Um cordeiro sem manchas pelos pecados do homem, um homem perfeito pelos pecados do mundo! Bela metáfora criou aquele cronista, que sendo judeu, não admitia que sua nova fé pudesse ser descolada das tradições do seu povo. Que aquele que destruiu o Templo e a santidade dos sacrifícios fosse o último sacrificado, dando seu próprio sangue como moeda de troca por conta da bárbara tradição que pretendeu abolir! Afinal, o Templo é a universidade de onde provém a educação, a cultura e a lei de Israel. Se alguém quisesse mudar tudo isso, teria que primeiro derrubar o Templo.
É difícil saber quando uma crença se instala em nossa mente mais profunda, pois é nessas regiões ignotas que ela começa a desenhar os seus contornos e a partir desse desenho, gerar as visões que a estimulam. Ainda que a consciência não alcance a razão de tais imagens, elas povoam o território dos nossos sonhos e assombram as fronteiras dos nossos sentidos com aparições fugazes, instantâneas, como fantasmas subitamente trazidos à tona pelos abalos sísmicos, que muitas vezes a visão de um símbolo provoca nessas camadas mais íntimas do nosso sistema neurológico.
Um pastor que sacrifica o seu mais belo carneiro, pensando com isso estar salvando o restante do rebanho, poderá ser colocado na conta dos néscios? De certo que não, porque nessa crença foi criado. Mais ainda; se o seu rebanho vier a prosperar, ainda que não seja por conta do sacrifício feito, razão nunca terá para duvidar que não foi por causa dele que a prosperidade veio.
As nossas crenças nunca são instaladas pela lógica interna que justifica seus postulados, mas pelas emoções que elas nos provocam. E estas nunca são visíveis, ou melhor, não estão na superfície da nossa consciência, como sabedoria catalogada, organizada e compreendida, mas sim nos porões da inconsciência, na forma de temores, desejos, frustrações, enfim, fantasmas que a consciência reprime e esconde atrás da persona, essa máscara que vestimos para a vida social.
Mas para um menino, cuja sensibilidade ainda não foi contaminada por semelhantes marcas, é possível entender porque ele observa com perplexidade os animais sendo sacrificados no altar dos holocaustos. Sente o olfato ferido pelo cheiro nauseabundo da gordura queimada nas piras que são erguidas ao lado desses altares; e pela expressão que faz, tampando as narinas e franzindo a testa com desgostosa impressão, é possível imaginar que ele não gosta do odor das adiposas graxas queimando nas fogueiras dos sacrifícios, e que, ao queimarem, levantam labaredas azuladas que dançam de forma voluptuosa e luxuriante a cada lambida do vento.
O espetáculo lhe inspira estranhos sentimentos e eles são acompanhados de uma angústia que ele não sabe explicar. Talvez tenha pena dos animais amarrados nas estacas em frente às bancas e das aves presas nas gaiolas de madeira. Sabe que logo estarão mortas e o seu sangue tingindo as pedras dos altares. Não seria nem um pouco estranho que em sua mente de adolescente – que não alcança a necessidade de tais sacrifícios –, a sensibilidade para com a sorte desses pobres bichos lhe tenha inspirado a vontade de sair a desamarrá-los todos, abrir aquelas gaiolas, soltar as aves, virar as barracas dos cambistas, escorraçá-los, enfim.
Talvez seja isso o que lhe passa pela cabeça, ou pelo coração, pois não sabemos ainda onde é que medram essas sensibilidades, apenas sabemos que as temos, por que a expressão do rosto e os olhos, quando na presença de coisas que nos inspiram tais sentimentos, não conseguem esconder o que se passa dentro de nós. E o olhar do menino, que contempla a rumorosa feira que se armou em frente ao Templo, não deixa dúvidas a respeito disso. Não é um olhar de respeito pelas tradições do seu povo; é um olhar, dir-se-ia entre perplexo e pouco convencido de que Jeová realmente possa gostar desse tipo de coisas. Tempos depois, esse programa que sua mente instala nesse momento iria desencadear o único ato de violência que dizem ter ele praticado, ou seja, aquele em que, tomado de justificada ira, expulsou do Átrio do Templo os vendilhões que fizeram da casa do Deus de Israel um covil de ladrões, segundo a sua própria fala.
