Depois da morte de José e da derrota de Judas e seus guerrilheiros, aos poucos a vida vai voltando ao normal em Nazaré e os mercadores e caravaneiros que haviam desaparecido por causa da guerrilha também tornam a procurar os serviços da família.
Enquanto executa o trabalho na carpintaria, o filho de Maria fica a tagarelar com eles e indagar de costumes e notícias de terras e povos distantes. Curioso, já sabemos que ele é. Sagaz também, porque sabe distinguir quando estão falando sério, ou quando estão mangando com ele, por causa do interesse que demonstra por tudo que não é rotina e banalidade. Ouve os caravaneiros dizer que em cidades além do território dos partas e dos medos existem homens que se enterram em túmulos por três dias e mais, e de lá saem mais vivos do que estavam quando se enterraram.
─ Como pode ser isso? – pergunta o adolescente, perplexo.
─ Eles aprenderam a controlar a respiração, o fluxo sangüíneo, todos os trabalhos do corpo, de modo tal que parecem estar mortos em vida –, responde o repórter dessas estranhezas.
─ Diz-se também que são espetados rombudos cravos em suas carnes e eles nada sentem. Que dormem sobre estrados feitos com pontiagudos pregos e estes sequer lhes arranham a pele –, afirma outro caravaneiro ao atônito adolescente.
─ Sabias também que no Egito há rofés que conhecem todas as ervas capazes de curar qualquer mal? Terapeutas, eis como são chamados esses sábios conhecedores da natureza humana e de todos os mistérios existentes entre o céu e a terra. Muitos expulsam demônios e tornam limpos de suas feridas os leprosos –, diz outro viajante, o que aumenta ainda mais a curiosidade do rapazinho.
Ao jovem filho de Maria essas informações não caem em território de estranheza, pois de longe já imagina que todos os males que infernizam a vida dos homens – tanto os do corpo quanto os da alma – talvez nada mais sejam que manifestações externas da ação de um desses espíritos malignos que se hospedam na mente das pessoas. Assim, pensa ele, todas as doenças devem ser frutos da presença de espíritos maus nas cabeças dos seus hospedeiros. Expulsos eles, elas também desaparecerão. E como sabe também que tais entidades não existem por si mes-mas, mas apenas como frutos da própria atividade de pensar e viver, conclui que eles nada mais são que os maus pensamentos, as mágoas, as culpas, as esperanças frustradas e os sonhos não realizados.
E daí basta aprender a pensar com competência e a trabalhar com eficiência para realizar os sonhos e concretizar as esperanças de conquistar uma vida plena de felicidade e virtude. Destarte, perdoar as ofensas, praticar o amor ao próximo, honrar a Deus e buscar a paz entre os homens é o caminho mais seguro para que o equilíbrio permaneça sempre na mente e a saúde se conserve no corpo. Esses conhecimentos, que ele amadurecerá com o tempo, viriam a constituir o essencial da sua doutrina. E quem os aprendeu a praticar pode testemunhar sobre o bom re-sultado que eles trazem para a vida de quem escolhe viver, verdadeiramente, de acordo com ela. Por isso é que perguntamos, amiúde, se fizemos bem em ter transformado em culto uma experiência que deveria ser de verdadeira aprendizagem.

─ Sabias, meu jovem, que nas cidades da Caldéia e do Egito os sábios lêem o futuro das pessoas e do mundo, pela observação dos caminhos que os astros fazem no céu? –, pergunta-lhe um caravaneiro, ao ver o interesse do garoto por tais coisas.
Não, ele não sabia, mas como pensa que assim no céu como na terra, as coisas acontecem da mesma forma e os rumos que por lá se traçam, por reflexo, também se repetem aqui, essa informação não o surpreende. E ele conclui que o bem que se faz na terra repercute também no céu, da mesma forma que os males. E de lá, igualmente, se dirigem os fluxos dos pensamentos dos entes celestes, para uma melhor sorte das pessoas na terra. E quando por aqui as coisas se complicam é porque também no infinito celeste alguma comoção está em curso. Espelho do céu é a terra, da mesma forma que o corpo o é da alma. Uns e outros se formatam pelos mesmos processos. Essa era a doutrina, que entre os egípcios se chamava maat e entre os povos do oriente se chamava karma, dizem os sábios que ele encontra nessas caravanas, e o filho de Maria vê muito sentido nelas.
