RESENHA - FELICIDADE CLANDESTINA - CLARICE LISPECTOR

Lispector, Clarice, 1925-1977 L753f

Felicidade clandestina: contos/Clarice Lispector. – 7 .ed. – Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991.

Esta obra, que agrega vários contos mágicos e instigantes de nossa autora, não pode ser considerada apenas um apanhado. Não, porque a sensação ao entrar em cada conto é de que há uma conectividade sutil entre eles, e isto é que nos abriga ao prazer. A inquietação de Clarice salta a nossos olhos o tempo todo, e se espalha por nossas veias, dando-nos um cantinho no cenário onde tudo ocorre. Parece, de fato, estarmos espreitando, ali no momento em que tudo se sucede; às vezes torcendo, às vezes intrigados, às vezes atônitos, outras vezes indignados e recobrados veementemente.

Em Felicidade Clandestina, no conto do mesmo nome, Lispector não somente descreve os fatos miticamente lúdicos, como também nos convoca para partirmos no acaso da insistência com uma perseverança transbordante. Motivos óbvios que nos acometem cotidianamente causam quase um caos mental e espiritual nas linhas da obra. No desfecho de felicidade Clandestina, quando enfim a menina consegue ter em suas mãos o livro do Lobato, a autora nos condensa da aridez de um tempo à fertilidade de outro: ‘Não era mais uma menina com um livro: era a mulher com seu amante’ (pag.18). Seguindo, outros contos como O Grande Passeio, delicada e carinhosamente a construção nos atormenta: as implicâncias originárias de uma convenção de preconceitos contra uma senhora idosa, deixa-nos abismados e sufocados. Nesse conto, comungamos com a personagem e aprendemos a resignar aos açoites juvenis, e o véu é dilacerado quando Mocinha (como exigia ser chamada) morre.

As fases e suas nuances, em cada passagem, afaga e depreda de uma vez só. A genialidade da ucraniana, a mais brasileira de todas, espalha-se pelas páginas marcando expressões tácitas e gritantes, de um mesmo modo, e em níveis elevados, sendo percebidos gradativamente. Caminhamos agarrados as mãos suadas de Clarice por labirintos de minúcias e sob fortes e contundentes indagações. É um esvanecer falso e do mesmo modo nos sentimos em todos os lugares e quando tudo acontece. Fazer de inseto, ovo e livro, personagens vivos e ativos dentro do contexto; torná-los protagonistas e ressoá-los de forma grandiosa, como chaves que abrirão as portas para o leitor; converter a obscuridade do mundo ao brilho individual; isso é majestoso dentro de Felicidade Clandestina.

Constituem-se de abstrações tórridas propositais, sem falsetes de alma. Esta obra se inclina lindamente, somente para se impulsionar para um salto magistral. Atrair sensações incomuns e direcioná-las para fatores que julgamos obsoletos: Lispector veleja fácil, leve e coerente, dentro da incoerência convencionada por olhos gerais. Nítidas e claras são as sensitivas complacências das frases, que parecem a todo momento dar um final certo à contextualização dos fatos, e esse é protelado harmonicamente. As ranhuras dos dizeres dos célebres e triviais momentos se mesclam e nos arremetem a transpor as barreiras do óbvio. Voamos e rastejamos, pulverizados e despejados, ao lado de Clarice seguimos pelas páginas desta exímia obra.