Mas essas não são as únicas impressões que marcam o espírito do garoto. Para um menino de treze anos, que jamais saiu de sua aldeia nas montanhas, onde vivem pouco mais de mil pessoas, e que jamais se ajuntaram em um único dia, em um único lugar, é de supor que o espetáculo dessa multidão que grita, reza, vocifera, chora, ri, transpira, cospe, fede, arrota, peida, deva ser algo que impressiona sua mente de forma indelével. Em Nazaré, a maior quantidade de pessoas que ele já vira reuni-da em um único lugar era a assembléia que se reunia aos sábados, para os ofícios da sinagoga ou a reunião dos camponeses, que se juntavam em épocas específicas do ano para fazer as colheitas e comemorar o Pentecostes. Mesmo em Séforis, então capital da Galiléia, onde fora algumas vezes, juntamente com seu pai e seu meio irmão Judas, para entregar trabalhos que José fizera por encomenda de alguns clientes, ele jamais vira tanta gente diferente, falando incompreensíveis idiomas, vestida com tão estranhos trajes.
Seus olhos passeam de um lado para outro, extasiados com o que vê. E seus ouvidos, em vão, procuram identificar os sons que ouve, pois na algazarra geral de línguas que ele não conhece, e na infernal gritaria dos vendedores, apregoando suas mercadorias, esfregando-as literalmente nos narizes das pessoas, seus sentimentos, projetados em uma mente ainda sem linguagem capaz de organizar tudo em uma configuração lógica, inteligível, parece uma multidão de imagens informes, inominadas, desordenadas e confusas.
É possível perceber a perplexidade que tudo isso causa em sua jovem mente pela admiração estampada nos olhos brilhantes, que são jogados de um lado para o outro, parecendo não querer perder nada do que se passa ali. E no coração que bate acelerado, na excitação que lhe descarrega mais adrenalina nos nervos e músculos, e o leva a correr de um lugar para outro, a mexer nisso e naquilo, obrigando Judas, seu irmão mais velho, ou Maria, a constantemente correrem atrás dele para não perdê-lo em meio àquela azáfama toda, percebe-se também que a sua mente é um turbilhão de sentimentos inexplicáveis e desordenados.
E enquanto o segura pelas mangas da túnica nova que ela lhe costurara justamente para aquela viagem, a jovem mãe tem o estranho sentimento que esse seu filho, esse menino que con-templa, extasiado, o grande pórtico do Templo, ornado por duas gigantescas colunas de seis côvados de altura, jamais será o mesmo depois de ter visto Jerusalém.
Difícil, para qualquer pessoa, é continuar sendo a mesma depois de ter visto Jerusalém! Quem já andou pelas suas ruas estreitas e apinhadas de pessoas, de todos os lugares e aparências; quem entrou em seus bazares, pechinchou com os merca-dores, contemplou as casas onde moram seus fascinantes habitantes, os prédios públicos onde a história é escrita, suas vetustas e soturnas muralhas; quem bebeu a água de suas eternas fontes, viveu, enfim, a atmosfera de mística fascinação que envolve essa cidade, sabe do que estamos falando.
Não é a memória do que já aconteceu nessas ruas, nem o sentimento embriagador de que estamos percorrendo os mesmos caminhos que as pessoas que nos inspiram essas sensibilidades percorreram, pisando as mesmas pedras que elas pisaram, que nos embalam nessas visões. É a densidade espiritual que ela aglutina. Parece que Deus – seja Ele quem for e tenha o Nome que tiver – escolheu este lugar para fazer dele o ponto de partida da procura do homem por si mesmo.
Para todos os lados que se olha, as pessoas parecem estar concentradas nessa procura. Judeus e gentios, contritos, orando e colocando seus pedidos entre os restos do Muro das Lamentações; cristãos de todas as tendências percorrendo as estreitas ruas da cidade, na ilusão de que estão fazendo o mesmo caminho que o filho de Maria, um dia, fez em direção ao Gólgota; muçulmanos ajoelhados, com seus rostos na terra, rogando a Alá o cumprimento de suas promessas, saudando o Profeta que, segundo dizem, dali ascendeu aos céus. Todos pedem bênçãos e justiça para si mesmos e castigos para os infiéis que não comungam do seu credos, como se Deus fosse uma entidade influ-enciável e estivesse sujeita a convenções particulares.