Todas essas coisas que ouve excitam o espírito do adolescente e ele fica a tagarelar com os viajantes sobre esses assuntos. Essa atitude, para um judeu tradicional, deve ser mais motivo de escândalo do que de interesse. Sabe ele que Moisés proibiu o povo escolhido de se valer de tais sortilégios e até de se informar sobre essas coisas. A lei dos judeus proíbe a prática da magia, as adivinhações, as visitas a oráculos, a leitura dos mapas celestes, as consultas aos mortos e todos os demais tipos de premonições, presságios e outras manifestações do espírito, salvo as que Ele mesmo inspira aos seus escolhidos. Só ao Sumo Sacerdote e aos seus profetas cabe a interpretação do que não está escrito nos livros sagrados com todas as letras. O resto é magia, bruxaria e blasfêmia. Por isso, já no albor da sua estranha sabedoria, o filho de Maria sente que precisará de muita coragem para romper os paradigmas nos quais o espírito do seu povo tem sido conformado.
Magos, feiticeiros, adivinhadores, necromantes, astrólogos, anátema sobre eles! Lapidai-os, matai-os onde forem encontrados a praticar as suas artes demoníacas! Isso é o que cons-ta da lei. Mas o filho de Maria não só recebe essas informações com incontido interesse, mas também as repete, excitado, para quem quiser e tiver coragem de ouvi-lo. Eis ai o começo do escândalo, que foi registrado por mais de um cronista.
Maria lhe critica o fato de ficar a fazer incompreensíveis discursos aos jovens da aldeia, ao invés de participar dos seus interesses, como seria próprio a um jovem da sua idade fazer. Ao contrário, ele se põe a ensinar aos poucos que conseguem ouvi-lo o que aprende com os trabalhadores no campo e com os caravaneiros que passam pela aldeia, como se fosse já um experimentado rabi. E na sinagoga, aos sábados, faz mais do que ouvir as pregações e as lições do professor. Prefere ficar a discu-tir pontos específicos da lei e da doutrina, e a querer interpretar as profecias. E faz perguntas, muitas perguntas.
─ Se o Messias é um guerreiro triunfante, então por que se diz que o seu aspecto será sem glória entre os homens e sua figura desprezível entre os filhos dos homens; por que ele não tem beleza, nem formosura? Por que não se faz caso dele, e ele é desprezado entre os homens, o último dos homens, um homem de dores, experimentador de sofrimentos? Por que se fala dele como de um grande herói e depois se diz que é opróbrio entre as gentes? É ele rei ou mendigo? Guerreiro ou profeta? Por que se diz que o Messias é filho de Davi quando o próprio Davi o cha-ma de Meu Senhor? Pode o filho ser senhor do próprio pai?
─ Essas perguntas são impertinentes. Tu és ainda muito jovem para querer saber de todas essas coisas. O Messias é o Salvador e seja ele quem for, profeta ou guerreiro, a Mão do Senhor estará com ele e isso é tudo que precisas saber –, res-ponde com mal disfarçada impaciência o eclesiástico.
Os demais presentes à assembléia também começam a mostrar sinais de irritação e voltam os olhos aborrecidos para o inconveniente perguntador. Este tem sido o corriqueiro nos úl-timos tempos, de sorte que o enxerido adolescente já não com-parece com assiduidade ao culto, o que aumenta a antipatia e a desconfiança do bom e piedoso povo de Nazaré.

