –, diz o fariseu. – Não sabes que por aqui se escondem os homens de Judas Galileu, o bandido?
– Não são bandidos, mas patriotas que lutam pela liberdade de Israel, e não tenho medo deles –, responde o garoto.
– É assim mesmo que pensas? Pergunta, surpreso, o fariseu.
A resposta demora alguns segundos para sair, mas finalmente sai.
– Sim –, diz laconicamente e com não muita convicção, o garoto.
É bem possível que essa hesitação, essa pouca ênfase contida na resposta tenha sido fruto de um longo caudal de pensamentos, que nasceu em algum lugar na mente do menino e per-correu uma enorme distância até desembocar naquele tímido “sim”, pronunciado mais para si mesmo do que para uma platéia exterior. Talvez na nascente do pensamento que desembocou naquele “sim”, existisse uma cruz erguida na beira da estrada de Séforis e nela ele veja pendurado um homem. Seu pai, José, o carpinteiro, morreu por causa da rebelião que este outro, a quem o indivíduo de chaluk de listras vermelhas se refere, chamado Judas Galileu, promoveu.
Talvez José estivesse vivo se essa rebelião não tivesse acontecido; e muitas vezes o filho de Maria tentou descobrir se odiava ou não esse fariseu rebelde que fora responsável por sua orfandade, mas nunca chegou a uma conclusão definitiva sobre esse sentimento. Judas lutava pela liberdade de Israel, era o que se dizia, mas ele não sabia que tipo de liberdade se poderia conquistar com algumas centenas de espadas contra os invencíveis exércitos de um império inabalável.
Mas que Judas era um patriota ele sempre ouvira sua mãe falar. E mesmo nas horas difíceis, quando escasseavam o pão na mesa e o azeite nas lâmpadas, e todos amaldiçoavam o fariseu pela guerra que encarecia a vida, e pela repressão a que os ro-manos os submetiam, pela insegurança que grassava no país, pelas mortes dos vizinhos, parentes, amigos, que de alguma forma acabaram envolvidos com a guerrilha, enfim, por todo o sofrimento e miséria que essa luta inglória trazia aos judeus, ele nunca vira o ódio brilhar nos olhos dela. Ao invés, era de ternu-ra, enlevo, ou quem sabe, até de admiração aquele olhar, quando o nome do fariseu guerreiro era pronunciado em sua casa.
– Tu o conheceste? Perguntou de certa feita à mãe, e ela não disse que sim nem que não. Mas a impressão que lhe ficou foi que ela omitia informação, pois seus olhos denunciavam a existência de memórias muito vivas dentro de sua mente. Mas em Israel é interdito pela lei e pela crença que uma mãe minta para o seu filho e que um filho duvide de sua mãe. Para que tal estatuto não fosse descumprido, um tácito acordo se fez entre mãe e filho para que tal assunto não fosse mais trazido à baila. Com isso, só lhe restou acreditar no que Maria lhe dissera: que Judas Galileu era um patriota.
– Quem tu disseste que é teu pai? Pergunta o fariseu ao rapaz, que ainda não se recobrou do susto.
– José, o carpinteiro de Nazaré, que morreu em Séforis, crucificado junto com os soldados de Judas – responde ele.
– Quando foi isso?
– Quando Judas atacou Séforis.
Os olhos do fariseu estão pousados no rosto do rapazinho, mas o que ele vê parece estar muito além. São olhos de quem recorda, ou de quem busca nas conexões mentais mais profundas da memória, a explicação para o sentimento que experimenta naquele momento. Se aquele mocinho lhe recorda fatos da sua vida, ou o chama a especular sobre as conseqüências dos seus atos, ele não saberia dizer, e o cronista que esta história registra não ousa inferir, pois não lhe é dado penetrar nas camadas mais profundas da sua mente.
O fato é que o rapazinho lhe trás lembranças de coisas passadas. Talvez de uma mocinha que ele amou com amor de instantes – porque ele se parece com ela, nos olhos negros e profundos, na maneira de falar e gesticular –, ou então quem sabe são lembranças de outra pessoa, porque ele tem certa semelhança com alguém que ele conheceu em outros tempos – alguém que se parece com ele mesmo –, alguém que ele nunca mais viu depois que começara essa guerra.
E não sabe por que, também lhe passa pela mente, veloz como um cometa que brilha no oriente e desaparece no ocidente em questão de segundos, a lembrança de um menino recém nascido que ele visitou em Belém, em casa de um carpinteiro chamado José.
Tantas são as conexões que a mente precisa fazer para produzir um único pensamento, recuperar uma antiga memória! E são tão rápidas que a própria visão interna não consegue a-companhá-las. Por que viria agora à sua mente aquela lembrança? Seu filho, o menino que ele tivera com aquela pastorinha, onde estaria agora? Estaria vivo? Se estivesse, teria a idade desse jovem que olha para ele com medo e desconfiança, mas ainda assim, como a esperar uma revelação, uma resposta para perguntas que ele não faz.
Estranha coincidência é essa, que o coloca frente a frente com um rapazinho, cujo pai se chama José e encontrou a morte em Séforis, justamente num dos eventos mais cruentos dessa sua guerra sem esperança!
Judas pensa na luta fratricida e interminável que ele provocara com sua rebelião e nas conseqüências tristes e cruéis que ela havia trazido para o seu povo. Propriedades destruídas, o povo dividido, famílias desfeitas, milhares de homens mortos, como o pai daquele rapazinho. Eis ali, na sua frente, a lembrança daqueles dias terríveis, em que ele saqueara Séforis e os romanos, para vingar os soldados que ele matara, atearam fogo ao que restara da cidade e passaram a fio de espada os seus habi-tantes. Depois, não contentes com a carnificina, varejaram a região e prenderam todos os que lograram escapar de morrer na batalha e haviam se escondido pelas casas e grutas da região. E com eles um grande número de pessoas que nada tinham a ver com a rebelião, mas tiveram o azar de estar no lugar errado naquela hora. Em conseqüência, eis ali um menino sem pai, como fruto da sua rebelião; eis ali um órfão do seu orgulho, alguém que o seu sonho messiânico desamparou, como a tantos outros que a sua revolta deixou sem lar e sem esperança.
Como seria lembrado no futuro, se futuro houvesse para Israel, e como seria interpretada a sua luta? Herói, bandido, o que lhe reservaria a história? Afinal que diferença isso tudo faz, agora que sabe que o fim está próximo e o resultado pretendido não será atingido? Talvez seja isso o que pensa o fariseu guer-reiro quando olha para o garoto e vê a dança de tantas imagens desfilando ante seus olhos. Não sabe ou não quer distingui-las. Por isso, nem se dá ao trabalho de tentar entender o que está sentindo e encontrar um sentido para tudo isso. Se pudesse re-troceder sobre seus passos, se pudesse imaginar ao menos uma chance de fazer as coisas de outro jeito, ele não teria coragem de sair daquela gruta para reunir os homens que ainda lhe restam para a batalha que se aproxima. Porque dentro de algumas horas, quando o sol despontar atrás das montanhas, ele irá atacar as tropas romanas mais uma vez.