Para essa cidade santuário de todas as religiões converge a mente dos homens na procura do seu deus pessoal, e se Ele, “ O Que Vive E Reina sobre todo o universo “, alguma vez esteve pessoalmente visitando a sua criação, é certamente ali que um dia voltará, como um criminoso que volta ao lugar do crime, ou um amante que sempre quer ver de novo o lugar dos seus amores. E talvez porque ali Ele tenha cometido o maior de todos os seus delitos, ou porque nessa cidade Ele tenha vivido a sua maior paixão, é em Jerusalém que todos esperam encontrá-Lo.
Até aquele dia, o filho de Maria nunca havia comemorado o Pessash em um lugar tão interessante. Todos os anos essa comemoração era feita em casa mesmo, somente com os membros da família presentes. Às vezes apareciam alguns vizinhos, que a eles se reuniam para comer o cordeiro pascal, pois aquela era a recomendação de Moisés, que sendo a família pequena e para que não restassem muitas sobras para a incineração, muitos convivas fossem reunidos. Preciosas medidas de economia que de muito longe já lhes ensinara Jeová, o que não espanta sejam os judeus tão hábeis nessa arte de combinar recursos finitos para atender necessidades que são infinitas; e mais ainda, que sendo tão ciosos com relação aos direitos de patente que têm, sobre a invenção da religião de um único Deus, não venham eles também reivindicar os direitos de descoberta dessa ciência da sobrevivência, que é a economia. Desta, eles parecem tão sábios quanto das coisas que se passam no céu e do que quer que façamos na terra o Senhor dos Dias, pois há quem diga, com muita convicção, que judeus pobres são mais difíceis de encontrar do que cavalos azuis.
A Seder, ceia pascal, tradicional e obrigatória, era feita no começo da noite, ás horas vésperas, do dia anterior ao sábado sagrado. Servia-se o cordeiro assado, acompanhado por pães ázimos – pães assados, sem fermento –, acompanhados de ervas amargas, verduras e molhos doces, da cor de tijolos queimados, para contrabalançar a amargura das ervas e o insosso pão sem levedura. Tudo isso dava à refeição pascal um caráter ritualístico que marcava para sempre o espírito de quem dela participava.
E depois as cerimônias que eram praticadas, como a queima dos restos do carneiro, a reunião na sinagoga, onde também se faziam as leituras que ele já aprendera a fazer muito bem e comumente era chamado para executar, constituíam atos de extrema significação, que ao jovem espírito do filho de Maria muito impressionava. Tudo isso lhe fazia sentir que aquela semana era a mais importante época do ano e ele sempre a esperara com excitação e ansiedade.
Fazia parte do ritual que nessa ocasião os filhos tirassem as dúvidas que tinham acerca da lei e da tradição do país e o pai ou o rabino, se o primeiro não as soubesse esclarecer, lhes dessem as devidas respostas. José pouco sabia além do trivial que aprendera com o próprio pai. Embora freqüentasse regularmente a sinagoga, seu aprendizado se resumia ao obrigatório, que se referia aos ditames contidos na lei e nas obrigações litúrgicas, que a tradição transformara em ordenamentos legais. E eles já eram tantos que ele mesmo não conseguia se orientar em meio àquele cipoal de ordenamentos, regras e rituais que prescreviam a forma de se higienizar, de se alimentar, de dormir, de fazer sexo, de orar, e até de fazer as necessidades físicas. Ouvia freqüentemente pessoas mais letradas que ele criticarem os escribas e os fariseus, intérpretes das leis e guardiões da tradição, por imporem ao povo uma carga tão pesada de obrigações morais, religiosas, financeiras, hábitos de vida e práticas rituais, às vezes tão difíceis de cumprir, que eles mesmos eram os primeiros a violá-las. Abluções diárias, lavar as mãos antes das refeições, evitar contato com cadáveres, ou com roupas ou utensílios que os tenham servido, enterrar as fezes, evitar o coito com mulheres durante o ciclo menstrual e até passar os dias de purificação, não cuspir em lugares determinados, não comer a carne de certos animais, evitar contato físico com leprosos, não freqüentar a casa nem manter amizade com idólatras, além de tantos ritos e cerimônias, purificações e mais purificações, como se lembrar de tanta coisa, como ser capaz de viver em uma sociedade dessas, sem violar nenhuma regra de conduta?
Apesar disso, José se gabava de ser um bom judeu, e se devesse alguma coisa a esse respeito, muito pequena seria a sua dívida. Mas de política, ou dessas coisas que os anciãos discutiam nas assembléias provinciais e no Sinédrio ele pouco sabia e não queria se envolver em tais questionamentos, pois as notícias que tinha sobre o destino das pessoas que deles se ocupavam nem sempre eram boas.
