FICÇÃO CIENTÍFICA FILOSÓFICA ESCRACHADA: UM ESTRANHO NUMA TERRA ESTRANHA
Para uma biografia resumida do autor:
www.ordemlivre.org/node/687
Li este livro pela primeira vez aos quinze anos, faz muuuuito tempo.
Foi um rapaz com quem eu passei um fim de semana de sonho e de sangue e de América do Sul, lá em Calhetas, que me indicou, cansado que ele estava de me indicar livros chatíssimos que eu já havia lido (e não tinha gostado, mas que tinham me ensinado bastante) .
Ele disse que já que eu estava alienada entre Agatha Christie, Isaac Asimov, Arthur Clark, passando por Carlos Castaneda, Madame Blavantski e Anne Besant, então ele fazia questão absoluta de que eu lesse este que, disse ele, era um livro de ficçao científica diferente de tudo o que eu já havia lido no gênero, e classificou meu querido Asimov de space-ópera, sem sequer tê-lo lido!
Deixei passar a babquice com um resmungo mal humorado, acendi um cigarro e entornei o copo enquanto ele descrevia como suas impressões o que, eu descobri mais tarde, era a orelha do livro, sem tirar nem pôr (ele lia muito mas era um babaca em vários sentidos), e eu realmente me interessei. Mais pela curiosidade de nunca ter ouvido falar em Robert Heinlein do que por quem indicou.
Ah, tudo, bem, ele não era tão mal assim, até que passamos um tempo muito bom juntos, depois que eu li o livro!
Então, o estranho é um ser humano biologicamente falando, mas sem a menor ideia do que é se ser um ser humano, entendeu?
Ele foi criado por uma espécie diferentíssima e está ainda desenvolvendo sua personalidade como indivíduo de dois mundos quando o livro começa.
Não dá para contar tudo, é claro, mas este livro foi tão importante na minha formação que desde então o persegui em todos os sebos da cidade, em todas as livrarias e em todas as bibliotecas disponíveis (não tínhamos a internet, imaginem a dureza!) e só o reencontrei depois de casada, lá pelos meus vinte e dois anos, quando uma menina linda e inteligente me disse que ele constava da biblioteca de cegos do Parque 13 de Maio. Essa eu tinha deixado passar!
Junto ao Tratado Geral Sobre a Fofoca - Uma Análise da Desconfiança Humana do Psicanalista Jose Ângelo Gaiarsa, este foi, sem dúvida, um dos melhores e mais enriquecedores livros que eu já li na vida.
De lá para cá, já o presenteei a varias pessoas e estou escrevendo sobre ele somente agora por que hoje mesmo um amigo muito querido assentiu em, finalmente, depois de mais de vinte anos, ler um exemplar que encontramos juntos, por acaso, no mesmíssimo sebista que eu frequento desde que usava fraldas.
Vamos ao que interessa:
O enredo é a trajetória que Valentine Michael Smith percorre para se tornar, culturalmente, um ser humano, uma vez que ele foi criado por... marcianos.
Não riam!
O livro é de 1961, portanto, antes da ida do homem à Lua e Marte parecia o mais provável planeta para ser habitado por litle green men.
Nesta trajetória, as pessoas que rodeiam o personagem título são também elas transformadas, num processo de amadurecimento e descobertas, participando ativamente da vida de Michael e servindo de anteparo e apoio contra os horrores do mundo futuro, nem sempre com diligência e no mais das vezes de forma cínica e não convencional.
O tema é a cultura humana vista pelos olhos de um extraterrestre e ensinada por personagens dos mais variados entre si: um repórter investigativo e rebelde contra o sistema vigente, uma enfermeira linda e desejável com instintos maternais mas inteligente embora um pouco bobinha, um escritor de livros instântaneos e vazios que lhe causam nojo, três secretárias adolescentes amorosas e competentes, com nomes bíblicos que vivem com o escritor numa mansão luxuosa e protegida como uma fortaleza, uma vidente de araque mas de bom coração, o governante máximo e sua esposa, um pastor/padre e toda a sua denominação, os tripulantes da nave que resgataram Michael, inclusive um semântico e um médico e alguns marcianos citados por terceiros.
Depois aparecem uma mulher completamente tatuada que anda com uma píton, um casal em vias de separação e vários outros secundários, além de uma turba enfurecida e delegados de cadeias suburbanas.
Os diálogos do repórter são engraçados e politizados, os da enfermeira são até liberais para a época, mas os do escritor sibarita são os melhores!
Ele é, sem dúvida, um filósofo cínico da sociedade em que está inserido, e dos seus lábios partem a maioria das linhas que eu tive que sublinhar para não esquecer nunca.