É assim que, pouco a pouco, o filho de Maria passa a ser considerado um excêntrico pelo povo da aldeia e pela própria família, corroborando o que mais tarde dele se escreveu, que seus parentes o tinham na conta de pessoa muito esquisita. E isso deve ser bem verdade, pois não se pode considerar normal um rapaz, ai pelos seus dezoito anos, que prefere brincar de filósofo peripatético com uns poucos amigos que se dão ao trabalho de segui-lo pelos ermos e ouvir-lhe as pregações, do que folgar com eles, correndo pelas ruas da aldeia, banhando-se nas cachoeiras, escalando árvores e grandes penhas, explorando cavernas, que tantas existem nessas cercanias de Nazaré e é nessa faina que gostam os rapazes dessa idade de matar o tempo que lhes sobra da lida diária a que todos têm que se submeter.
Como não são muitos que se propõem a compartilhar de suas esquisitices, não leva muito tempo para que ele se torne um solitário que não encontra ninguém com quem conversar. Por isso tem que passar a maior parte do dia a passear pelos campos, meditando, falando sozinho, como se dizia que ele fazia, pois por muitas pessoas fora visto a mover os lábios como a fazer discursos para uma platéia invisível. Provavelmente dessa prática e desses diálogos internos, que ele expressa na solidão dos seus devaneios, é que tenha vindo àquela acusação, que lhe fizeram muitas vezes, que tinha demônio. Pois quem fala sozinho, com quem fala senão com os habitantes das trevas, esses velhacos desencaminhadores que gostam de passar por interlocutores dos solitários e dos atormentados de alma, que não encontram nas lidas diárias e nas coisas simples da vida, ocupação útil para os filhos da suas torturadas mentes?
O filho de Maria já não tem ambiente em Nazaré. O rabino não mostra nenhuma satisfação em vê-lo na sinagoga, perguntando coisas que estão além do currículo escolar e por que não dizer, também da sua própria capacidade de resposta. As indagações que o adolescente faz só podem ser respondidas por eclesiásticos muito mais preparados do que ele, mero professor de sinagoga de aldeia. Constrangimento, consternação e aborrecimento são os sentimentos que ele provoca com suas perguntas e suas observações mordazes. O pior de tudo é a ironia com que ele fala das pessoas que imaginam Deus como um ancião de longas barbas brancas, sentado em um trono entalhado com capitéis dourados, dando sábios conselhos, ordens e admoestações aos anjos, para que estes os transmitam aos homens. “Se Ele fosse assim,” diz ele, “não passaria de um rei ou um profeta e não seria um verdadeiro Pai, o Pai da criação, o Pai Nosso, cujo espírito está nos céus e cuja presença se derrama por todas as coisas animadas e inanimadas do universo, dando-lhes voz e alma, de maneira que até se pode conversar com elas e entender o que dizem.
“Por isso’,diz ele, para escândalo dos ouvintes, ” o Pai e eu somos um, por que Ele está no homem, da mesma forma que todos estamos em todos, já que a família humana é única.”
Isso afirma esse rapaz maluco, que diz ser capaz de entender a língua dos pássaros, conversar com os arroios e aprender deles uma sabedoria que não se encontra nos rolos que se lêem na sinagoga. Desdenha também da idéia de que os homens são feitos à imagem e semelhança de Deus, “pois se Ele nunca se mostrou aos homens, como se pode saber qual é a Sua aparência para se dizer que os homens se parecem com Ele? Deus não tem forma, nem imagem, nem se assemelha a coisa alguma que a imaginação dos homens possa figurar. Deus é espírito,” apregoa ele a quem queira ouvir, com ares de quem tem autoridade nessas coisas. “E quem sabe a forma que tem o espírito para que se possa dizer com que se parece? Pois se nem a Moisés, o homem que Ele escolheu para organizar o povo eleito e fazer dele o seu modelo sobre a terra, Ele se apresentou pesso-almente... Cobre teu rosto com as mãos e quando Eu passar com a minha glória, tu me verás por trás, foi o que Ele disse a Moisés”, lembra o rapazinho aos atônitos ouvintes.
Até agora, só pelas costas Deus se mostrou aos homens, afirma ele. Não seria a hora de Ele mostrar à sua família o seu verdadeiro Rosto?