Por outro lado, não tinha também muito gosto pelas espe-culações mais profundas sobre a religião, especialmente aquelas que buscavam explicar o porquê dos símbolos, dos rituais e de cada simples ato litúrgico que os acompanhava. Nem se interes-sava pelos mistérios da doutrina, expressos naquela sabedoria que combinava letras e números, cujo objetivo era interpretar o verdadeiro sentido dos escritos sagrados. Segundo se dizia, ela estava contida mais nas metáforas, nas alegorias, nomes e palavras-senhas usadas pelos escritores, do que nas histórias e man-damentos escritos nas escrituras. Muito já custava à sua mente simples se lembrar do que nesses livros estava escrito, quanto mais o penetrar-lhe no espírito, desvendar-lhe os segredos e devassar a intimidade de conceitos que só as inteligências mais preparadas da nação conseguiam compreender.
José jamais se questionara a esse respeito, pois pensava que se houvesse um segredo oculto nas histórias que se contavam sobre o passado do seu povo e nas profecias que se faziam para o seu futuro, não seria a ele, humilde carpinteiro, que tais coisas seriam comunicadas. O que faria ele com tal ciência? Ajudá-lo-ia a encontrar fregueses para o seu negócio, a melhorar seus rendimentos, a proporcionar uma vida melhor para a sua família? Afinal, uma sabedoria que não se pode usar para melhorar a qualidade da vida, pensava José, não tinha nenhuma utilidade para um carpinteiro. Que Jeová a conservasse para os eclesiásticos, para os sacerdotes e os rabis, aqueles professores itinerantes que andavam de cidade em cidade, vila em vila, ensinando ao povo a vontade de Jeová, ou o que eles pensavam ser essa vontade. Eles tinham tempo para pensar nessas coisas, pois não precisavam labutar para ganhar a vida com o trabalho duro das mãos. Os primeiros, por estarem lotados no Templo e nas sinagogas eram sustentados pelas korbãs que lhe pagavam os fiéis; os segundos andavam pelo país em peripatéticas missões pedagógicas e eram sustentados pelas pessoas às quais ensina-vam suas doutrinas. Que estudassem a sabedoria contida nas escrituras, e em troca do sustento que lhes davam os fiéis, a simplificassem para uso do povo. Isso era o que se esperava de todos eles.
No entanto, o agora já adolescente filho de Maria parece estar interessado nessas coisas e freqüentemente faz perguntas a respeito. Talvez por conta do sangue que carregava nas veias, cuja origem bem que justificava essas cismas, é que o bestunto do menino se ocupava dessas e de outras curiosidades que ele não sabia satisfazer. As condições em ele havia sido gerado ainda era questão que lhe freqüentava amiúde a mente, mas Maria se recusava peremptoriamente a tocar no assunto, caindo num mutismo absoluto toda vez que indagada a respeito. Depois das várias e infrutíferas tentativas que fez para saber como as coisas teriam acontecido de verdade, ele mesmo começou a cansar-se desse questionamento e foi, aos poucos, aplacando a curiosidade, pois esta, muito mais que a mágoa, a desconfiança, o ciúme – todos membros da mesma família –, é que tem a vida mais curta. Assim, quando viu que esses importunos sentimentos já não marcavam presença constante em seu coração, percebeu também que curiosidade era coisa que já não tinha e daí para frente foi que a convivência com a jovem esposa começou a ficar mais fácil. Esse foi o começo da sua nova família.
Mas não lhe passaram despercebidas as estranhezas do menino e não pouco cogitou a respeito. Certo é que José, na singeleza do seu pensamento, não sabe que a mente é o solo mais fértil que há e desses produtos que ela mesma fabrica é que também se alimenta. Especulações, cogitações, elucubrações, são como os materiais orgânicos que adubam o solo. Quanto mais a mente faz brotar dessas ervas – que ele chama de consumições e os doutos de reflexões –, mais cresce e se robustece o tronco dessa planta que chamamos de espírito.
Se José não fosse tão pobre de espírito (que dessa forma são chamados os que conservam a singeleza no pensar e não como pode sugerir a expressão, assim cruamente colocada, que tais pessoas sejam néscias), ele poderia ter ficado muito preocu-pado quando percebeu que essas coisas ocupavam a precoce mente do menino. Seu filho adotivo já tinha adquirido o gosto pelo filosofar. Não lhe bastava, como à maioria das pessoas, aprender a usar as coisas que a natureza lhe punha nas mãos; ele queria entender a razão de elas existirem, o principio de funcio-namento, a finalidade, etc.