Das discussoes em meio a perseguições aéreas, sequestros, cultos de adoração e um pouco de sexo e prisões surgem temas como Deus, religião, família, mídia, propaganda, preconceito, resitência organizada, política, Gulliver, luta de classes, arte, literatura clássica, economia política, riqueza, relações de sexo livre, gravidez, paternidade e o poder do dinheiro.
Nada de navezinhas voando e explodindo no espaço ou monstrinhos de antenas... nadinha mesmo. Ainda acho inacreditável, no mal sentido, que o filmeco Tropas Estelares tenha sido baseado num livro do mesmo R.H... Incrível...
Há sim, alguns poderes que passariam por ridículos ou místicos nas mãos de outro autor que não o Robert, mas que ali fazem todo o sentido do mundo.
Que grande filme o Kubrick não faria com este livro! Ou talvez, o Terry Gillian ex-Monthy Python, que brilhou com os Doze Macacos, baseado no curta La Jetté.
Há ainda na história uma divertidíssima visão da vida após a morte e algo de canibalismo.
Se eu falar mais, estrago a surpresa, e, como nunca escrevi uma resenha de um livro antes, perdoem as digressões pessoais, está bem?
O livro todo é divertido, triste, irônico, cínico, crítico e surpreendente de uma forma satírica, comovente e mordaz e não passa apenas por ficção científica, de jeito nenhum!
Por propor novas visões e questionar tudo e todos, considero este livro um tratado filosófico muito acima do historiográfico O Mundo de Sofia, posto que não satura o leitor com citações cansativas nem com as aulas entendiantes do senhor Gaarder, e exercita o pensamento e o criticismo, provocando o que o norueguês não provoca: o pensar filosófico, a subversão e a atitude de desconfiança em relação a tabus e tradições do pensamento humano há muito estabelecidos e sacrossantos, se é que posso dizer isto aqui sem ser assassinada.
Quem quiser ser surpreendido por um velho livro de cinquenta anos atrás, leia!
P.S.: E, para me redimir com os fãs do Jostein, o filme dO Mundo de Sofia é bem legal, a sonoridade da Língua Norueguesa e a beleza da protagonista salvando tudo.
E, sim, que tal O Dia do Curinga? Esse sim, um livro e tanto, apesar do pano de fundo completamente insano e beirando os continhos para criancinhas dos Irmãos Grimm..
VIDA INTELIGENTE NA NET:
www.tripasecoracao.blogspot.com
Para uma biografia resumida do autor:
www.ordemlivre.org/node/687
Li este livro pela primeira vez aos quinze anos, faz muuuuito tempo.
Foi um rapaz com quem eu passei um fim de semana de sonho e de sangue e de América do Sul, lá em Calhetas, que me indicou, cansado que ele estava de me indicar livros chatíssimos que eu já havia lido (e não tinha gostado, mas que tinham me ensinado bastante) .
Ele disse que já que eu estava alienada entre Agatha Christie, Isaac Asimov, Arthur Clark, passando por Carlos Castaneda, Madame Blavantski e Anne Besant, então ele fazia questão absoluta de que eu lesse este que, disse ele, era um livro de ficçao científica diferente de tudo o que eu já havia lido no gênero, e classificou meu querido Asimov de space-ópera, sem sequer tê-lo lido!
Deixei passar a babquice com um resmungo mal humorado, acendi um cigarro e entornei o copo enquanto ele descrevia como suas impressões o que, eu descobri mais tarde, era a orelha do livro, sem tirar nem pôr (ele lia muito mas era um babaca em vários sentidos), e eu realmente me interessei. Mais pela curiosidade de nunca ter ouvido falar em Robert Heinlein do que por quem indicou.
Ah, tudo, bem, ele não era tão mal assim, até que passamos um tempo muito bom juntos, depois que eu li o livro!
Então, o estranho é um ser humano biologicamente falando, mas sem a menor ideia do que é se ser um ser humano, entendeu?
Ele foi criado por uma espécie diferentíssima e está ainda desenvolvendo sua personalidade como indivíduo de dois mundos quando o livro começa.
Não dá para contar tudo, é claro, mas este livro foi tão importante na minha formação que desde então o persegui em todos os sebos da cidade, em todas as livrarias e em todas as bibliotecas disponíveis (não tínhamos a internet, imaginem a dureza!) e só o reencontrei depois de casada, lá pelos meus vinte e dois anos, quando uma menina linda e inteligente me disse que ele constava da biblioteca de cegos do Parque 13 de Maio. Essa eu tinha deixado passar!
Junto ao Tratado Geral Sobre a Fofoca - Uma Análise da Desconfiança Humana do Psicanalista Jose Ângelo Gaiarsa, este foi, sem dúvida, um dos melhores e mais enriquecedores livros que eu já li na vida.