Tudo isso diz, com ares de quem sabe coisas que ninguém mais parece saber, esse fedelho arrogante e pedante, que além de esquisito também vive a desafiar crenças há muito já conso-lidadas. E essa história do Messias, que ninguém conseguia dar uma explicação coerente, e por isso mesmo, convincente? Afinal quem seria esse Libertador e do que ele os libertaria? Seria ele maior que Moisés, que livrou seus antepassados da servidão no Egito? Mas não diziam os livros sagrados que nenhum outro profeta seria maior que Moisés? Mas de que adiantara a obra de Moisés, as lutas de Josué, toda a saga dos juízes e reis de Israel, se durante toda a história da nação, o que se viu foi servidão e mais servidão? A que conviria outro Libertador? Não era Israel capaz de libertar-se a si mesmo, para precisar que o próprio Jeová tivesse que ocupar-se disso? Quem vivia à espera de um li-bertador mereceria mesmo a liberdade?
Mas seria de uma libertação política que os oráculos estariam falando? Se assim fosse, não seria melhor que toda a nação se alistasse nas tropas de Judas Galileu e empunhasse uma espada em defesa da pátria? Mas a elite do país, os fariseus e os sa-duceus, não diziam que Judas era um bandoleiro? E os essênios, aqueles fanáticos que se recusavam a viver em meio á sociedade e preferiram fundar comunidades isoladas no deserto, para não se contaminarem com a promiscuidade em que diziam viver os judeus? Eles diziam que o Messias seria um reformador da religião e um líder político ao mesmo tempo. Teriam eles razão? Enfim, haveria mesmo um Messias? E se houvesse, quem ou o quê, seria ele? “Talvez ele não seja mais que um mito, um sonho que a nossa mente medrou para compensar as nossas fraquezas”, diz ele para os atônitos ouvintes.
Dessa maneira, não é difícil imaginar o quanto as pessoas da aldeia o querem ver pelas costas. Nessa conta, inclusive, podemos colocar seus próprios parentes. Estes não lhe perdoam os ares superiores e a pretensa sabedoria que ostenta em relação a eles. De fato, ninguém gosta de alguém que lhes pareça estar em patamar de inteligência superior, e essa é a imagem que o excêntrico adolescente passa aos irmãos e ao povo simples do povoado. “ Ele é pessoa muito esquisita, “ dizem Judas e as irmãs, quando se referem a ele.
É lógico que para quem só conhece o trivial ensinado na sinagoga, as muitas leituras que o menino fizera e as informações que obteve com os caravaneiros, sobre outros povos e países, aos olhos dos habitantes de Nazaré se apresentem como pedantismo e arrogância, quando não estrambóticas concepções urdidas pelos servos de Belzebu, ou pelo próprio príncipe dos demônios, que o garoto hospeda em sua cabeça, dizem os seus compatriotas. Razão pela qual, a antipatia e a má vontade no trato com aqueles aldeões logo lhe complica de tal forma o rela-cionamento, que ele começa a ter muitas dificuldades para viver ali. Dele desdenham os membros da família; dele desconfiam os habitantes da aldeia; evitam-no, também, os rapazes da mesma idade. As mocinhas, malgrado a sua bela figura, temem qualquer aproximação com ele.
E assim, cada vez mais só, cada dia mais taciturno, com um imenso golfo espiritual a alargar-se entre ele, sua família e os habitantes da aldeia, o filho de Maria chega à conclusão que é preciso sair a buscar outros rumos. Mesmo sabendo da inevita-bilidade do fato, não é sem muito pesar que Maria aceita que seu filho, ao completar o décimo oitavo ano de vida, abandone a casa paterna – agora sem pai que justifique o adjetivo –, e saia a procurar o seu destino. Sabia que isso teria que ocorrer mais cedo ou mais tarde, pois viu logo que o espírito do rapaz não cabia em Nazaré e precisava de um mundo maior para se expandir.











João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 02/06/2011
Reeditado em 02/06/2011
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