Para uma pessoa comunicar ao mundo aquilo que tem em mente não basta ter pensamentos, mas também palavras suficientes para lhe servir de veículo. Verdade é, também, que para a maioria das pessoas basta saber os nomes das coisas e ter habi-lidade para colocá-las todas juntas, em uma seqüência lógica, para poder conviver com elas. Isso quer dizer que para viver não é preciso entender por que as coisas são de uma determinada forma, porquanto para isso basta a ciência que nos ensina a usá-las. Não sabemos como funciona a maioria das nossas máquinas e as usamos bem; ou nosso próprio corpo, que também é máquina. Para José, a sabedoria que chamamos de empírica já lhe era suficiente, de forma que ele não cogitava ir além dela. E dado que aprendera a ganhar a vida com a habilidade das mãos, cus-toso já lhe era pensar que essa habilidade começava em algum lugar, dentro da sua própria cabeça. Assim o relacionamento que existe entre o cérebro que pensa e a mão que executa não estava entre as suas principais preocupações. Para ele, a inconsciência da própria inconsciência não lhe fornecia nenhum motivo para se sentir diminuído em sua auto-estima, como poderia acontecer com um grego educado, por exemplo, para quem o conhecimento de si mesmo constituía gênero de primeira necessidade.
Como José é a maioria das criaturas existentes no mundo ainda hoje, cujas cogitações não ultrapassam os limites do estômago. E ainda bem que assim é, pois se todos se ocupassem de filosofia, quem se encarregaria do trabalho que precisa ser feito? Destarte, na família de José, a largueza do espírito só chegava aos limites das perguntas que normalmente se fazem num ambiente onde a sobrevivência é a única preocupação que merece ser atendida: essas perguntas são: O que temos hoje para comer, ou para vestir? Que necessidade é preciso agora que seja atendida? A cada dia já basta o seu próprio cuidado, por isso José acredi-tava na inutilidade de procurar respostas além desse território de ações diárias, por que, dizia ele, “quem, por mais que pense, pode acrescentar a sua própria altura um único côvado, ou ao número dos seus cabelos um único fio?”
Mas no filho de Maria, de onde viriam tais tendências es-peculativas, se ele mesmo, o pai que o criara, não tinha interesse nessas coisas, e segundo se tem por certo, os meninos aprendem com quem os cria e com as pessoas representativas em suas vi-das, os pensamentos que pensam e a capacidade que adquirem para realizarem suas obras? Com quem mais teria ele aprendido a fazer tais questionamentos, que nem de longe passavam pela sua própria cabeça?
Respostas, sejam para resolver os problemas que a vida nos coloca, quanto para as perguntas que nos fazem as pessoas, nós as damos de acordo com a capacidade que desenvolvemos ou a sabedoria que adquirimos. E tanto umas como outras são resultantes das informações que recebemos e da habilidade com que as organizamos em nossa mente. Daí que sendo José o homem simples que é, e de nada dessas coisas que fazem um homem ser dado a tais especulações lhe coube na vida ser provido, é compreensível que não tenha sabedoria suficiente para satisfa-zer aos questionamentos do garoto. Por isso, quando indagado dessa sorte, responde que as coisas de Deus não são assuntos que ao homem compete discutir e dessa forma sempre encerra as conversas sem sequer as ter começado.
Diga-se, por uma questão de justiça, que ele era assim com todos os filhos dele e não apenas com o filho de Maria. Não havia em seu comportamento nenhum laivo de preconceito, nenhuma recusa intencionada, pelo fato de aquele menino não ser do seu sangue. Se ele assim respondia é porque simplesmente não sabia como satisfazer os seus questionamentos.
Até que mal não fazia evitar questões embaraçosas. Afinal, entre os descendentes de Abraão é dessa forma que se comportam todos os homens do seu nível intelectual. E tal se dá pela própria maneira de ser do judeu tradicional, gente simples e austera, pouco dada a cerebrinas maquinações dessa ordem. Quanto a José, isso justifica também os retratos que lhe pintaram um par de cronistas, que o descreveram como homem de poucas pala-vras e raciocínios singelos. Justiça lhe fizeram em relação a esses quesitos, pois enquanto viveu, mais José trabalhou com as mãos que Deus lhe deu para trabalhar, do que com a cabeça que lhe coube para pensar.