De lá para cá, já o presenteei a varias pessoas e estou escrevendo sobre ele somente agora por que hoje mesmo um amigo muito querido assentiu em, finalmente, depois de mais de vinte anos, ler um exemplar que encontramos juntos, por acaso, no mesmíssimo sebista que eu frequento desde que usava fraldas.
Vamos ao que interessa:
O enredo é a trajetória que Valentine Michael Smith percorre para se tornar, culturalmente, um ser humano, uma vez que ele foi criado por... marcianos.
Não riam!
O livro é de 1961, portanto, antes da ida do homem à Lua e Marte parecia o mais provável planeta para ser habitado por litle green men.
Nesta trajetória, as pessoas que rodeiam o personagem título são também elas transformadas, num processo de amadurecimento e descobertas, participando ativamente da vida de Michael e servindo de anteparo e apoio contra os horrores do mundo futuro, nem sempre com diligência e no mais das vezes de forma cínica e não convencional.
O tema é a cultura humana vista pelos olhos de um extraterrestre e ensinada por personagens dos mais variados entre si: um repórter investigativo e rebelde contra o sistema vigente, uma enfermeira linda e desejável com instintos maternais mas inteligente embora um pouco bobinha, um escritor de livros instântaneos e vazios que lhe causam nojo, três secretárias adolescentes amorosas e competentes, com nomes bíblicos que vivem com o escritor numa mansão luxuosa e protegida como uma fortaleza, uma vidente de araque mas de bom coração, o governante máximo e sua esposa, um pastor/padre e toda a sua denominação, os tripulantes da nave que resgataram Michael, inclusive um semântico e um médico e alguns marcianos citados por terceiros.
Depois aparecem uma mulher completamente tatuada que anda com uma píton, um casal em vias de separação e vários outros secundários, além de uma turba enfurecida e delegados de cadeias suburbanas.
Os diálogos do repórter são engraçados e politizados, os da enfermeira são até liberais para a época, mas os do escritor sibarita são os melhores!
Ele é, sem dúvida, um filósofo cínico da sociedade em que está inserido, e dos seus lábios partem a maioria das linhas que eu tive que sublinhar para não esquecer nunca.
Das discussoes em meio a perseguições aéreas, sequestros, cultos de adoração e um pouco de sexo e prisões surgem temas como Deus, religião, família, mídia, propaganda, preconceito, resitência organizada, política, Gulliver, luta de classes, arte, literatura clássica, economia política, riqueza, relações de sexo livre, gravidez, paternidade e o poder do dinheiro.
Nada de navezinhas voando e explodindo no espaço ou monstrinhos de antenas... nadinha mesmo. Ainda acho inacreditável, no mal sentido, que o filmeco Tropas Estelares tenha sido baseado num livro do mesmo R.H... Incrível...
Há sim, alguns poderes que passariam por ridículos ou místicos nas mãos de outro autor que não o Robert, mas que ali fazem todo o sentido do mundo.
Que grande filme o Kubrick não faria com este livro! Ou talvez, o Terry Gillian ex-Monthy Python, que brilhou com os Doze Macacos, baseado no curta La Jetté.
Há ainda na história uma divertidíssima visão da vida após a morte e algo de canibalismo.
Se eu falar mais, estrago a surpresa, e, como nunca escrevi uma resenha de um livro antes, perdoem as digressões pessoais, está bem?
O livro todo é divertido, triste, irônico, cínico, crítico e surpreendente de uma forma satírica, comovente e mordaz e não passa apenas por ficção científica, de jeito nenhum!
Por propor novas visões e questionar tudo e todos, considero este livro um tratado filosófico muito acima do historiográfico O Mundo de Sofia, posto que não satura o leitor com citações cansativas nem com as aulas entendiantes do senhor Gaarder, e exercita o pensamento e o criticismo, provocando o que o norueguês não provoca: o pensar filosófico, a subversão e a atitude de desconfiança em relação a tabus e tradições do pensamento humano há muito estabelecidos e sacrossantos, se é que posso dizer isto aqui sem ser assassinada.
Quem quiser ser surpreendido por um velho livro de cinquenta anos atrás, leia!
P.S.: E, para me redimir com os fãs do Jostein, o filme dO Mundo de Sofia é bem legal, a sonoridade da Língua Norueguesa e a beleza da protagonista salvando tudo.
E, sim, que tal O Dia do Curinga? Esse sim, um livro e tanto, apesar do pano de fundo completamente insano e beirando os continhos para criancinhas dos Irmãos Grimm..
VIDA INTELIGENTE NA NET:
www.tripasecoracao.blogspot.com